Cazuza teria, então, deixado um legado geracional? Rebeldia, inconformismo, hedonismo, mobilização, imortalizados em canções. Nele, a obra se escreveu colada na vida ou para justificar o que sabia breve em meio às correntezas de uma “louca vida” em que se deixou arrastar: “Vida imensa, quero que você me leve”. Eros ou Thanatos? Pulsão de vida ou de morte?
Se considerarmos que toda a vanguarda modernista, iconoclasta e futurista é hoje histórica e está lá, em museus, devidamente guardada, por que não a de Cazuza? Por este ponto de vista, talvez se justifique a exposição. A diferença, parece-me, é que, em edições anteriores, vida e obra poderiam se apartar. Algo como dizer que a obra de Machado de Assis pudesse ser vista sem a obrigação de uma correlação tão direta com sua vida. De Clarice, também poderíamos dizer o mesmo. Há, no entanto, que considerarmos que um cantor é alguém que empresta à própria obra um corpo nu. Talvez essa analogia seja mesmo imprópria: épocas diferentes, canais distintos. Livro e palco não são a mesma situação de representação.
A cronologia da vida de Cazuza está lá disposta por um viés histórico-político-cultural do Brasil. Ou seja, há um interesse, até certo ponto didático e necessário, em situar sua vida na história recente do Brasil. Até mesmo em resgatá-lo como precursor de uma geração antenada, a partir de circunstâncias atualíssimas, como os movimentos das ruas, em especial os promovidos pela juventude. Há uma sala, a que me pareceu mais ousada e afirmativa da posição de os museus olharem o passado também a partir do presente, em que são apresentados muitos depoimentos de amigos, familiares, cantores, jornalistas, produtores, antropólogos, sociólogos, filósofos, escritores e críticos literários. Estão lá Marina Lima, Ney Matogrosso, Lobão, Lucinha Araújo, Viviane Mosé, Luiz Eduardo Soares, Marcos Vinícius Faustini, Filipe Peçanha, Silviano Santiago. São depoimentos que tentam fazer uma cartografia pessoal e social do cantor. O que ele representou e representa para os amigos, para a família, para a música brasileira, para várias gerações e para a sociedade brasileira. Em alguns desses depoimentos, em especial, os dos “ólogos e “istas””, há uma intenção clara de pensar a potência da juventude como elemento de mobilização social e como “pulsão de vida”.
Há duas salas que justificam tal exposição em um museu da Língua Portuguesa e que exploram fenômenos linguísticos, literários e estilísticos de suas composições, além dos diálogos intertextuais imprescindíveis à criação literária e à capacidade de resposta de uma obra a outras anteriores.
De forma bastante didática, as letras das canções sem o recurso do som, portanto apenas disponíveis para leitura inicialmente, são apresentadas por meio de procedimentos da criação literária: verso, estrofe, refrão, rimas (perfeitas, ricas, emparelhadas), assonância, aliteração etc. Os recursos do suporte eletrônico ajudam muito neste caso. Não ter o som, mesmo que os fones estejam lá, é uma estratégia bem interessante. Toda atenção se volta obrigatoriamente para a letra, para o signo linguístico, para a estrutura da língua: morfemas, fonemas, por exemplo.
Na sala das influências, evidencia-se o caráter dialogal de toda e qualquer obra. São mostradas as canções de Cazuza que fazem releituras de Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Cartola, Dolores Duran. Nenhuma obra que perdura no tempo é isenta de ecos e influências. Ninguém cria sozinho. Criar com originalidade é uma atividade sempre resultante de um processo de escuta.
A Aids está lá, mais como força propulsora do que imobilizadora da potência criativa do artista. Uma das últimas salas da visitação traz trechos de entrevistas. As imagens delas mostram um Cazuza já doente. Para olhá-las, o visitante deve inclinar a cabeça sobre pequenas mesas multimídias. Quando, porém, levanta os olhos, as paredes da sala estão cobertas por lindas e imensas fotos do artista, como a deste artigo. Na arte, Eros vence Thanatos!
(Analice Martins)