Caminhar pelas ruas, frequentar mercados e espaços públicos é a forma mais interessante para se dimensionar a dinâmica de um lugar, entender os espaços de trocas sociais, simbólicas e linguísticas. Do alto de um ônibus, num city tour, vê-se tudo à distância, por mediações dos guias turísticos e através de um trajeto previamente selecionado. Lá de cima ou de dentro desses veículos, não se sente o cheiro nem o paladar de nada. Não há rumores nem ruídos.
Quando viajo, evito-os ao máximo ou os deixo para o final, depois de tudo percorrido e visitado pelo meu próprio arbítrio, segundo as minhas escolhas ou minhas errâncias. Sei, por outro lado, que, para otimizar o tempo, evitar desvios ou chegar a lugares inalcançáveis por meios próprios, um city tour e visitas programadas são de grande utilidade. Por isso, podemos afirmar que nem todo viajante é um turista típico – aquele que quer permanecer na sua condição ex(ótica) -, assim como nem todo turista tem o desgarramento imprescindível aos verdadeiros viajantes. Há também muitos matizes entre essas duas categorias que não chegam a se excluir de todo.
Não se trata de esconder ou camuflar os pertencimentos originários: de onde somos, de onde viemos, por e para que estamos em determinado lugar. Trata-se de querer ver o outro em seus ambientes de alteridade e não apenas a nós mesmos em ambiente estrangeiro. Por mais que nossa perfomance na língua ou dialetos dos lugares visitados seja convincente e nossos comportamentos revelem a assimilação ao lugar, a condição estrangeira não tem razão para ser disfarçada. Ela é, antes de tudo, um potente ponto de vista sobre as culturas. Todo pensador da própria cultura deveria também se colocar em condição de estranhamento.
No artigo anterior, comentei minhas impressões sobre Marseille, no sul da França, que se repetiram em outras cidades visitadas da Provence. Em especial, em Avignon. Com os movimentos da globalização e do “cosmopolitismo do pobre” (conceito do crítico Silviano Santiago), a noção de uma origem ou pertencimento únicos cada vez mais se esfacela em proveito de identidades multiculturais.
Vi fisionomias chinesas, japonesas, sauditas, libanesas, marroquinas, tunisianas, argelinas, indianas falando francês, algumas (a maioria) com os acentos regionais de seus lugares de origem ou de seus pais, outras sem acento algum. Nessas horas, lembro sempre de Caetano Veloso proclamando: “Minha pátria, minha língua”! Por esta equação, ser de um lugar implica apossar-se do corpo de uma língua, por onde se dão as experiências sociais da comunicação e das trocas. Conforme eu ia mudando de cidade, com meu “francês parisiense colonizado”, eu ia acostumando meus ouvidos às diferenças regionais para poder entender. Experiência estranha e meio esquizofrênica: não ser do país e usar a língua oficial do colonizador diante de outros que são ou estão no lugar, mas que não escondem seus múltiplos pertencimentos.
Longe dos cities tours, fui entrando em livrarias, sebos, lojas e me deparei com dois livros que saciaram um pouco minhas inquietudes. Creio que nenhum dos dois esteja ainda traduzido no Brasil, mas imagino que não tardem. Foram publicados em 2012 e 2013.
Um deles apenas folheei por mais de uma vez. O outro comprei. O primeiro é a narrativa de cunho biográfico chamada “Je suis Tzigane et je le reste” (Eu sou cigana e permaneço). É o relato de uma jovem romena refugiada, Anina Ciuciu, sua trajetória de inserção na cultura francesa e sua chegada à Sorbonne. O segundo é organizado por Edgar Morin e Patrik Singaïny e se chama “La France une et multiculturelle” (A França una e multicultural).
Este livro se organiza a partir de um artigo de Morin de 1991, revisitado e ampliado, sobre a identidade francesa em suas “possíveis origens”, suas mutações por força da imigração e do artigo de Singaïny, que afirma que “ser cidadão, na França, não significa ser necessariamente francês”. Além dessas propostas centrais dos organizadores, há 11 cartas de intelectuais que participam dessa identidade cultural híbrida, de duplos pertencimentos. Seus nomes dão conta do que falo: Sabah Abouessalam, Marc Cheb Sun, Misako Nemoto, Yu Shuo- Bossière, Nelson Vallejo-Gomes, Manuel Valls, Nacira Guénif, entre outros.
É desta última, socióloga da universidade Paris-Nord-XIII, que traduzo, livremente, algumas linhas que resumem as ideias expressas no título deste meu artigo: “ ‘Ser’ de uma nacionalidade exprime não um estado (civil), mas um processo que conjuga, sem nunca reconciliá-las , as provas mantidas em tensão pelo tempo que passa e pelo contexto em que elas se desenvolvem: tornar-se de um país, identificar-se aos seus discursos, adotar suas narrações, habitar seus lugares, instalar-se em seus hábitos(…), distanciar-se das fronteiras, cruzá-las, se possível, relevar as memórias, atravessar os períodos, viver momentos que se agregam e fazem sentido. Nenhuma versão destas provas conjugadas equivale à outra nem pode se assemelhar a ela.”
(Analice Martins)