A aula inaugural da Licenciatura em Letras (Português-Literaturas) do Instituto Federal Fluminense foi ministrada, na última quinta, pelo professor e poeta Antonio Carlos Secchin. Aqueles que conhecem seu longo e feliz casamento com a poesia apenas se deliciaram, mais uma vez, com esta profícua parceria. Mas aqueles que nunca o leram, como crítico ou poeta, e nunca o ouviram falar tiveram uma extraordinária oportunidade de se deixarem seduzir pelos (en)cantos do gênero lírico.
Não vou aqui fazer um resumo de sua aula, intitulada “Professando a poesia”. Não correria este risco, até porque defendo a tese de que parafrasear poesia seja algo impossível, tarefa vã. Neste sentido, concordo com outro poeta, o Antonio Cicero, que diz que, embora queiramos aproximar, muitas vezes, filosofia e poesia, há algo que as distingue radicalmente. A primeira é passível de ser parafraseada. Por mais delicado que seja, podemos parafrasear o que Platão, Kant, Heidegger, Merleau-Ponty disseram. Conseguimos transportar, quando bem sucedidos, as ideias alheias para as nossas palavras, mantendo-lhes o sentido original. Já a segunda não se rende a este procedimento dialógico. A poesia não é redutível à paráfrase. Não podemos, ainda que ousemos, dizer o que o poeta disse, senão repetindo-lhe as palavras. Ou seja, na poesia, os sentidos e significados estão indissociavelmente ligados à estrutura dos versos e ao léxico em que se enunciam. Trocar palavras, alterar sua ordem, quebrar-lhes o ritmo, tudo isso fatalmente conduzirá a outros significados e imagens.
Mas, feita esta justificativa, autorizo-me a derivar algo do que foi professado (confessado, abraçado, ensinado, executado) na aula do professor. A irredutibilidade da palavra na sua forma poética foi um dos aspectos abordados por Secchin, na intenção de mostrar que os significados dos textos poéticos não estão em um espaço “além”, fora do texto, nem em um “aquém” precursor, isto é, naqueles referentes da realidade que podem ter motivado o poema. Seus significados possíveis são resultados das escolhas linguístico-estruturais que o poeta fez para dar forma a determinados tema, experiência ou sensação colhidos ao rés-do-chão. Tais escolhas permitem interpretações que podem se alargar ou se estreitar de acordo com as circunstâncias pessoais e contextuais da leitura, mas nunca extrapolar os seus domínios contextuais de produção e/ou leitura. Melhor dizendo: seja pela estetização das condições biográficas do poeta, seja por aquela do leitor empírico, os significados de um texto transitam entre estes polos, sem precisar ultrapassá-los.
Secchin recorreu a um exemplo claríssimo: A “Canção do exílio”, poema romântico da primeira metade do século XIX, autorizaria interpretações, ainda que forçosas, como a ultrapassagem da figura paterna (Portugal) na afirmação da autonomia filial (as terras brasileiras), a representação de uma “falta”, tônica constante da poesia romântica, mas nunca a leitura de que “marcianos visitaram a terra etc.”, uma vez que, neste último e exagerado exemplo, não haveria um significante que fosse que a respaldaria. Se os exemplos não foram exatamente esses, corrijam-me!
A questão interpretativa, como o professor bem assinalou, é sobretudo da ordem do ponto de vista que se elege para “olhar” o poema. A leitura produtora de significados requer um ponto de onde se avista e que deve ser sustentado com coerência. De antemão, todas as interpretações se sustentariam, desde que o leitor declarasse seus ângulos de visão e os conduzisse com lógica e clareza. Assim, as teorias críticas formalistas, estruturalistas, hermenêuticas, psicanalíticas ou sociológicas têm a sua contribuição a dar aos significados possíveis.
Na verdade, as considerações feitas até agora, grosso modo, valeriam para o quadro interpretativo de qualquer linguagem artística que não apenas a literatura. Mas lembremos: só a literatura é capaz de produzir outros signos além da palavra. O som e a imagem são também atributos da potência da palavra.
Um dos motes da aula que uso, à guisa de conclusão deste meu artigo, foi o amedrontamento que a poesia pode causar num primeiro momento, já que, diante dela, o leitor não tem onde se amparar. Na poesia, não há personagens cristalizados, não há um enredo que se desenrole numa linha temporal, não há espaços delimitados, não há a condução de um narrador, mas tão-somente uma voz lírica que apresenta uma realidade transfigurada pela subjetividade deste “eu” que produz o canto. É por esta razão que Secchin assevera que, na sua longa experiência docente, sempre viu os alunos se bandeando para o lado da prosa – da narrativa de ficção – como se, ao identificarem as categorias que descrevi, tivessem dado um significado ao texto, o que de fato não ocorre. Esta leitura primeira, parafrástica, é apenas uma espécie de mapeamento das categorias narrativas, não é um significado possível.
Para lá chegar, é preciso que aprendamos com a lição professada por Carlos Durummond de Andrade em “Procura da poesia”: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxeste a chave?”
(Analice Martins)