Por que, afinal de contas, o discurso do escritor Luiz Ruffato causou tanta polêmica na cerimônia oficial de abertura da Feira do Livro de Frankfurt na terça-feira anterior? Para quem conhece sua relação com a literatura, seus romances e contos, não houve ruídos nem inadequação. Para os que não conhecem sua produção literária nem tampouco a literatura brasileira, lá representada por uma delegação de setenta escritores, foram muitos os rumores que criou a verve político-literária do premiado escritor, cujas obras já foram publicadas em países como Itália, França, Alemanha, Argentina.
Nesta cerimônia falaram, além dele, a escritora Ana Maria Machado, presidente da ABL, e o vice-presidente do Brasil, Michel Temer. A Ruffato coube a palavra inaugural, como escolhido entre os escritores brasileiros, para tal missão. Que Ziraldo não tenha se sentido representado, que Nélida Piñon tenha feito ressalvas à aparente depreciação retratada na fala do autor de Eles eram muitos cavalos (2001), nada disso deve embotar a crua e dura realidade do que foi dito. Seu discurso não foi ufanista, nem hiperbólico. A condição de país homenageado pedia uma apresentação, e ele o fez ao seu modo engajado e crédulo, de quem entende a utopia como um lugar a ser alcançado e não como uma quimera.
Ao expor nossos paradoxos socioeconômicos, com estatísticas e números cirúrgicos, apenas pretendeu, creio, colocar o dedo em nossa ferida. Narcísica, registre-se. Ao lançar a reflexão sobre o lugar do escritor em país ainda periférico nesta fase do capitalismo tardio e defender a literatura como compromisso, não obliterou a diversidade das tendências em nossa literatura contemporânea, mas tão-somente assinalou seu projeto político-literário ainda mais notório nos cinco volumes de Inferno provisório. A pena de Ruffato sempre expôs nossas vísceras com a consciência de que a forma escolhida para representá-las não flerta com um realismo documental convencional. A fotografia fragmentada e em ruínas de nossa condição à margem colore sua obra com o sombrio da falta de perspectivas para que são empurrados os personagens, por exemplo, de Eles eram muitos cavalos. Não à toa o romance termina com uma tela preta, espelho de nossas misérias. Ao abrir mão da palavra nesta página última, Ruffato quis mostrar que, frequentemente, o trauma é indizível. É um fato maior que a palavra.
Ao enfatizar, ainda uma vez, sua trajetória de inclusão social, por meio da educação e da leitura – do acesso ao verbo-, ao não escamotear suas origens (filho de um pipoqueiro semianalfabeto e de uma lavadeira analfabeta), sua condição de trabalhador desde cedo (balconista, caixa de botequim, operário têxtil, torneiro mecânico, jornalista), Luiz Ruffato deixou claro que todo escritor deve saber o lugar de onde fala, em nível pessoal ou coletivo. Tal engajamento não macula em nada os imaginários criados pela literatura. Ruffato sabe que a literatura não é documento, tanto assim que implode a estrutura ilusionista do realismo histórico, chamando a atenção do leitor para a palavra que cria a realidade verossímil que se descortina diante de seus olhos. Por isso, não hesita em dizer que escreve para afetar o leitor, porque acredita que a palavra tenha esse poder transformador e libertário.
Ora, mencionar nossas feridas (o genocídio dos índios, a escravidão de três séculos, a hipocrisia, o machismo, o analfabetismo) não significa depreciação, nem “falar mal de”, mas ter a coragem de se olhar no espelho e entender a rasurada identidade brasileira. Hipocrisia é não falar disso. Hipocrisia seria declarar que somos a sétima economia do planeta, sem dizer que ocupamos, entretanto, o terceiro lugar entre os mais desiguais. Hipocrisia é dizer que a seleção dos setenta escritores foi racista porque nela só havia um negro – Paulo Lins, autor de Cidade de Deus. Isso não parece a lógica decorrente de três séculos de escravidão e da consequente marginalização do negro? Em um país de não-leitores, como bem disseram Ruffato e Ana Maria Machado, não causa espanto que, talvez, noventa por cento dos escritores desta lista sejam ilustres desconhecidos para a maioria dos brasileiros. Espelho, espelho meu, não somos um país de leitores!
Qualquer lista é seletiva. Toda seleção implica exclusão. Toda exclusão é lícita desde que os critérios sejam explícitos e válidos. Como país homenageado, adotaram-se critérios de representatividade. A condição racial é apenas uma das variantes da identidade cultural da nação. Não pode ser analisada por si só. Por outro lado, também não é verdade que critérios literários ignorem as variantes de etnia, gênero, escolaridade etc.
Hipocrisia é não querer ver que a estratégia argumentativa utilizada por Ruffato, iniciando seu discurso pelas ressalvas e adversidades que nos constituem, põe em relevo o que disse por último, ou seja: “eu acredito no papel transformador da literatura”. Triste é saber que a desistência de Paulo Coelho, uma semana antes da feira, só diz do narcisismo que nos acomete. Ser um entre os setenta, e não o escolhido para ser o orador oficial, feriu a vaidade do mago, que, apenas nessa hora, lembrou que é brasileiro.
Viva Ruffato, este sim um mago das palavras!
(Analice Martins)