Não foi o registro memorialístico que me fez querer ler “A vida descalço”, de Alan Pauls. Recém traduzido no Brasil e publicado pela Cosac Naif, esse livro é antes de tudo um ensaio. O escritor argentino vasculhou suas experiências infantis e adultas atendendo, em 2006, ao convite da Editorial Sudamericana que publicava uma coleção temática sobre “lugares”.
Ao ficcionista e ex-professor de Teoria da Literatura coube a praia. Para ele, lugar por excelência da imaginação. As conceituações e reflexões sobre a relação de um intelectual com este lugar foram minha curiosidade maior. A própria ficha catalográfica classifica o livro como “ensaios argentinos”. Esta modalidade textual é bastante sedutora, pois, sem o tom tão assertivo dos artigos, dissertações e teses, permite não só a condução da escrita a partir de uma certa pessoalidade como também alguma provisoriedade do pensamento, algo que se testa e se esboça.
O tratamento estético da Cosac Naif é um atrativo a mais. Pauls abre o arquivo pessoal de fotos que inauguram cada seção do livro. Os quadros em preto e branco permitem que escolhamos as cores com que pintá-los na recepção de nossa leitura, já que é no leitor que as obras efetivamente se concretizam em seus horizontes de expectativa.
Alan Pauls é autor de uma trilogia sobre a ditadura argentina e de romances como “O passado”, filmado por Hector Babenco, além de contos, ensaios e roteiros de cinema. Neste ensaio autobiográfico, “A vida descalço”, é, sob o prisma do homem já “calçado” pelas formações culturais, citadinas e cosmopolitas, que se vislumbra e se desconstrói a “erótica da praia”. Os cenários de Villa Gesell, Cabo Polonio e mesmo do Rio de Janeiro dos anos 70 não são propriamente a festa do hedonismo, dos corpos nus, mas do encontro com a imaginação e a leitura.
A criança que sofria de “rubores terríveis” encontra na praia as telas necessárias para a projeção e para o exercício de sua imaginação. Este é o mote que permite a vasculhadela no baú de memórias que não se preocupam com cronologias nem com excessivas descrições. O que ativa a memória de Pauls é a lembrança e a procura da praia como superfície projetiva esvaziada, onde é possível imaginar e sonhar.
Talvez resida aí seu maior mérito: fugir do senso comum do lugar edênico, festivo e midiático, apto à prática de outros exercícios que não apenas os ligados ao corpo. Pauls segue na contramão das iconografias das praias midiatizadas, com uma “vulgaridade estéril”: “galãs e starlets do show business, modelos suando em discotecas de paredes acarpetadas, romances patrocinados por marcas de cerveja, esportes a vela, fofocagem televisiva, 4×4 blindados, óculos espelhados, pulseiras de ouro cintilando sobre peles que já chegavam bronzeadas das camas de bronzeamento artificial portenhas, assassinatos”.
A praia sobre a qual teoriza Pauls possui uma “castidade icônica” só compartilhada com os desertos e as ilhas. São praias perdidas, às vezes sem luz elétrica como Cabo Polonio, aquelas que podem produzir miragens como no deserto. A praia do escritor, a que se ficcionaliza em sua lembrança (por que não?), é uma “espaço-tela” ou um “espaço-escatológico” que é “ao mesmo tempo o que esteve antes e o que veio depois, o princípio e o fim, o ainda intacto e o já arrasado, a promessa e a nostalgia”.
No sentido de quem a apresenta como “espaço-tela”, não vejo, portanto, nenhuma contradição, como a criada pelo imaginário popular, sobre suas prováveis incompatibilidades com a vida intelectual. Toda ato de criação passa pela interrogação de uma tela em branco: seja a do escritor, diante da folha ou da tela branca, seja a do pintor diante de uma superfície ainda sem cores.
A imagem do intelectual infenso ao sol, branco e trancado num escritório não pode ter mais autoridade do que a daquele que procura a praia porque precisa do minimalismo e de uma espécie de virgindade expressos por Pauls. A praia seria um espaço menos saturado de imagens impositivas que nos roubam o desejo de pensar e de imaginar. Não quero dizer que a produção de imagens surja do nada. Nem para Platão as imagens nas cavernas eram tão autônomas assim. Eram também refletoras de outras realidades.
O que Alan Pauls advoga é uma espécie de “despojamento radical”, como no deserto, que nos ofereceria a possibilidade de dimensionar e reconstruir as histórias e informações que, civilizados por uma cultura acadêmica e livresca, carregamos quase como fardo às vezes. Por isso ele diz que os que vão à praia, vão sempre atrás mais ou menos da mesma coisa: “as marcas do que o mundo era antes que a mão do homem decidisse reescrevê-lo”.
Mar, costa e areia são os componentes físicos da praia, mas são também elementos propulsores da criação. Murmuram e falam. Saibamos escutá-los.
(Analice Martins)