Circuitos literários

A relativização da escala de valores para se pensar a literatura e o descentramento da crítica literária especializada pode ser considerada uma espécie de novidade ou mudança paradigmática acarretada pela “web” (world wide web) e pelas novas tecnologias. Assim, em nosso cenário atual,  a função destas críticas como legitimadoras das produções literárias vem sendo constantemente revista.

A experiência de sites especializados, revistas eletrônicas, redes sociais, fóruns de debate pela internet, como foi o fórum virtual “o que é literatura?”, deflagrador do seminário “Literatura sem papel”, realizado em 2006 e 2008, na UFRJ, e resenhas de livros apenas de circulação pela internet promoveram, além de vaidades exacerbadas, uma espécie de dança das cadeiras e de livre expressão de juízos estéticos.

Essas contribuições, trazidas pela “web”, estão, de certa forma, determinando uma espécie de reconstrução da vida literária nacional, a partir da fragilização da importância de mediadores como editores e críticos. Os próprios escritores executam, com frequência, os papéis tanto do editor quanto do crítico. Dessa maneira, ocorre um descentramento das relações de força com uma aproximação mais direta, quer na relação entre escritor e leitor, quer na relação do escritor com a crítica literária.

Se os suplementos literários já haviam empurrado a crítica institucionalizada pela academia para um certo obscurantismo, agora, a “web” diminui e suprime o espaço reservado a tais suplementos nos jornais. Se os jornais americanos suprimiram ou reduziram seus suplementos literários na primeira década do século XXI, a atual vida literária brasileira também acompanhou, paralelamente, o aparecimento de novos espaços, talvez mais democratizados, porém passíveis de questionamentos sobre sua autoridade para atribuição de juízos estéticos.

Em um movimento semelhante ao ocorrido com o antagonismo entre os críticos “scholars” e os de rodapé, a possível democratização trazida pela pulverização de opiniões, a partir da “web”, fez com que o crítico de cinema da revista “Time”, Richard Schikel, escrevesse na página de opinião do jornal “Los Angeles Times” que “nem todo mundo é um crítico”, e que o trabalho de resenhar livros não é uma atividade democrática, promovendo, com tais declarações, reações acaloradas nas quais os jornais criticaram o amadorismo dos blogs, e os blogs denunciaram o partidarismo dos jornais.

Assim como, em um primeiro momento, o espaço assegurado ao livro literário impresso pareceu ameaçado de extinção, com a ameaça trazida pela “web” ao espaço da crítica literária nos suplementos literários, o escritor Salman Rushdie afirmou, em evento promovido pelo Círculo Nacional de Críticos de Livros (NBCC, na sigla em inglês), que “é um erro tratar os novos meios como uma ameaça à crítica de jornais”. Jornais e blogs se complementam.

Mais importante, talvez, do que dimensionar a procedência e a legitimidade das críticas realizadas nesses blogs e sites é avaliar o que a pesquisadora e ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda identifica como “simultaneidade geracional entre autor e leitor”: “O novo escritor sempre falou com o velho crítico ou o velho escritor. Hoje, o escritor já fala de imediato com sua geração. Isso produz uma troca muito importante”.

Outra alteração paradigmática que se observa nas reconfigurações promovidas pelas novas tecnologias é a mobilidade dos lugares ocupados por escritores, críticos e leitores, em uma nítida acumulação de funções. O mesmo que escreve lê seus pares e é por eles lido. O que apenas lia, opina publicamente. De certa forma, escreve, interfere.

Fronteiras e muros delimitadores de territórios impenetráveis são atravessados, no século XXI, acirrando o que, anteriormente, em outro contexto, Karl Marx identificara, como a solidez que se desmancha no ar. Constatação que, de certa forma, Zygmunt Bauman, sociólogo expulso do Partido Comunista em 1968, retoma com o tema da liquidez, explorado, em livros como “Modernidade líquida”, “Tempos líquidos”, “Amor líquido”, “Vida líquida” e “Medo líquido”, para identificar a precariedade, a vulnerabilidade, a instabilidade e a incerteza dos vínculos dos indivíduos entre si e nos mais variados âmbitos da vida social no atual estágio da modernidade avançada.

Em um mundo, portanto, em que há uma liquefação nas relações entre os indivíduos e uma espécie de desengajamento social, tal diapasão para pensar a contemporaneidade envolve, sem dúvida, as manifestações culturais. A literatura, ainda que constituída de obras que atravessam, na sua condição de clássico, os tempos e as fronteiras geográficas, permaneceria infensa a tal contingência de liquidez? O que se escreve na “web” é feito para se desmanchar no ar? Só a publicação impressa asseguraria uma sobrevida e uma espécie de resistência temporal à obra literária?

(Analice Martins)

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Este texto é parte do artigo “Modos de produção e circulação na web: algumas notícias da atual literatura brasileira”, de minha autoria, publicado no número 179 (out.- dez.), da Revista Tempo Brasileiro, em 2009.

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