Crianças em museus não são fato incomum. Acompanhadas pelos pais ou professores, contam, às vezes, com estratégias direcionadas especificamente a elas, além de monitores treinados. A espetacularização das exposições que correm o mundo contribui ainda mais para esta etapa formativa da educação humanística.
A internet pode nos introduzir em qualquer museu, transportar-nos para salões às vezes inacessíveis ao nosso contato direto. Mídias portáteis (cds, dvds) também podem cumprir tal função. Mas insisto, ainda que démodée: a experiência do aqui e do agora, aurática, para usar o capital conceito de Walter Benjamin, é única. Poder olhar uma escultura, por exemplo, querer tocá-la sorrateiramente, sentir seu volume na experiência do próprio corpo, ver as tintas que não esmaeceram com os séculos, tapetes rijos e imponentes em suas dimensões, mobiliza todos os nossos sentidos e cognição.
Reafirmo essas impressões, porque estou na Provence. Como Marseille em 2013 é a capital europeia da cultura, há uma programação intensa e diversificadíssima para todo o ano e também para as adjacências, como Aix en Provence, Avignon, Les Baux etc. Investimento de milhões de euros, mas que está valendo cada cent. Há o que será temporário e o que permanecerá como espaço construído para a cidade, como, por exemplo, o MUCEM (Musée de Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée) e a Villa Méditerranée, em Marseille.
Nesta cidade, a segunda maior depois de Paris na França, com quase um milhão de habitantes, há uma grande e legítima preocupação com a identidade mediterrânea, mote de boa parte dos eventos. Marseille é cosmopolita, diversa étnica e religiosamente, ensolarada, aberta para o mar e suas viagens. É porta e porto de entrada e de partida. É, portanto, uma cidade que tem que exercitar o diálogo e a tolerância já que a diversidade a atravessa como o próprio mar.
Há algum tempo, ouvi um parisiense, de ascendência argelina, dizer que, quando andava pelos Champs Élysées, uma das avenidas mais nobres de Paris, sentia-se invisível, todos fingiam não vê-lo. Mas como? Era um jovem de quase dois metros de altura. Segregados nos banlieues, os bairros da periferia parisiense, sua travessia pela cidade parecia custosa. Mas Paris é também negra, árabe, mulçumana. Quem ainda insiste em não ver isso?
Percebi (mas posso estar equivocada, por isso digo que são apenas impressionismos) um movimento contrário em Marseille, pelo menos um discurso preocupado em marcar toda a diversidade que o mediterrâneo reuniu lá. Já estou em outra cidade, Aix, mas deixei Marseille com a imagem das crianças de uma escola pública, andando de mãos dadas, dois a dois, depois que saíram da exposição Les Mediterranées, acompanhados por seus professores. Meu percurso se cruzou com o deles. Confesso que, por alguns momentos, segui-os tanto no extraordinário espaço construído para a exposição, ouvindo todas as explicações, comentários e perguntas que a gentil monitora lhes fazia, como, por coincidência, no retorno do cais, onde estava instalada a exposição, ao interessante bairro Le Panier. Elas caminhavam de mãos dadas. Sem semblantes contrafeitos. Eram louras, negras, árabes, até japonesas. Tout simplement!
Como a cidade está em festa e em ebulição e as programações têm períodos determinados, a movimentação é intensa. A exposição Les mediterranées é um projeto ousado, em espaço todo montado por containeres, vazado para o mar, organizado a partir do mote de um Ulisses, incendiário de mares e fronteiras, tanto o mítico quanto os de todos os dias, desencantados e perdidos. Múltiplos eram os materiais: objetos, filmes, animações. Tróia, Cartágena, Atenas, Alexandria, Roma, Veneza, Gênova, Istambul, Argélia,Tunísia, Marselha..
Havia grupos pequenos e maiores de adolescentes, alguns ouvindo explicações, outros com pranchetas onde respondiam às perguntas de uma espécie de questionário ou formulário. Tentei ler, mas fiquei com vergonha de lhes pedir. Afinal, adolescente é adolescente!
Mais encantada ainda fiquei no Museu Cantini, também em Marseille, onde ocorria uma grande exposição da obra surrealista do pintor chileno Roberto Matta. Havia telas monumentais e nada figurativas. Matta foi um pintor extremamente engajado do ponto de vista social e sua obra é expressão desta postura. Ora, o surrealismo bem como o impressionismo, o expressionismo e os outros “ismos” vanguardistas desconstroem os referentes e os inserem numa existência artística nem sempre decodificável num primeiro momento. Fiquei olhando aquelas crianças de 5, 6 anos no máximo, de mãos dadas, contemplando telas de 20 metros de largura por 15 de altura algumas. Fiquei imaginando que no ludismo da imaginação infantil, talvez, o surrealismo não lhes fosse um espanto, nem precisasse de tantas decodificações.
O fato é que não devemos deixar as crianças apenas reféns da tecnologia – que é também material criativo inegável -, devemos também ensiná-las a ver a partir de outras telas que não apenas aquelas que podem se apagar com um simples clique.
(Analice Martins)