O amor que agora ousa dizer seu nome está mais do que no ar. Está onipresente nas telas de cinema. Não se trata mais de filmes de nicho ou de gueto, mas de uma estética universalizada e com muita visibilidade. Digamos: do armário para a sala sem restrições de público.
Seja lá por que interesse for (antropológico, sociológico, estético ou voyeurista), as produções cinematográficas com temática homoafetiva têm gozado de um status glamourizado e sem fronteiras, com direito a palmas de ouro e quiçá o tapete vermelho do Oscar. Refiro-me a quatro filmes em especial: “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, “Um estranho no lago”, de Alain Guiraudie, “Além da fronteira”, de Michael Mayer, e “Azul é a cor mais quente”, de Abdellatif Kechiche. Todos estruturados a partir do sexo desreprimido e visto como força vital das relações afetivas. Sem medo de ser feliz.
Há aproximações e distâncias entre os filmes em questão: os mais líricos, os mais engajados, os que soam panfletários, os com preocupações estéticas e não apenas temáticas, os com câmera na mão, os com ângulos fechados. Destaque sem dúvida para a produção brasileira, sem exageros ou nacionalismos, mas porque é obra que consegue reunir o pessoal e o político, o privado e o público, o dentro e o fora, sem esforço e sem esquematismos. Mas este e “Além da fronteira” ficam para o artigo da próxima semana.
“Um estranho no lago” talvez seja, para os reféns das americanas produções pasteurizadas, aquelas cuja previsibilidade dá sono e bilheteria, realmente estranhíssimo. Primeiro pelo cenário único: o lago e a sua vegetação adjacente. Diria até claustrofóbico, embora isso possa parecer paradoxal, tendo em vista a imensidão do lago que serve de encontro exclusivo para homens em busca de sexo com outros homens. O despojamento do cenário, com marcações de palco teatral, e dos corpos completamente nus, serve aos poucos personagens cujos perfis vão-se delineando em cenas repetidas de idas e vindas, durante poucos dias suficientes para o desenrolar de uma trama que envolve sedução, erotismo, muito sexo – a linguagem daqueles encontros fortuitos-, companheirismo, traição e mortes. Se a primeira parte do filme parece um tanto quanto monótona do ponto de vista do enredo, a segunda, depois do assassinato de um dos frequentadores do lago, ganha o ritmo de um “thriller” policial muito refinado. A relação entre Franck, que testemunha a morte do amante do sedutor Michel, seu algoz, vai bem além das questões que possam ser restritas ao âmbito das relações homossexuais. Questões de qualquer relacionamento: desejo, entrega, (des)confiança, ambiguidades, ética. Neste sentido, “Um estranho no lago” consegue um grande tento. Parte de um contexto aparentemente fechado, do “closet”, para a universalidade das relações e de seus sentimentos. O que mais perturba, talvez, seja tal opção narrativa: investir no particularíssimo para derrubar seus tabus, suas fronteiras, para mostrar o ordinário e o comezinho das relações. Não é filme de gueto: nem bibas, nem bofes; nem bichas, nem barbudos. Homens apenas, eretos em seus desejos. Ainda assim há de parecer, aos olhos virgens, muito estranho.
“Azul é a cor mais quente”, o mais badalado dos quatro citados, vencedor do Festival de Cannes em 2013, elogiado por Jeanne Moreau, um filme pós-Sarkozy, sem dúvida, são as sinceras confissões de uma adolescente, Adèle, a bela Adèle Exarchopoulos. Inquieta em seus desejos, entediada em sua rotina, insatisfeita em suas relações até então heterossexuais, vê seu mundo se colorir de sensações a partir do real e simbólico cabelo azul de Emma, a não menos bela Lea Seydoux, a jovem artista plástica por quem Adèle se apaixona. Vale registrar, de antemão, que há um travo amargo e bem realista nessas confissões, o que não deixa o filme cair na esparrela dos deste gênero. É com um azul exuberante que Adèle se veste no final do filme para ir a “vernissage” de Emma, para quem também foi modelo vivo e de que já está separada há três anos. O filme é gay, mas não é rosa. O azul é uma cor mais quente sem dúvida.
Alvo de polêmicas, seja pelas longas cenas de sexo, com suor, rubor, exaustão, além de gemidos audíveis e críveis, seja pelas declarações de Lea Seydou sobre os métodos de filmagem de Kechiche, o filme é sucesso de público. Fui a uma sessão às 15h30min, em pleno domingo ensolarado do verão carioca, e não havia lugar sobrando. E são três horas de filme.
Se “Azul é a cor mais quente”, adaptação livre da “graphic novel”, de Julie Maroh, não traz nenhuma estranheza no roteiro, ou seja, trata-se do cotidiano de uma jovem secundarista da periferia parisiense, estudante de literatura e professora primária por desejo, cujos pais não têm grandes vislumbres intelectuais, nem por isso perde a força dramática. Suas atrizes são convincentes, seguem à risca uma estética de direção que privilegia o espontâneo, algum improviso, quer dizer, a fabricação da naturalidade cênica: pele e respiração sem maquiagens.
Em quase tudo, as referências de Emma são distintas das de Adèle, no que lê, no que conhece, no que come. Mas o sexo cria entre elas uma linguagem poderosa, quente, porém incapaz de sustentar a relação pelas contradições ou mesmo pela pouca maturidade de ambas. O fato é que a perda torna-se mais amarga quando a linguagem do sexo ainda continua a falar nos corpos que se separam.
“Um estranho no lago” e “Azul é a cor mais quente”, embora partam de roteiros aparentemente bem distintos, trazem, para tela, não apenas a nudez dos corpos de seus personagens, mas sobretudo a nudez das relações.
(Analice Martins)