Na tela “Menino Morto”, de Candido Portinari, as lágrimas que escorrem do rosto da menina são desproporcionais ao tamanho de seu rosto. Lágrimas enormes, grandes como a miséria nordestina. A irrealidade destas lágrimas não perturba a percepção estética da tela. Ao contrário, traz-lhe um efeito de veracidade mais forte do que em certas fotografias jornalísticas.
No mês passado, assisti à exposição “Gênesis”, de Sebastião Salgado, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Presenciei uma cena muito curiosa. Uma senhora, acompanhada de amigos, exclamou diante da foto dos xamãs da tribo camaiurá do Alto Xingu:“Não, isso não é real! Isso não existe. É hiper-realismo”. Parei, voltei os olhos para observar mais uma vez a fotografia imensa, quase uma tela, disposta como outras entre as palmeiras imperiais. Cheguei a me aproximar para comprovar o que ela dizia. Acabei despertando minhas antigas resistências ao trabalho do célebre fotógrafo, críticas como a estetização da miséria, o sensacionalismo da pobreza, presentes em suas fotografias desde as exposições “Trabalhadores” e “Êxodos”. Relembrei comentários que lhe negavam o engajamento político comum à atividade fotojornalística.
O fato é que, até então distraída, passei a olhar a longa exposição com muita desconfiança. Para piorar minhas inquietações, via pessoas que já tinham tudo percorrido, carregando o enorme, pesadíssimo e caro livro-catálogo da exposição. A elas, provavelmente, não incomodou a impressão de excesso de realidade das fotos, algo que acabava descambando para o questionamento de seu estatuto de verdade, mesmo sendo a fotografia a mais mimética das artes.
De início, pensei na técnica da contraluz, utilizada por Salgado. Aquela em que a luz vem da frente do fotógrafo, embaçando a cena. Depois, criei uma segunda explicação para a implicância da senhora, que voltava a ser também minha. As fotos que estavam ao ar livre, fora dos salões do Museu do Meio Ambiente, deveriam ter sido impressas em um material especial para resistir à chuva e ao sol. Portanto, era essa a razão da impressão de falsidade, somada, no caso da foto referida, a uma espécie de “fundo falso”, um espaço escurecido e diluído. Apenas os índios em primeiro plano e nada mais. Fundo negro e fictício.
No mesmo fim de semana, fui a uma outra exposição de fotografias: “A vida em movimento”, do francês Jacques Lartigue. Ambas em preto e branco, com um século de distância, além das técnicas distintas. Como o próprio título da exposição já diz, as fotos selecionadas de Lartigue insistiam em capturar o instante, a velocidade, o salto, uma energia invisível. E conseguiam. Simulavam perfeitamente o real.Tanto assim que, colocadas em sequência, são uma forma de cinema.
Com o avanço da técnica e da tecnologia, a fotografia parece ter mudado suas intenções. Se, antes, seu intuito era evocar o real e capturá-lo. Hoje, tudo indica que sua razão de ser é ir além da realidade, atravessá-la e instaurar uma outra ordem. O fotoshop fez com que ela perdesse a credibilidade do real e se tornasse uma possibilidade de invenção. Nenhum problema haveria se ela não carregasse, na maioria das vezes, o ranço do cheiro da realidade, dos seus vestígios. Na hiper-realidade, os resíduos e vestígios que atestariam seus elos com o “acontecido” desparecem.
Por que, então, aquelas lágrimas expressionistas de Portinari são capazes de fazer chorar o desamparo, a dor e o abandono nordestinos? Por que, sendo parte de uma experiência vanguardista de representação artística, aquelas lágrimas “mentirosas” fazem “chorar” a verdade da terra que arde qual fogueira de São João?
Por que, na tela de Portinari como nas artes em geral, o falseamento da realidade pode não impedir seus efeitos de credibilidade? Por que a ficção pode, mesmo que torcendo o real, produzir sensações tão palpáveis? E por que as tecnologias contemporâneas de captura do real parecem esfumaçá-lo, fazendo com que perca sua tangibilidade?
Explicações para esta potência de realidade foram erguidas desde a Antiguidade Clássica. Platão e Aristóteles procuraram entender, ainda que de formas distintas, isso que chamamos de verossimilhança: a possibilidade de ser verdade, de parecer verdade. Para Platão, em sua alegoria da caverna, a realidade se esconde atrás das imagens. Para Aristóteles, a realidade pode estar na própria imagem.
Tal constatação aristotélica libertou a arte do tributo de realidade que lhe é cobrado. Aristóteles conferiu à representação autonomia estética. Aristóteles entendeu que, por intermédio da verossimilhança, a arte pode nos parecer mais real do que a própria vida. O problema existe quando o que se apresenta como a mais inquestionável das realidades, aquela capturada por um dispositivo mimético como a fotografia, provoca-nos um efeito contrário de distanciamento, como na reação da esperta senhora por quem passei.
Por isso, a arte nos é tão essencial, porque, sem ter a pretensão de fotografar a vida como ela é, pode, no entanto, trazer-nos os mais legítimos sentimentos e reações, fazendo-nos acreditar, conscientemente, que é ali que a vida pulsa e arde.
(Analice Martins)