Este é o título, em português, do filme francês “Du vent dans mes mollets”, versão do romance homônimo da escritora Raphaëlle Moussafir, que possui também uma adaptação em quadrinhos. “Feito gente grande” é um título que cria uma relação direta e denotativa com a trama desta comédia bem ao gosto francês, ou seja, aquela em que a comicidade é mais um modo de olhar a vida e de narrá-la do que um efeito das situações em si mesmas. Assim, desfilam pela ótica do olhar infantil, estratégia narrativa inteligentemente “gauche”, temas da vida nossa de cada dia: relações familiares, carências, traumas, sexo, alegrias e morte. Sim, a “indesejada das gentes” lá está como rito de passagem para um universo adulto mais veemente do que parece ser o significante metafórico – “Osvitch” – com que Rachel (Juliette Gombert) se refere ao holocausto em Auschwitz, cicatriz existencial do pai.
Neste sentido, o título em francês guarda com a versão cinematográfica uma relação mais alusiva e conotativa, embora não menos reveladora das intenções do enredo. “O vento que corre nas panturrilhas” de Rachel, quando pedala a bicicleta em direção à casa de Valèrie (Anna Lemarchand), ao saber de sua morte, é o incômodo de perceber que a morte, roubando de nós os afetos, impõe-nos ainda assim sua presença cruel na continuidade das coisas à nossa volta. A menina diz que o pior não foi se deparar com a ausência da amiguinha, mas notar que a vida continuaria sem ela, como o vento nas panturrilhas. Nesta cena, já quase ao final, o vento realiza o rito de passagem da inocência infantil ao império da lucidez do mundo adulto.
A cena de abertura suspende uma confissão só revelada ao final. Aliás, nada, no desenrolar da trama, leva o espectador mais absorto a desconfiar que Valèrie, portadora de uma doença cardíaca, um coração hipertrofiado, mas absolutamente saudável em suas traquinagens e alegria, selaria esta amizade infantil com a partida prematura. Na cena inicial, Rachel hesita diante de uma linda máquina de escrever, herdada de Valèrie, fato só sabido ao final, para escrever à psicóloga, como fora incentivada, seus medos e angústias. A pergunta crucial da carta, só referida também ao final do filme, sugere que a morte, ao esconder dos olhos a presença física de alguém, não por isso decreta sua inexistência para nós.
De forma mais linear, “Feito gente grande” focaliza a infância de Rachel, uma menina de nove anos, cujos pais se encontram em fase desinteressada do casamento, naufragados em seus cotidianos de trabalho e em seus cansaços. Soma-se a esse núcleo a avó materna, mulher que sempre manteve com a filha uma relação fria e dominadora. Rachel vê seus anseios e percepções se alargarem com a nova amizade estabelecida com Valèrie que, por sua vez, compõe o outro núcleo de personagens da história. Valèrie é desinibida, criativa, arguta. Oriunda de uma família menos arraigada a convenções, vive com a mãe desquitada e um irmão adolescente em uma casa mais livre e arejada. A cumplicidade de Valèrie com Rachel empresta a esta última novo olhar sobre suas inquietações: a professora loura que parece não lhe dar atenção, a colega de sala, linda, nobre e órfã, o clube da barbie, a opressão da escola.
Talvez fosse melhor dizer que Valèrie é o próprio rito de passagem de Rachel, o elemento que descortina um certo processo iniciático na vida da menina tímida e amedrontada. A psicóloga à qual a mãe Collete (Agnès Jaoui) leva Rachel também contribui para tal passagem. Interpretada por Isabella Rosselini, a personagem é procurada inicialmente para liberar Rachel do hábito de dormir com a mala do colégio já nas costas, atitude reveladora de seu mundo neurotizado. É para a psicóloga que Raquel depois escreve para dividir suas angústias novamente: a realidade algoz da morte da amiguinha.
A fantasia e o ludismo, característicos do espírito infantil, são os responsáveis pelo olhar divertido e provocativo com que várias situações, em especial as ligadas às experiências sexuais da professora, dos pais e do irmão de Valèrie, são encaradas e recontadas. A troca do significante “pica” por “bica” é mais do que um trocadilho inocente com certeza.
Mas não apenas à comicidade fantasia e imaginação emprestam seus disfarces. O filme se passa nos anos 80 do século XX. O pai Michel (Denis Podalydès), um homem quarentão, teve a infância devastada pela miséria imposta pela guerra. Para justificar a austeridade paterna e suas idiossincrasias, Rachel tudo atribui a “Osvitch”. Neste caso, a ignorância infantil protege a menina a partir de um significante fantasmagórico, cuja decodificação é impensada naquele momento.
Não é só a pequena Rachel, entretanto, que vê sua vida transformada pela presença de Valèrie, mas toda sua família. O contato com a família da amiga, sua mãe solitária e sedutora e seu irmão irreverente, permite à família de Rachel sair da rotina engessada e oxigenar as relações. É no contato com a experiência da morte e da perda que a ingenuidade do universo infantil é borrada, que o cristal se quebra.
“Feito gente grande” é um filme para ser visto por todas as idades. A perspectiva do olhar infantil sobre a realidade que nos circunda é um ótimo ponto de vista para reflexão.
(Analice Martins)