Lockdown

Quando a areia estancou

na ampulheta da sala

e o domingo

não mais foi véspera

de uma segunda-feira qualquer,

então,

o vento passadiço

anunciou que as horas

se arrastariam longas

e sem direção.

 

(Analice Martins, 03/05/2020)

 

 

 

 

“ISSO AINDA NÃO É POESIA”

 

Porque faço versos sobre acontecimentos,

insisto em fundir sujeito e objeto,

gosto da efusão lírica,

vez ou outra, recupero a infância insepulta

e deixo a memória brincar comigo.

*

Mas também invento,

tento resgatar do limbo

palavras perdidas

e suas faces ocultas.

*

Procuro, então, a chave

e peço permissão para entrar,

como bem me ensinou Drummond.

(Analice Martins)

Esconde-esconde

Para André

– Posso ir?

– Ainda não!

– Já posso? Que silêncio… Dá uma pista.

– Tá frio.

– E agora? Tá quente? Ana, fala alguma coisa! Você tá aí ainda?

– Um, dois, três…

– Não gosto de escuro, eu tropeço, você sabe.

-Tá quente!

– Haha! Achei!!! Te enganei, sua boba, eu não tenho medo.

 

Analice Martins (Grussaí, 23/12/2018)

SEGREDO

O que um livro guarda

nenhuma traça perfura.

*

O oco no papel

não cava um vazio.

*

O que um livro guarda

a água não dissolve.

*

A tinta diluída

não apaga o eco.

*

O que um livro guarda

não se esconde no papel nem na tinta

*

O que um livro guarda

cobre vazios e faz eco.

*

O que um livro guarda

só existe na imaginação.

 

Analice Martins (Grussaí, 18/03/2018)

Xeque-mate

A cidade esquadrinhada no mapa

parece estática:

linhas e fronteiras domadas

em legendas ordenadas.

*

A cidade ao rés-do-chão

é labirinto de passos perdidos,

retórica de deambulações

e falas em transe.

*

A cidade que avisto

do alto do arranha-céu

tem uma geometria previsível.

*

Mas a outra que os olhos percorrem

com a sola dos pés

é tabuleiro de xadrez.

 

Analice Martins – Rio, 26/02/2018