Cenário das recentes e recorrentes manifestações populares no Brasil e em outros lugares do mundo, como a França e o Egito, a rua tem reunido multidões por razões variadas, mas todas com um clamor político, mesmo que não explicitamente partidário.
A rua e a praça são espaços públicos de trocas simbólicas. São uma experiência compulsória com a alteridade. Portanto, representam dinâmicas de constituição do sujeito. Sem a rua, vê-se a vida apenas pela janela ou pelas telas. A rua permite tanto uma atitude de desnudamento da privacidade quanto de anonimato. É este paradoxo que a torna fascinante dos pontos de vista sócio-antropológico e literário.
Para as relações sociais, a rua é o espaço dos serviços, do comércio, do trânsito, da diversão. A rua estabelece a contingência do encontro para a realização de alguma atividade. É um espaço privilegiado para vivenciar e entender o Outro que se avizinha casualmente. Para a literatura, a rua inaugura a modernidade de certa forma, ou mais especificamente, o modernismo. Desde o século XIX, entretanto, em certa expressão do Romantismo, modos, hábitos, comportamentos e cenários ganham os contornos públicos da rua, a partir dos primórdios da urbanização.
Nos dias atuais, a rua tem sido palco de reivindicações e confrontos. No Brasil, em especial, assistiu-se a uma singular organização desses movimentos. No espaço que é também o seu avesso – o privado -, ou seja, o dos computadores pessoais que, antes da web 2.0 e da explosão das redes sociais, eram um território que permitia a distância física e algum anonimato, orquestrou-se o maior movimento de rua, desde o “impeachment” do ex-presidente Collor, em 1992. O Brasil não é a França, país em que, pelo menos em Paris, assiste-se a um protesto por dia. O gigante sempre foi pouco dado às ruas, sempre se manteve meio adormecido.
Foi, então, das inquietudes e dos descontentamentos partilhados em redes, de uma tecnologia na palma da mão, que as ruas de muitas cidades brasileiras foram tomadas de assalto por multidões lideradas por jovens dispostos a fazerem valer seus pleitos. Apartidárias ou não, foram às ruas pessoas de idades, cores, credos e motivações distintas, mas com uma mesma palavra de ordem: BASTA!
Interessante este fenômeno de reversibilidade de fronteiras entre o público e o privado. Se os computadores domésticos e a internet, nos anos 90 do século XX, constituíram um processo de privatização de vontades, de distanciamento das ruas, de isolamento voluntário; a partir da popularização da internet e das redes sociais, tal fenômeno se complexificou, rompendo fronteiras e paradigmas.
A rede não é a rua, mas a simula de certa forma. A rede é uma rua sem odores, rumores e ruídos. A rede pode ter a mesma eletricidade da rua, mas ainda não permite o tato, o tangível, a corporeidade de seguir, como disse Drummond, de “mãos dadas”. A rede precisa da rua, assim como a rua talvez nunca mais seja a mesma depois da rede. A rua também é rede, não A REDE, mas espaço de interações onde podemos compartilhar nossas experiências mais íntimas e as coletivas.
A rua constitui uma instigante experiência de proximidade com o anônimo: o estranho que rejeitamos ou que, na maioria das vezes, queremos ser. Este anonimato, a fugacidade de um rosto na multidão, o desejo de segui-lo, de observá-lo, de se tornar íntimo do alheio na “flânerie”, em passos erráticos, de decifrar enigmas, tudo isso é matéria fértil para Edgar Allan Poe, no conto exemplar “O homem da multidão” ou para Baudelaire, em O pintor da vida moderna, ou em “Quadros parisienses” de As flores do mal.
A literatura brasileira do início do século XX também registra esta efervescência. Lima Barreto, João do Rio, Benjamin Costallat captaram mazelas, transformações urbanísticas, fizeram a crônica do efêmero, do transitório, do instante, do contingente, que são, segundo Baudelaire, a outra metade da arte moderna. Captar o momento fugidio e desconcertante, sua beleza – pois aí também reside o belo – era a tarefa dos pintores da vida moderna, veloz e urgente.
A rua de onde parte a literatura moderna e modernista não é o espaço das manifestações que presenciamos. Foi, entretanto, uma mola propulsora porque libertária, heterogênea, plural, íntima e anônima. Nela, reside a multiplicidade e o sentido caleidoscópico essenciais ao fazer literário: “Para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente”, afirma Baudelaire.
(Analice Martins)