No ano em que completa 100 anos de pura eternidade, Vinicius de Moraes será ainda mais lembrado e homenageado. Vida longa à obra daquele que soube vivê-la em cada instante!
Para mim, a longevidade da obra do “poetinha”, ou seja, o fato de ela se prolongar na memória e nas leituras de muitos deve-se à sua natureza diversa: em gênero, estilo e temática. Vinicius, como sabem, foi diplomata, poeta, dramaturgo, compositor. Foi também um homem de muitos amigos, muitos amores, muitas mulheres, muitas festas, muitos shows.
Recomendo aos que ainda não assistiram ao documentário “Vinicius”, de Miguel Faria Jr, de 2005, que o façam correndo. As imagens de arquivo, os depoimentos, a leitura dramática de seus poemas e canções dão conta da intensidade de viver do artista. Há dois momentos neste filme que merecem ser relembrados aqui.
Coube ao nosso maior crítico literário as mais assertivas palavras sobre a obra do poeta. Nada de mais peso e autoridade do que as declarações de Antonio Candido: “Inserido na tradição literária da métrica e da rima, Vinicius se aproximou como poucos da vida cotidiana brasileira. Só um grande poeta poderia ter escrito ‘Balada do Mangue’”. Quem conhece o poema sabe que é também do inóspito e do amargo que Vinicius retira sua essência lírica. Enganam-se os que lhe desconhecem a percepção aguda da realidade: “Pobres flores gonocócicas/Que à noite despetalais/As vossas pétalas tóxicas!” (…)Ah, jovens putas da tarde/O que vos aconteceu/Para assim envenenardes/O pólen que Deus vos Deus?”. Só um grande poeta pôde ver na bomba atômica a “rosa com cirrose, estúpida e inválida, sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”.
Portanto, não foi apenas pelo amor que cantou e decantou que Vinícius de Moraes se eternizou. O “poetinha” se fez grande porque, profundo conhecedor da “alma brasileira”, não receou mulatizá-la, ele, “o branco mais preto do Brasil”. Conhecedor refinado da técnica do soneto, talvez senhor de alguns dos mais conhecidos da língua portuguesa, não se furtou a contaminar a nobre forma com o registro do prosaico e do coloquial, como em “Soneto da Intimidade”: “Nós todos, animais, sem comoção nenhuma/Mijamos em comum numa festa de espuma”.
Era de se esperar que os nós das gravatas do Itamaraty não contivessem seu espírito inquieto. Tivemos outros poetas, que também foram diplomatas, como João Cabral de Melo Neto por exemplo. Mas Vinicius não quis se privar da vida que urgia lá fora. Seu escritório também era o botequim, a rua, o candomblé. Na foi a janela que Vinícius elegeu como melhor ângulo de visão para seu processo de composição, mas a praça e as gentes.
Não que sua grandeza poética esteja na cassação da carreira diplomática. Isso apenas foi uma deriva da vida. Mas transitar camaleonicamente por gêneros diversos, como a crônica, a poesia, o teatro e a canção, não é para qualquer um. Ter-se saído bem em cada um deles menos ainda. Ter recorrido a registros linguísticos distintos, desamarrando-se da sisudez da normatividade da língua portuguesa, só lhe consolidou a modernidade. Ter tocado nas mazelas do mundo não lhe maculou a alegria do universo infantil de “A Arca de Noé”.
Por isso, em nada, são contraditórias, no documentário, as palavras de Caetano Veloso relembrando a “doce censura” de João Cabral à entrega visceral de Vinicius à música. Ao contrário, são palavras que só reafirmam o que Candido já dissera. Ao lamentar tal entrega, Cabral ratifica a estatura poética de Vinícius: “Com o talento dele e minha disciplina, o Brasil poderia ter realmente um grande poeta”. Acolhido pela crítica e pelo gosto popular, a eternidade na memória nacional já o espreitava. Não foi a morte que o consagrou, mas a própria vida.
Cabral não gostava de música. Mas Vinicius sim. E para quem gosta de ambas, sua obra pode ser percebida de forma mais homogênea do que a classificou a crítica literária. Mesmo que existam discussões bastante acaloradas sobre o fato de uma canção (a letra mais a música) poder ser entendida como um poema ou não, parece que ao artista nada disso é tão relevante assim. Refiro-me, por exemplo, ao “Poema dos olhos da amada”, a canção que diz: “Oh, minha amada/ Que olhos os teus/ São cais noturnos/ Cheios de adeus”. Composta para ser letra e música, não é também pura poesia? Ou seja: se a leio sem ouvi-la, não se sustenta por si mesma? Não nos arrepiamos da mesma maneira e guardamos suas palavras para sempre? Ainda que feito apenas para o papel, um poema nunca prescinde de ritmo e melodia. Se quiserem acrescentar-lhe outras sonoridades, além da natural às palavras, o que há de errado? Quem não canta “Rosa de Hiroshima” com Ney Matogrosso?
Quando vejo jovens repetindo, sem mesmo, às vezes, saberem dizer de quem são os versos (“Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure.”), como se fosse uma opinião consensual sobre a vida e o amor, só posso acreditar que é grande “o poetinha” que entendeu que “é melhor ser alegre que ser triste/(porque a) alegria é a melhor coisa que existe”.
(Analice Martins)