“My face, your face, millions of faces in the morning’s mirrors”
(Richard Blanco)
Não há como negar que a escolha de Richard Blanco como poeta oficial para cerimônia de posse do segundo mandato de Barack Obama foi a reiteração do discurso de uma real identidade cultural para a América. Filho de exilados cubanos, Blanco nasceu na Espanha, mas foi criado nos EUA, em Miami.
Sua biografia é marcada por múltiplos pertencimentos, traço que sua poesia não esconde. Pelo contrário, essas condições plurais são vertentes fecundas para sua produção literária. Engenheiro civil por formação acadêmica, o escritor de 44 anos também fez o Mestrado em Escrita Criativa na Universidade Internacional da Flórida. Portanto, não é poeta apenas por vocação ou diletantismo. Aproveitou aquilo que os americanos, nesse sentido, têm de melhor e que nós, brasileiros, ignoramos ou preterimos: a profissionalização do escritor. Mas isso é matéria para outro artigo.
Publicou “City of a hundred fires”, “Directions to the beach of the dead” e, por último, “Looking for the Golf Motel”, sempre tematizando, seja pela recordação, seja pela experiência transfigurada em palavras, sua história pessoal escrita por fronteiras e atravessamentos da língua, dos cheiros, do paladar, da sexualidade. Frequentemente constrangido a negociar distintos pertencimentos, Richard Blanco transformou em matéria literária os muitos lugares de sua identidade cultural. Fez dela efetivamente uma “celebração móvel” na feliz definição do “papa negro” dos Estudos Culturais, Stuart Hall, um dos mais expressivos teóricos da diáspora na contemporaneidade.
Os estranhamentos do trânsito entre duas culturas ficam evidentes em alguns versos do poema “América”, de “City of a hundred fires”, que aqui traduzo livremente: “Eu falava inglês,/meus pais não./ Nós não vivíamos numa casa de dois andares/ com uma emprega doméstica;/nenhuma das meninas tinha cabelos de ouro;/ nenhum dos meus irmãos ou primos chamava-se Greg, Peter ou Marsha;/nenhum dos personagens negros ou brancos no Donna Reed/ tinha o nome de Guadalupe, Lázaro ou Mercedes;/ eles não comiam carne de porco no dia de Ação de Graças,/ eles comiam peru com molho cranberry”.
Diferentemente dos pais, cuja história de exílio é também de segregação, a criança que, com dois meses, vai para Miami é americana sem nunca deixar de ser também cubana. A relação com o sofrimento da mãe, que havia deixado em Cuba, em 1968, toda a família (pais, cada irmão, cada irmã, cada tio e cada tia), sem saber se voltaria a vê-los um dia, é a sombra, o cinza e a fenda que marcam toda e qualquer história de exílio e imigração. Ninguém lhes é incólume. O exílio sangra por gerações.
Escrever também pode ser um exorcismo de nossas lembranças, uma catarse de nossas feridas e a construção da história que se quer para si. Ainda que pelo viés intencional da ficção, o poeta consegue “fingir sentir que é dor/ a dor que deveras sente”. A homossexualidade assumida é mais um dos deslocamentos que sua poesia carrega. Ter-se criado em meio à comunidade cubana em Miami, pouco porosa à sua orientação sexual não o impediu de vivê-la de forma afirmativa, ainda que no Maine rural, onde reside atualmente com seu companheiro.
Tais condições de pertencimento não obstruem a universalidade de temas como a família, a relação frágil com o pai ou o amor que lhe são recorrentes e imperativos. São contudo variantes que matizam, como no arco-íris, o céu de sua obra. Em entrevista ao “La Bloga”, Blanco afirma seu encontro com as palavras (“eu me apaixonei” por palavras), que nunca prescindiram do rigor da lógica do engenheiro.
Se a corte democrata americana, com a interferência do próprio presidente, quis oficializar sua posse com a participação de um poeta que também representasse, pela latinidade, a explícita multiculturalidade americana e seu desejo de convivência plural nas questões de gênero e etnia, qual o problema? Obama foi eleito por essas “minorias” que somaram a maioria. Nada mais razoável que contemplá-las na cerimônia e nas ações políticas.
Na mesma entrevista, em maio de 2012, Blanco reflete sobre sua condição de escritor para além dos rótulos classificatórios da crítica especializada: “Sou um escritor americano que escreve sobre suas experiências de vida: as coisas que me movem e me obcecam como a qualquer outro poeta. No meu caso, essas questões são o lugar, a casa e a identidade cultural que surge da minha ‘participação’ na comunidade de exilados cubanos e que me faz também um escritor de Cuba, mas me reservo o direito de escrever sobre qualquer coisa. Estética e politicamente, não pertenço com exclusividade a nenhum grupo – latino, cubano, gay ou branco -, mas abraço todos. Boa escrita é boa escrita”.
No poema preparado para a posse, “Um hoje”, ousou sonhar e dizer na engenharia dos versos que “a esperança” é uma “nova constelação” e que deve ser “mapeada e nomeada por todos juntos”: “hope – a new constellation/ waiting for us to map it/ waiting four us to name it – together”.
(Analice Martins)