Em setembro, fui surpreendida por um convite do João Doescher do SESC Interlagos (SP) para participar de um evento assim intitulado: E aí, biblioteca pra quê? De forma direta, o João se apresentou como responsável pela programação cultural da instituição e me sondou a respeito do interesse em mediar uma mesa neste encontro que se realizará, agora, nos dias 8 e 9.
Confesso que estranhei inicialmente o convite. Afinal, ele não fazia qualquer referência à forma como chegaram a mim, uma mulher sem face, nem twitter, porém na rede como todos de certa forma. Como era um convite de outra cidade de um outro estado e não fora feito por intermédio do currículo Lattes, nosso facebook acadêmico, nem fazia alusão a terceiros que tivessem mediado esta indicação, quis saber primeiro como haviam me “localizado”. E a resposta veio da rede: um artigo apresentado no congresso da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), publicado nos anais do evento disponibilizados na net. O artigo se chama “Literatura para quê?”.
Faço esta breve narrativa não por cabotinagem ou para confirmar que quem cai na rede é peixe, mas para dizer que fiquei encantada com a iniciativa e a já conhecida seriedade e organização das unidades do SESC. Aliás, bem mais do que isso: seu trabalho com a comunidade.
A programação do evento pode ser encontrada em www.sescsp.org.br. Haverá mesas com especialistas como Zoara Failla, gerente de projetos do Instituto Pró-Livro, Ana Dourado, assessora técnica do Ministério da Cultura, além de exposição de trabalhos de bibliotecas móveis, itinerantes, bem como de projetos de leitura. A abertura do evento será feita pelo diretor de cultura do SESC SP, o campista Danilo Santos de Miranda, de quem o professor Aristides Soffiati também falou em sua última coluna de domingo.
Importa é que a leitura estará lá como discussão prioritária da cesta básica de nossa formação subjetiva e social, de nossa condição de existência humana. Muito especialmente a leitura literária. Quem quiser ter uma ideia, basta acessar o link com as respostas a esta questão (biblioteca para quê?), colhidas previamente de especialistas e promotores da leitura, a título de apresentação e de divulgação do seminário.
Importa também pensar que bibliotecas não são espaços apenas guardiães de um patrimônio cultural. Devem ser espaços físicos ou virtuais, fixos ou móveis, públicos ou privados, pessoais ou comunitários, onde a leitura possa dar vida aos livros ali recolhidos e ser o processo dinamizador do conhecimento, da descoberta dos mundos suspensos no “reino das palavras”, da ludicidade e da estética necessárias ao homem. Portanto, o que está em jogo é a representação que temos destes espaços, como os vemos, como os frequentamos, como temos acesso a eles, o que esperamos deles, que utilidade a eles atribuímos e, sobretudo, como desejamos estar neles. Ora, para um país de não-leitores, em que a educação não é para todos, em que professores recebem salários indignos e não têm planos de carreira justos, em que professores, mesmo os de Letras, não são leitores, urge redimensionar os espaços de leitura e torná-los acessíveis, acolhedores, eficientes.
A manutenção do acervo, sua organização, sua estrutura espacial, as políticas de planejamento voltadas para uma dinâmica cotidiana de mediação da leitura, a atenção à diversidade do público, seus interesses, suas dificuldades são ações cruciais para democratização das informações e da experiência estética.
Desconfio, no entanto, que a pouca procura pelas bibliotecas, no Brasil, não se deva apenas à sua escassez, sua distribuição desigual pelos municípios, seu precário estado de funcionamento, quando físicas, mas a um fator prévio e desestruturante: a incredulidade no poder transformador da leitura, nessa espécie de ascese que ela pode promover, ainda que não sejam poucas as experiências conhecidas. É este descrédito que nos marginaliza e que inviabiliza os esforços feitos no sentido de promoção da leitura. Parece que é preciso provar, diariamente, as habilidades cognitivas que a leitura traz: associar, comparar, inferir, derivar, memorizar etc. As competências adquiridas (informações, conteúdos) são mais visíveis, mas não são suficientes para provar a necessidade de ler.
Em uma realidade cujos signos vão muito além da palavra escrita ou oral, parece óbvio que ler deve ser uma prática sociocultural mais abrangente que a decodificação de palavras. Esta constatação semiótica só reforça a urgência da compreensão da importância dos processos de leitura para a cognição e a imaginação. Aquele que não é capaz de imaginar permanecerá refém de uma realidade empírica por vezes idiotizante.
Deve-se ler para conhecer, para transformar, para purgar, para evadir, para entreter-se, para, enfim, permanecer e postergar a morte, como nos lembra Sherazade. Por isso, é preciso entender que bibliotecas não guardam apenas livros, guardam a vida mesma e que guardar uma coisa é, como diz o poeta e filósofo Antonio Cícero, “olhá-la, fitá-la, mirá-la por /admirá-la, isto é, iluminá-la e ser por ela iluminado”.
(Analice Martins)