Já não bastasse o espanto diante do trágico incêndio em Santa Maria na madrugada de 27 de janeiro, espantei-me também com as páginas do primeiro caderno do jornal “O Globo” na segunda seguinte. Nenhuma seção. Um corpo só. Uma única notícia. A página inteira. O caderno inteiro em chamas. Encabeçando imagens e “leads”, um texto que logo me atropelou. Habituada à linguagem referencial, transparente e insípida do jornalismo, tropecei nas palavras que se erguiam diante dos meus olhos. O que lemos todos era muito mais do que um depoimento em primeira pessoa. A voz lírica do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar condensou os sentimentos de muitos: “Morri em Santa Maria hoje./ Quem não morreu?/ Morri na rua dos Andradas, 1925./ Numa ladeira encrespada de fumaça”.
O trauma, quase sempre, nos rouba a linguagem e estilhaça a comunicação, mas o poeta gaúcho conseguiu não emudecer diante do horror. Embora diga no verso final que “as palavras perderam o sentido”, sabe que só à literatura resta ainda a perpetuação de algum sentido. A literatura pode dizer o indizível, não “o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa”, como já nos alertou Guimarães Rosa.
As referências que aparecem no poema, tais como boate, fumaça, Santa Maria, Rua dos Andradas, 27 de janeiro de 2013, mais de duzentos e quarenta jovens compõem dados e circunstâncias. Não é, entretanto, nessa factualidade que o sentido se constrói, até porque nela só há desrazão e falta de nexo. Por que a morte chegou tão prematuramente para essas “crianças universitárias” como disse o poeta?
Fatos e fotos são pilares do jornalismo. A informação nua e crua repousa numa linguagem que, para não escapar à objetividade, deve ser o mais familiar possível, colada no cotidiano. Clareza é exigência nesse tipo de discurso. Fugir, portanto, às ambiguidades, aos sentidos figurados e à subjetividade é uma espécie de código para a linguagem jornalística. Tarefa bem difícil, pois, já que as palavras não são as coisas, elas comumente nos trapaceiam e surpreendem. Portanto, a camisa de força imposta ao discurso jornalístico quase sempre é uma falácia.
O que ocorre é o seguinte: na linguagem referencial ou denotativa, a empregada pelo jornalismo convencional, as palavras devem ficar a reboque dos fatos, já na linguagem poética ou conotativa, os fatos é que vêm puxados por ela. Nesse caso, a linguagem e a intenção de quem a emprega determinam, selecionam, ocultam e hierarquizam os fatos. Talvez, por isso, nos sintamos mais enredados diante da literatura. Ela nos envolve em sua teia, desorienta-nos num primeiro momento, para, depois, devolver-nos sentidos novos e impensados.
Assim, o uso da primeira pessoa na poesia é abrasador: “Morri sufocado de excesso de morte;/ como acordar de novo”? Por estranho que pareça, ao assumir essa primeira pessoa do discurso, o poeta transforma em próximo o que é distante, em coletivo o que é individual. Ou seja, particularizando a dor e o horror, o poeta consegue transcender os fatos, desmaterializá-los e transformá-los em linguagem a ser prolongada e compartilhada.
Walter Benjamim, um dos mais importantes pensadores da cultura da primeira metade do século XX, em seu conhecido ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, assegura que “a informação só tem valor no momento em que é nova”. Ora, se está condenada à obsolescência, não pode fazer os fatos em si sobreviverem ao tempo. Para serem parte da memória coletiva ou individual, os fatos devem estar organizados em algum tipo de linguagem plurissignificativa que nos afete.
É por isso que nem sempre o realismo documental, nas manifestações artísticas, é capaz de nos afetar verdadeiramente. Os muitos detalhes e pormenores, as longas descrições espaciais ou psicológicas, a obsessão pela precisão podem, ao contrário, nos embotar os sentidos. Para perceber, temos que estranhar, temos que desfamiliarizar olhos e sentidos, deslocá-los de suas percepções habituais. Às vezes, é no silêncio e na ausência que os sentidos se estruturam.
Quando comecei a ler o belo poema de Fabrício Carpinejar, naquela segunda-feira, fui estranhando as repetições do verbo “morrer”, do advérbio “nunca”, da conjunção “porque”. A linguagem jornalística finge não saber que as repetições intensificam sentidos e, portanto, são necessárias. Finge não entender que o azul não é azul, “o azul é cinza, porque a fumaça corrompeu o céu para sempre, e anoitecemos em 27 de janeiro de 2013”.
Não é à toa que o jornalismo literário toma emprestados à literatura vários de seus procedimentos narrativos para melhor dizer os sentidos da realidade. Controvérsias à parte, devemos reconhecer que é na arte que o “horror” deixa de ser apenas um fato para transcender o contexto que o produziu e se lançar como experiência de todos que não a viveram diretamente, mas que, ao lê-la, na pintura, no cinema, no teatro e muito especialmente, na literatura, possam também dizer “Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa”(…)/”Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram”.
(Analice Martins)