Futuro do pretérito: verbete

O voo que o pássaro não alçou

O girassol que não abriu

A gota de orvalho que se pendurou na vidraça

O arco-íris que não saiu depois da chuva

A lagarta que não virou borboleta

A vela do barco que não inflou

A bailarina que perdeu a sapatilha

O bolo que não cresceu no forno

A corda do violão que se partiu

O verso que não se completou

O sim que se calou na garganta.

 

Analice Martins (Campos, 11/09/2024)

 

Poeminha de circunstância III (contra a ferrugem dos sentidos)

Aquele relógio branco

impassível

devora os minutos de um tempo

que não quer se represar.

*

Aquele relógio branco

cruel

me lembra, qual um epigrama,

que a felicidade é veloz e precária,

custa a vir e, quando vem,

não se demora.

*

Aquele relógio branco

esfíngico

também me sussurra arcaicamente

que, na aresta de um instante,

não se questiona o destino

de nossos passos.

*

Aquele relógio branco

tonto

não sabe que o instante que passa

passa definitivamente.

 

Analice Martins (Campos, 10/09/2024)

Infância

Lá,

o tempo brinca de esconde-esconde,

faz piruetas,

entra no trem fantasma

e solta as mãos na montanha russa.

*

Lá,

o tempo se abriga,

fecha as portas,

tranca as fechaduras,

se finge de morto,

e chora para sair.

*

Há quem grite: “eu quero tudo de lá”.

Há quem diga: “nunca mais lá”.

 

Analice Martins (Campos, 14/10/2023)

 

 

 

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Na foz de todos os versos

Em Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Marc Augé distingue os lugares de trânsito e de passagem dos que estabelecem pertencimentos e identidades. Classifica como “lugares antropológicos” aqueles em relação aos quais nos definimos, nos sentimos abrigados e nos percebemos. Nem todos os lugares de nascimento ou da infância são lugares antropológicos. Podem até ser lugares da memória – guardados ou banidos -, mas não são necessariamente antropológicos.

Atafona, no litoral sanjoanense no estado do Rio de Janeiro, tem uma geografia peculiar: confluência do mar e do rio Paraíba, mangue, maré cheia e vazante. Sofre também, há anos, com um fenômeno de erosão costeira em que o avanço do mar parece tudo engolir. Na poética de Aluysio Abreu Barbosa, Atafona constitui um lugar antropológico e fundacional, de maré cheia, que sempre lhe rendeu belos poemas, irrigando registros, imaginação e memória. Embora não estejam ainda reunidos em livro, esses textos espraiam-se em jornais impressos ou eletrônicos, guardanapos, frequentam festivais de poesia e já desaguaram no espetáculo teatral Pontal, encenado pela primeira vez em 2010, a partir da coletânea não só de poemas seus, como também de Adriana Medeiros, Antônio Roberto Kapi e Artur Gomes.

Em 2004, assisti a uma palestra sobre uma pesquisa de Mestrado intitulada Atafona, patrimônio mar adentro e realizada na Universidade Cândido Mendes (UCAM). O trabalho acadêmico da arquiteta Márcia Viana Hissa Azevedo analisava, inclusive de forma antropológica, o espantoso fenômeno erosivo dessa região. Não era apenas da sobreposição de plantas urbanísticas que a pesquisa tratava, mas de memórias, histórias, ruínas. Fui seduzida pelo título poético e sugestivo. Acredito que, em certo sentido, os versos de Aluysio Abreu Barbosa também façam esse percurso, escavando areia, casuarinas, casas, embarcações. Escavando e cartografando. Por meio da palavra, seus versos fotografam instantes, estilhaçam memórias e restauram ruínas, porque é próprio da palavra literária escavar, guardar e trazer à luz: mar adentro e mar afora. A escrita literária sobre um lugar pode, às vezes, restituir o que foi devastado e erodido, pode preservar casas e tijolos, tanto quanto pode tudo dissipar e reinventar.

Engana-se quem pensa ser a obra do escritor a poética de uma nota só. Há nela lugares distantes, outras praias, outras cidades, outros países, como, por exemplo, Kioni, Ítaca, Edimburgo, Nova York. Lugares distantes e igualmente relacionais. Mas parece ser para Atafona que o poeta sempre retorna, singrando mares, qual Ulisses retorna a sua Ítaca. O poeta é, ao mesmo tempo, Ulisses e Penélope: o que sai, o que parte; e o que fica, fia e tece: “tessitura/de seda espraiada sob a lâmpada do teto”.

Em “teia de antes”, o poeta recolhe parte da geografia física e patrimonial do pontal de Atafona nas ilhas do rio Paraíba do Sul, no cais de Ricardinho, na boca da foz, na igreja de Nossa Senhora da Penha. Recolhe e tece com ela uma outra geografia: a do afeto, daquilo que o afeta.

À primeira vista, “teia de antes” pode não se enquadrar como um poema lírico, de acordo com as definições mais rígidas da teoria da literatura, mas há um eu que, se não se assume na voz lírica diretamente, deixa-se fisgar na forma como captura o mundo à sua volta. Não há distanciamento nem descritivismo pitoresco. Ao contrário, há intensa fusão e contaminação.

No poema “Procura da poesia”, Carlos Drummond de Andrade nos adverte sobre o que não se constitui como poesia por ser, tão-somente, a cidade natal, a merencória infância ou os acontecimentos. Não são esses elementos tão decantados que emprestam aos versos sua poesia. Ou seja, não é com as coisas em si que a poesia se constrói. Para Drummond, “o que se dissipou/ não era poesia”. Portanto, não é com a “memória em dissipação” que se ergue um poema. Para que a memória seja poesia, é preciso presentificar o “antes”, é necessário escrever para não deixar dissipar, escrever para guardar, escrever para colocar de pé o que, no caso da poética de Aluysio de Abreu Barbosa, o tempo, o vento e o mar vão levando.

É com palavras e as suas “mil faces secretas” que se estrutura a poesia e que se fundam as realidades e as memórias. Nessa esteira intertextual, a também mineira Adélia Prado proclamou: “Inauguro linhagens, fundo reinos”. Faço coro com Adélia. A literatura funda reinos, muito mais do que os representa.

Na cena praiana da rotina de trabalho em que mesas de um bar e redes de pesca são recolhidas, há também o entardecer que se contempla: “o branco das garças/ bateu as asas do dia no escuro das águas”. O poema “teia de antes” mistura o corriqueiro e o ordinário das práticas cotidianas à flora e à fauna típicas da região. É, entretanto, na tessitura da seda da aranha, que se entrevê o ofício do poeta, entretido, entre(tecido), cabralinamente, na “teia tênue” de um “antes”. João Cabral de Melo Neto “tece a manhã”; Aluysio “tece o antes” na seda do dia que se vai, na memória que não quer se dissipar.

O gigante (qual o poeta), guardião dos mares, retorna a casa ao fim do dia, deixando “a si malhado na teia”, no texto-tecido de suas palavras. Assim como, no pontal de Atafona, Eros e Thanatos (vida e morte) se digladiam, na poética de Aluysio de Abreu Barbosa, há uma cartografia de pulsões em luta constante. Cada poema é uma geografia acidentada à espera de um leitor que se deixe emaranhar em sua teia.

Analice Martins

Rio, 24/01/2323

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teia de antes (Aluysio Abreu Barbosa)

 

a noite quedou sobre o cais do ricardinho

com a rede no fundo da canoa ancorada

nas ilhas do rio, até o branco das garças

bateu as asas do dia no escuro das águas

*

funcionários recolhiam as mesas do bar

e a aranha, as vítimas da sua tessitura

de seda espraiada sob a lâmpada do teto

à marcha de oito patas amarelas e negras

*

com a benção da penha, na boca da foz

afluíram ao outro a aranha e seu gigante

que só percebeu quando voltava à casa

ter deixado a si malhado na teia de antes

 

atafona, 01/06/15