Em 1873, Machado de Assis, em artigo intitulado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, reivindicou para si a condição de escritor de seu tempo, imerso na realidade histórico-social brasileira da segunda metade do século XIX. Poderia parecer desnecessária tal preocupação com seu lugar de reflexão, enquanto artista de sua época, mas, para um Brasil que havia recém-abolido a escravidão – que durara três séculos – e recém- ingressado no regime republicano, ou seja, que mal saíra da condição de colônia, entender e fruir a prosa machadiana talvez não fosse tarefa fácil. Aliás, ainda hoje não parece sê-lo.
Embora tenha tido, em vida, as honrarias de maior escritor do país, sendo o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, sua prosa ficcional era vista com ares e temáticas universais, estas que, seja a época, seja a cultura em que se manifestem, sempre serão atuais e bem-vindas: o amor, o ciúme, a traição, a hipocrisia, a memória, o humor. É óbvio que nada disso lhe pode ser negado e que, por isso mesmo, seja ele nosso escritor mais influente. Não por outra razão, o igualmente influente crítico literário nacional Antonio Candido afirma, no artigo “Literatura e Subdesenvolvimento”, do livro A educação pela noite e outros ensaios (1987), que, se Machado não tivesse sido refém da pouquíssima penetração da língua portuguesa e da projeção do Brasil no século XIX, ele teria sido o que o argentino Jorge Luís Borges foi para a Europa: um modelo, uma influência internacional, um escritor capaz de, na periferia do cânone literário europeu, ser uma matriz ficcional original.
Este lamento de Candido só corrobora a importância da obra machadiana para além das fronteiras nacionais. O que me parece ainda pouco explorada, para não dizer preterida, pelo menos nos estudos escolares do Ensino Médio, é a percepção de Machado de Assis como um “intérprete do Brasil”, ou seja, aquele cuja obra de ficção não esteve longe das tensões sociais da segunda metade do século XIX, mas, ao contrário, sem ter necessidade de explorar os ícones de nossa nacionalidade, como o bem fez José de Alencar nos planos temático e estrutural, incorporando a natureza e o índio heroificado como símbolos de nossa brasilidade, além de um vocabulário de origem tupi-guarani, conseguiu dar conta do Brasil de um modo não epidérmico. Conseguiu retratar as mazelas do Brasil sem mencionar explicitamente as contradições de um país que começava a comungar ideias liberais e republicanas tendo que lidar com uma sociedade pós-escravocrata.
São pouquíssimos os estudos críticos que identificam ou reconhecem na obra machadiana esta dimensão sociológica de interpretação do Brasil. Sim, porque a ficção é também uma forma de interpretar não só o psiquismo dos indivíduos como também a história político-cultural de uma comunidade, de uma região ou mesmo de um país. Os mais importantes estudos acadêmicos se preocupam em enaltecer a universalidade dos temas machadianos, mas não conseguem alcançar o fato de que sua universalidade não se dissociou da refinada análise de seu tempo. Seu maior mérito foi transportar para o plano estrutural da obra os resquícios da opressão senhor-escravo reinantes no Brasil nos três séculos anteriores. Esta atmosfera que nos relegava a uma posição atrasada, enquanto nação independente foi, inteligentemente, erguida na construção de um narrador, segundo o crítico Roberto Schwarz, sem credibilidade, repleto de desfaçatez e opressor: “Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote”. É assim que, abusadamente, o narrador faz gato-sapato do leitor a quem, com ironia, qualifica de “fino”, mas incapaz de compreendê-lo.
Roberto Schwarz é, neste sentido, o maior crítico da obra machadiana, porque não hesitou em perseguir as chaves de entendimento que o próprio Machado já anunciara em “Instinto de nacionalidade”: “Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo” (…) O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e de seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.
Ora, é este “sentimento íntimo” que Schwarz disseca, em Ao vencedor as batatas (1977) e Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo (1990), estudos capitais para se entender como não se pode dizer, em hipótese alguma, que o maior mérito machadiano está no universalismo de suas temáticas. Estas não podem ser analisadas sem a estrutura narrativa que as coloca de pé e de forma singular.
Ser, portanto, um “escritor de seu tempo” implica encontrar uma fórmula pessoal para, nos planos do conteúdo e da forma, ter como norte do projeto literário um “sentimento íntimo” de percepção da realidade pessoal e histórica que o circunda, fazer dele matéria literária e, com isso, não ter que ser refém de fórmulas estereotipadas, modismos ou tendências.
(Analice Martins)