“Tudo desmorona, tudo cai hoje”, assim reage Sonja, dona de uma loja de lingerie numa galeria decadente do centro de Buenos Aires, quando o proprietário de uma papelaria, seu vizinho há vinte anos e amante fortuito do passado, decide vendê-la.
É a ilusão perdida, são as ruínas do sonho europeu, sequer entrevisto na fotografia, que o filme O abraço partido (2004), de Daniel Burman, retrata. Nenhuma visão pujante, nenhum cenário europeizado, apenas o desejo da cidadania europeia, representado pela busca do passaporte polonês. O encontro com as raízes ignoradas sinaliza, simultaneamente, uma porta de saída e uma de entrada para o jovem Ariel Makaroff, que carrega, no siso e na tristeza, a narrativa do abandono pela figura paterna. O passaporte lhe conferiria a possibilidade de ir, de pertencer a outras culturas, libertando-o e lhe acenando algum futuro, ainda que ilusório.
Ariel, cujos avós maternos chegam à Argentina refugiados do comunismo polonês e cujo pai judeu parte de Buenos Aires para lutar na guerra do Yom Kippur, percorre a pé, mas sempre retornando para o bairro e para a galeria comercial da loja de sua família, uma Buenos Aires sombria, partida, desiludida, pós-crise financeira, na bancarrota em que pequenos comerciantes apenas lutam para sobreviver.
Enquanto a avó materna quer queimar seu passaporte para esquecer o horror e a perseguição sofridos em Varsóvia, Ariel vê nele a possível saída para sua vida pessoal, encurralada pela ausência paterna e pela decadência financeira da capital argentina.
Mas aquele que ser quer europeu ignora tudo o que diga respeito às raízes polonesas. Nos trâmites legais para a conquista do passaporte, mal esconde seu desinteresse por essa história. É cômica a cena em que se esforça para pronunciar o nome do ex-presidente Lech Walesa, do papa João Paulo II (Karol Wojtyla) e do cineasta Roman Polanski.
Ariel não quer ser polonês, embora diga que precise sê-lo urgentemente, bem como não revela maior intimidade com a cultura judaica. Ariel desconhece a própria história: encarcerado na dor da ausência paterna, sente-se preterido; inseguro no amor, abandona a namorada e mantém um caso com uma mulher casada – Rita; indeciso profissionalmente, desenha com desenvoltura, mas não consegue concluir o curso de arquitetura que diz querer fazer na Europa, contando para isso com o seguro-desemprego que a cidadania lhe ofereceria. Refém de sua história de desajustes e desacertos, percorre as ruas do seu bairro na capital argentina, sempre afoito, entrando e saindo da galeria, deslocando sem fixar-se. A cidadania almejada é muito mais refúgio para essa encruzilhada pessoal do que identidade pretendida como forma de aquisição/recuperação de outras pertenças.
Talvez seja menos nos conflitos de Ariel que se situem as tensões do terceiro mundismo argentino tão bem retratado pelo cinema dos anos 2000. Talvez seja muito mais no olhar que ele empresta a essa realidade que cruamente o circunda, sem fetiches europeus, que se perceba a dura constatação da “queda do paraíso”, como afirma em tom bem mais contundente e desesperado o irmão mais velho, Joseph, que abdica do sonho de ser rabino e se torna comerciante: “Ver tudo cair em volta é difícil”.
É no desespero do irmão que se expõe a crise da Argentina, cujo cinema tem, por uma opção estético-político “do dentro”, traduzido algumas tensões periféricas das cidades latino-americanas. Joseph percebe que importar “não dá mais” e deseja investir em outras atividades, como a criação de abelhas, o que rende uma bela e irônica metáfora ao filme com a inadequação da abelha-rainha trazida pelo pai aos ares argentinos. As atitudes de Joseph opõem-se ao espírito blasé de Ariel, que brinca com a tradição judaica, ao afirmar que “… talvez o Talmude explique a desvalorização na Argentina”.
O diretor Daniel Burman vale-se de uma sutileza narrativa: captura pelo olhar de Ariel, por suas andanças, por seu incessante trânsito, toda a “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau, que estilhaça a estabilidade de uma identidade fixa e que rouba de Buenos Aires a pretensão ao paraíso, como também (ou tão bem) revela o filme Conversando com mamãe, de Santiago Carlos Olves, lançado no mesmo ano, e que expõe, no âmbito familiar, uma história também partida tal qual a da Argentina. Com o desemprego, Jaime vê-se obrigado a se reencontrar com seu passado e consigo mesmo. Ao procurar a mãe, uma octogenária, para convencê-la a sair do apartamento em que mora porque precisa vendê-lo, dá-se conta de que, para além da crise financeira que atravessa com o desemprego e a venda dos bens, sua própria situação de cidadão comum (classe média, marido e pai de família pacato) rui. Neste filme, como no de Daniel Burman, é no abraço refeito que se atenua, pela perspectiva “do dentro”, o impacto do fora: da crise político-econômica.
As tensões identitárias das minorias étnico-religiosas, somadas aos muitos trânsitos provocados pela globalização, emprestam à percepção de Michel de Certeau sobre a cidade, como “teatro de uma guerra”, um relato a mais, ácido e cortante.
(Analice Martins)