Em sociedades em que Estado e Religião são esferas independentes, ou seja, em que não há uma fusão fundamentalista, os cerceamentos às manifestações artísticas e aos credos deveriam inexistir ou, ao menos, serem entendidos sem a pecha da blasfêmia ou do vilipêndio. Portanto, não é de estranhar que um escritor como o paulista Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica (1975), romance cultuado pela crítica literária, goze de notoriedade, reverência e prestígio, ao contrário do anglo-indiano Salman Rushdie, que foi perseguido, ameaçado de morte e impedido de voltar à terra natal depois da publicação de Versos satânicos (1989). Em Portugal, traduzido como Versículos satânicos
Em ambas as obras há releituras das tradições religiosas, uma forma outra de interpretá-las, de pensá-las associadas a outros signos da cultura e da condição humana. Para as artes, símbolos e signos religiosos são matéria de representação tanto quanto a vida mesma. Podem ser reapropriados e deslocados em seus significados primeiros sem que isso constitua ofensa, mas, pelo contrário, seja sinal de uma reflexão crítica autônoma, despida de (pre)conceitos e juízos moralizantes.
No romance de Raduan Nassar, André é o filho pródigo que abandona a casa paterna, sem nunca deixar de amá-la, para poder viver a liberdade que não encontra nas palavras imutáveis da tradição judaico-crístã, representadas pelo pai. Mais do que isso, André deixa a casa paterna porque não pode viver a paixão incestuosa e correspondida pela irmã Ana. Foge da casa e de si. Retorna, no entanto, pelas mãos do irmão mais velho Pedro, a quem revela o seu segredo e a quem pede silêncio e cumplicidade. Mal disfarçando suas intenções, André retorna para viver a paixão que acha lícita, que manteria os laços indissolúveis da família, como desejava o pai, que daria continuidade aos brinquedos infantis, que cumpriria a sentença paterna de que não haveria felicidade possível para além dos limites da família. André interpreta ao seu modo a ciência paterna e ousa “mudar o lugar das palavras” inscritas na tradição. Essa é uma das leituras possíveis de Lavoura Arcaica. Apenas uma e feita em tom de paráfrase e que nem de longe consegue dar conta da potência narrativa da obra. Serve, no entanto, ao propósito de minha análise: mostrar que, em culturas em que o Estado não é a chancela de tudo, há liberdade para a criação artística sem censuras prévias. Deveria caber à sociedade, aos indivíduos, o juízo ético e estético das obras.
Destino diferente teve Rushdie que ousou reler o Alcorão e se aproximar do intangível, o que não pode ser tocado, sob pena de se pagar com a vida a liberdade do pensamento. Radicado atualmente nos Estados Unidos, Rushdie foi condenado a uma espécie de desterro ao se colocar como um intérprete da cultura mulçumana. Culturas fundamentalistas não admitem interpretações. Bastam a si mesmas. Possuem uma espécie de cegueira e de autoritarismo. São detentoras de uma verdade que não pode ser relativizada jamais. Manipulam signos e símbolos segundo sua conveniência. Ai daqueles que ousarem pensá-los por si mesmos, arderão no fogo do inferno.
Por isso, o mais recente episódio, no Brasil, envolvendo um veto à liberdade de criação artística, não deveria ficar sem discussão por parte da sociedade civil. Um dos episódios da produção cinematográfica “Rio, eu te amo”, com previsão de estreia em setembro, foi censurado pela Igreja Católica, representada pela Arquidiocese do Rio, detentora dos direitos de imagem da estátua do Cristo Redentor, patrimônio também da cidade e uma das sete maravilhas do mundo.
No curta dirigido por José Padilha, o personagem interpretado por Wagner Moura, sobrevoa de asa delta a estátua do Cristo Redentor e, em tom de desabafo e indignação, interpela-o sobre o abandono afetivo que sente e sobre a situação da cidade: “Lá embaixo, você não vai, né? Lá embaixo, não tem amor, né?” Como bem disse Arnaldo Bloch, não se trata de um discurso sobre o Cristo, mas sim sobre a cidade. Esse, um direito de todos, não?
A estátua do Cristo Redentor é uma representação em pedra da ideia de Cristo. Não é o Cristo. Fico pensando, a partir dos exemplos que dei na literatura, que a imagem criada por palavras é igualmente imagem, pois, como já disse Foucault e antes Saussure, as palavras não são as coisas. Afinal de que a Arquidiocese é proprietária? Não é do Cristo.
Não faz sentido nenhum, se pensarmos que não há censura às charges, cartoons, grafites – que são imagens – e que se valem da estátua do Cristo, como imagem, para discursos sobre a cidade. É só abrir os jornais cariocas com regularidade. Ora, a estátua pode ser iluminada por cores da seleção vencedora da Copa, mas não pode ser por um discurso artístico? Definitivamente não entendo.
Em 1989, a Cúria Metropolitana proibiu que uma reprodução da estátua fizesse parte do desfile da escola de samba Beija-Flor, gerando polêmica semelhante a essa de agora, em que tanto Joãozinho Trinta quanto Padilha estavam discutindo a cidade e não o Cristo. Felizmente tais grilhões não se aproximam da literatura brasileira. Aproveitemos essa liberdade não tão vigiada e leiamos para sermos intérpretes autônomos.
Para uma cultura eminentemente audiovisual, uma imagem vale por mil palavras, mas ninguém há de negar que as palavras podem ser até bem mais explosivas e transgressivas. André, depois de consumar sua paixão pela irmã, diz: “Deitado na palha, nu como vim ao mundo, eu conheci a paz”.
(Analice Martins)