Nunca pensei em ser professora. Quando decidi fazer Letras, minha única pretensão era me dedicar ao estudo e à pesquisa do “fantástico mundo das palavras”: a literatura. Naquele momento, ainda não tinha a dimensão que a mágica da invenção de realidades era resultado exclusivo da forma e da intenção com que as palavras eram organizadas em prosa ou verso. Essa, talvez, tenha sido a descoberta mais significativa dos anos de faculdade.
Filha de professores, jamais desconheci a rotina e também as agruras do magistério no Brasil. Mas pude observar, desde cedo, o poder transformador que o ensino pode operar. E convivi com intensas manifestações de gratidão por parte daqueles cujas vidas tomaram novos rumos em contato com o professor. No dia do “mestre”, em especial, minha casa ficava repleta de flores, doces, telefonemas. Confesso que sempre corri para ler os cartões ou bilhetinhos que acompanhavam esses mimos. Era tão visceral tudo que estava ali, tão comovente e longe de bajulações.
Apesar de ter atravessado a infância e a adolescência com essa certeza de que o professor pudesse de fato ser, o que depois aprendi com Roland Barthes, “um guru, um iniciador de asceses”, comecei a fazer o curso de Letras sem pensar muito que este era, também, uma licenciatura e que eu sairia dali com o diploma de professora. Não tardou muito para que minha ficha caísse e, dois anos depois, eu já fazia estágio no Colégio de Aplicação da UFRJ, onde fui também professora substituta de Francês em todas as séries do Ensino Fundamental e do Médio, uma das experiências mais radicais de minha vida de professora. Começar a dar aulas ensinando uma outra língua, falando o tempo todo em outra língua e vendo isso funcionar!
Por sorte, minhas experiências no magistério foram, inicialmente, bastante díspares e, talvez por isso, fecundas. Trabalhei numa “escola pública modelo” à época, o referido CAP da UFRJ. Mas meu primeiro concurso público, para cargo efetivo, foi para o magistério estadual. Aprovada, dei aulas, meses depois de formada, no Colégio Alcebíades Schwartz, em Conselheiro Josino, uma escola na beira da estrada, com bastantes dificuldades na década de 90. Lembro-me de tudo vividamente: das goteiras, do chão de terra batida, da pouca iluminação e do estranhamento de, já lecionando a disciplina de Língua Portuguesa, sentir-me falando uma língua estrangeira. Tive que encontrar o tom, a medida, o canal de comunicação, poder, convivendo com os registros totalmente afastados da norma culta escrita e da linguagem formal falada, construir as pontes necessárias para, sem nunca marginalizar ou afastar os alunos das salas, oferecer-lhes um trampolim, uma via de inclusão social. Ensinar-lhes a ser poliglotas na própria língua e, com isso, introduzi-los no universo da leitura. Sim, porque não há leitura prazerosa sem a devida apropriação dos mecanismos de funcionamento linguísticos. Deixei a escola seis meses depois por não conseguir compatibilizar minha vida profissional e acadêmica entre Rio e Campos. Comecei o Mestrado naquele mesmo ano. Carrego, entretanto, na memória, aquela experiência, tão comum a muitos que podem estar me lendo neste momento, mas tão extraordinária para a moça que vinha de ares tão distantes. Conselheiro Josino foi meu batismo de fogo, meu ritual iniciático e a consciência da profissão que havia escolhido. Recebi uns meses depois um bilhetinho de um ex-aluno, que selou em definitivo meu compromisso com o magistério.
Minha experiência como professora dos cursos de Letras de instituições privadas da cidade, na FAFIC, hoje UNIFLU, e na Estácio de Sá, foi a história que escrevi para mim, a causa que abracei sem “medo de ser feliz”. Não é à toa que, participando da construção da primeira licenciatura em Letras em instituição pública fora das cidades do Rio e de Niterói, em nosso estado, meu coração esteja aos pulos. Constatar a reestruturação dos paradigmas por que passou o Instituto Federal Fluminense, ex-CEFET, ex-Escola Técnica, que lhe redimensionaram as funções, incluindo entre elas a formação de professores em cursos de Licenciatura, é a cereja do bolo. Há dezoito anos na instituição, tendo passado por todas essas situações organizacionais, sinto-me grávida de um filho de muitas mães. Daquela que primeiro sonhou uma Licenciatura em Letras no IFF, a professora Rita Maria de Abreu Maia, das professoras Vania Bernardo, Renata Ribeiro Gomes de Queiroz Soares, Edinalda Almeida e de seus padrinhos e madrinhas: diretores e reitor.
Puxando todas as brasas para a minha sardinha (o magistério), acho uma Licenciatura em Letras, habilitação Português-Literaturas, crucial nos dias de hoje. Precisamos formar professores competentes no ensino da língua materna, no seu manejo, nas suas diversas funções, aptos a formar leitores hábeis em códigos diversos. IDEB, ENEM ou mesmo o exame da OAB, todos apontam um mesmo abismo do qual precisamos sair: ineficiência de leitura e incapacidade interpretativa.
Avisem, comuniquem, publiquem e venham saber por que, como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, “sob a pele das palavras há cifras e códigos”.
(Analice Martins)