O documentário é um gênero audiovisual que pretende captar a realidade em seu estado bruto, sem a mediação de atores, cenário ou vestimentas. Esta estratégia finge abolir o enquadramento da câmera, as intenções do diretor, colando-se no entorno para decalcá-lo e nos devolvê-lo em imagens e sons desprovidos de maiores interferências. O documentário é também um gênero que visa à exploração investigativa da realidade, seja ela social, política ou mesmo pessoal e subjetiva.
Este princípio estruturante é, no entanto, falacioso, como bem sabemos, pois o enquadramento da lente, os ângulos escolhidos, a tomada de sequências e closes funcionam como molduras que recortam a realidade palpável e a reconfiguram na necessária edição, que é condição operatória de qualquer arte, mesmo aquelas com propósitos documentais. Ainda que o diretor filme sem interrupções e sem intervenções, o que foi filmado deixa sua condição objetal para se transformar em imagem. Não se trata mais, portanto, da realidade, mas de sua representação, como na caverna de Platão.
Tal processo, então, fabrica o real, valendo-se do mesmo princípio estruturante dos filmes de ficção que, por vezes, parecem mais reais do que documentários com a mesma temática. Cito, por exemplo, o documentário “Tiros em Columbine” (2003), de Michael Moore, em que o diretor, a partir de entrevistas, imagens de arquivo, vídeos institucionais, sequências de animação, procura entender a fascinação dos americanos por armas de fogo, sua venda legalizada e as consequências nefastas desta postura armamentista para a sociedade americana. O documentário, qualquer que ele seja, apoia-se em testemunhos, mesmo que não haja falas.
O testemunho se ergue como a prova incontestável do fato. Um argumento de autoridade que dá credibilidade à argumentação que se constrói sobre determinado assunto. Imagens de arquivo e fotos também funcionam nesse sentido como elementos que capturaram o evento em tempo real e que, portanto, podem conferir autenticidade ao ocorrido.
Ser ficcional, ou seja, ter um caráter representativo e não apresentativo, não retira necessariamente da narrativa audiovisual sua plausibilidade, aquilo que Aristóteles, em sua “Poética”, nomeou como verossimilhança, ou seja, “as virtualidades criadoras”. Este estatuto das composições artísticas é tão eficiente, parece-me, quanto a pretensão de retratar a “verdade nua e crua”, pois ela pode ser indecifrável a olho nu sem as mediações de um enredo paralelo à história em si. A ficção não deve subordinar-se à realidade, pois não lhe serve obrigatoriamente de testemunho, mas bem pode elucidá-la, jogar-lhe luz e produzir o tão perseguido “efeito de real” que nossa sociedade contemporânea exige como condição de sobrevivência: a coisa real, o espaço real, o tempo real. Ora bolas, o real pode ser indizível e inapreensível.
“Elefante” (2003), de Gus Van Sant, é uma pequena joia rara. Um filme de ficção enxuto sobre a mesma temática de “Tiros em Columbine” que, sem as amarras sociológicas de um documentário, consegue colocar, com mais veemência que Moore, algumas questões possíveis para o entendimento do comportamento cada vez mais frequente dessas tragédias americanas: a facilidade de acesso às armas, os jogos eletrônicos simuladores dos tiros e da morte como mero entretenimento, o vazio das rotinas de alguns adolescentes, uma família ausente, tribos e “bullying”. A atmosfera de indagação sobre a tragédia consumada nas mortes da escola de Columbine ganhou no filme de Van Stan , creio, mais poder de nos afetar e fazer pensar do que na estrutura fílmica do documentário.
“Jogo de cena” (2007), de Eduardo Coutinho, traz à tona este embaralhamento entre realidade e ficção. Em um cenário minimalista, mulheres anônimas e conhecidas, atendendo a um anúncio de jornal, falam de suas vidas sem que consigamos discernir ao certo se as conhecidas como atrizes representam um papel ficcional ou se se apresentam autenticamente, se falam de si ou se falam como personagens. Em contrapartida, as anônimas não necessariamente são não-atrizes, mas o fato de não conhecê-las nos borra a visão e os ouvidos. Não sabemos se são elas próprias ou os seus papéis. Que importa? Tudo que é relatado é absolutamente crível, seja um relato inventado, fabricado pelo diretor/roteirista, seja um relato memorialista. Sem deixar de parecer verdadeiro, nada escapa da edição do ato de recordar e, depois, da câmera e da montagem.
Mas, às vezes, a realidade é intraduzível, seja no testemunho das imagens, seja no relato ficcional. Às vezes, a realidade avassaladora engole a câmera que procurava enquadrá-la, documentá-la para explicá-la. A realidade engoliu o documentarista Eduardo Coutinho, engoliu também o cinegrafista Santiago Andrade.
(Analice Martins)