De maneira geral costumamos entender o objeto artístico como a representação de fatos da realidade concreta ou como a materialização da atividade humana da imaginação. A manifestação artística, nesse sentido, estaria atrelada a eventos que a precedem. Sua natureza, por mais verossímil que pareça, não é real. Trata-se de uma eficiente estratégia de fingimento por meio de uma linguagem sígnica.
A autonomia que Aristóteles conferiu a este procedimento na Antiguidade Clássica é até hoje responsável pelo redimensionamento da legítima importância social e estética da arte. Aristóteles a retira do limbo platônico, da condição de mera cópia da realidade, e a reposiciona como uma “virtualidade criadora”. Então, para as teorias ocidentais, a arte é um mecanismo de criação e não somente de espelhamento.
Criar, portanto, seria conferir ilusão de realidade não apenas ao que já foi ou está acontecendo, mas ao que pode jamais ter acontecido. Isso faz da arte uma atividade perigosa e autônoma. Talvez, por essa razão, Platão tenha expulsado os poetas de sua República. A criação artística remete ao emprego de um conjunto de técnicas, o que a afasta do espontaneísmo e do naturalismo corriqueiros. Quando se assemelha demais à natureza, aos fatos, objetos e sentimentos que nos rodeiam, foi porque o artista soube, como já cantara Bilac, “disfarçar na forma o emprego do esforço”. Quanto mais “natural”, mais “artificial”, poderíamos concluir. Assim são os artifícios empregados pelo artista que podem conduzir a alma do observador a elevados estados de reflexão. Logo, a arte é absolutamente necessária.
Não há nada de novo nessas minhas considerações, mas me sinto impulsionada a dizê-las toda vez que leio ou ouço algo como “o cinema cria o fato, o evento”. Creio ter sido mais ou menos isso que dizia um canal fechado da televisão francesa. Eu sequer estava atenta ao que se passava, mas a proposição me chamou a atenção para a associação que fiz no título desta crônica.
Estou em Nice, cidade do sul da França banhada pelo Mediterrâneo, a mais importante da Côte d’Azur, célebre pelo sol, pela luz, pelas cores e pelos artistas que passaram ou moraram por aqui. Seu mar turquesa não deixa margens a dúvidas. Dois grandes museus guardam parte das obras de Marc Chagall e de Matisse. Nas redondezas, em Biot, há o dedicado à obra de Fernand Léger; outro, em Antibes, dedicado à parte da obra de Picasso; a Fundação Maeght, em Saint-Paul-de-Vence, reunindo, além de Chagall e Léger, Braque, Miró etc. Cézanne, em Aix em Provence. Enfim, artistas que fizeram parte do que hoje chamamos de vanguardas históricas, responsáveis por “épater les bourgeois” e por criarem um divisor de águas no mundo das artes plásticas, em especial da pintura, no início do século XX.
Não à toa os artistas brasileiros Tarsila do Amaral, Anita Malfati, Portinari depois, todos que reinventaram antropofagicamente a pintura brasileira, o fizeram a partir do contato direto com as vanguardas europeias, conferindo às nossas artes uma circulação universal, sem entrincheiramentos nacionalistas e sectários. Ou seja, a dimensão expressa adequadamente no título de um ensaio de Silviano Santiago: “Apesar de dependente, universal”. Reflexão complementar à ideia de originalidade como um processo de apropriação criativo tributário do antropofagismo modernista.
Tais considerações são apenas um pretexto para dizer, sem cegueiras colonizadoras, que a experiência do contato “direto”- tanto quanto possível – com as obras desses artistas é “bouleversante”, isto é, perturbadora. Para além da mediação da reprodução técnica, das fotos ou dos arquivos digitais, a experiência da cor, do relevo das camadas da tinta, das dimensões da tela, do volume das esculturas, do risco dos desenhos, é insubstituível. Sei que é temeroso dizer isso em tempos de democratização digital e de acesso a bens simbólicos remotos, sem parecer pernóstica. Mas é verdade, ora! Para tanto, não é preciso apenas se deslocar para fora, mas também para dentro, como fizeram os modernistas em suas caravanas ao interior do Brasil, cansados de verem apenas por tabela, sentirem pelo que lhes contavam, como disse o poeta Mario de Andrade em “Acalanto do seringueiro”. Mais do que se deslocar, é preciso, como advertiu o outro Andrade, Oswald, ter olhos livres para ver. É preciso se deixar assombrar.
Pois foi assim que me senti ontem no museu Marc Chagall, diante daquelas telas acintosamente coloridas, para lá de todos os “ismos”. Muitas com temas pouco realistas, mas incrivelmente reais. Sim, a arte cria o fato. Os temas da revolução bolchevique, das guerras, da cidade natal e os bíblicos estão lá nas obras desse russo naturalizado francês. Uns como outros, acontecidos ou não, são expressivamente reais. Pelo emprego da técnica aliada à subjetividade do artista, tudo é real, tudo é verdade: o paraíso, Adão, Eva, a criação do mundo segundo a mitologia bíblica. Tudo também é vivamente erótico, como a série “O Cântico dos Cânticos”.
Por isso, ainda quando surreal, a arte nos faz crer como possível o que é representado em cores, traços, formas. A arte, definitivamente, cria o fato.
(Analice Martins)