A caça aos irmãos Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev foi também prova inconteste do poderio tecnológico americano. As primeiras pistas sobre os suspeitos não foram oriundas de relatos, mas de imagens que – capturadas por câmeras em vigília constante – não deixaram que as circunstâncias e os fatos se esfumaçassem sem deixar rastros.
Depois da denúncia de que havia um homem ferido escondido num barco no quintal de uma casa em Watertown, a prisão do irmão mais novo, Dzhokhar, contou com um robô e com uma câmera térmica, instalada num helicóptero da polícia, para identificar e monitorar as reações do suspeito.
Para além das reflexões sobre as possíveis motivações do atentado em Boston, fiquei pensando na evolução das técnicas de captura do real por meio de imagens e no que este advento representa em nossas vivências pessoais e coletivas. Ter um instante de nossas vidas imobilizado por um clique significa o quê? Que dimensões existenciais ou históricas a imagem carrega consigo?
Antes da imagem em movimento, fabricada pelo cinema e captada por câmeras de vídeo, conhecíamos o desenho, a pintura, o retrato, a fotografia. Desses procedimentos, artísticos ou não, a fotografia, no século XIX, consolidou-se como a técnica mais eficiente para reprodução do real. Digo eficiente porque a serviço de intenções documentais pressupostamente baseadas na fidelidade ao acontecido. Neste sentido, as manifestações artísticas sempre foram e devem permanecer traiçoeiras, já que capazes de colocar o real sob suspeita. Talvez, por isso mesmo, sejam mais eficientes. Mas deixemos esta provocação para outro artigo.
Diante de todas as alterações por que a fotografia passou, sobretudo no século XXI, nada foi capaz de lhe roubar o poder evocativo e imobilizador do instante. Em outras palavras: Diante de uma foto, seja lá em que suporte for, teremos sempre a sensação de que algo do passado remoto ou recente virá ao nosso encontro ou de que nos transportaremos até aquele instante representado pela imagem diante de nossos olhos. Teremos também a impressão de que o tempo estancou naquele instante, emoldurado e congelado. Impressão que tanto pode nos agradar quanto nos incomodar.
Por este raciocínio, a definição conceitual que mais me agrada e me parece inabalada é a de Roland Barthes, em seu “A câmera clara”: “O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa (…) ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana”. É por este aspecto contingencial, paradoxalmente eternizado na reprodução, que a fotografia se torna um objeto documental, testemunhal. Como afirma Susan Sontag, em “Sobre a Fotografia”, “filmes e programas de televisão iluminam paredes, reluzem e se apagam; mas, com fotos, a imagem é também um objeto, leve, de produção barata, fácil de transportar, de acumular, de armazenar”.
Interessante pensar que a fotografia consiga transformar em objeto (hoje em dia não necessariamente palpável) a existência irreprodutível das contingências. Assim, podemos carregá-las mesmo que a memória não consiga guardá-las na autenticidade do aqui e agora. A memória como as artes em geral também é traiçoeira e traidora, digna de pouca confiança, capaz de inventar o não acontecido, reorganizá-lo e reinaugurá-lo. Não é à toa que é a ela que os artistas recorrem com frequência, não pelo seu potencial de veracidade, mas, pelo contrário, por seu potente dispositivo de (re)criação.
Como aliada da notícia, a foto é indicial, ou seja, denota a existência do fato, confirma-lhe a ocorrência, é, portanto, elemento comprobatório. Quando a imagem é realizada em surdina, sem a ciência do fotografado, ela atinge sua, por vezes, enganosa naturalidade. É quando fotografar, como diz Sontag, significa “apropriar-se da coisa fotografada”, sem que esta coisa possa reagir, posicionar-se, inventar-se. O que se espera do fotojornalismo é que possa penetrar o real, devassá-lo e trazê-lo intacto em suas evidências.
Por outro lado, não é nenhuma novidade das tecnologias digitais a fabricação do real, de que, aliás, a fotografia também é capaz. Os cenários, as poses, a indumentária, tudo pode criar uma falsa realidade, sugestiva de prestígio e nobreza, presentes nos retratos desde o século XIX, por exemplo. Uma vez objeto, a imagem representada na foto escreve uma história pessoal, do clã, da coletividade.
Em tempos de fotoshop, não há mais real, tudo é invenção e brincadeira. Isso, no entanto, é muito diferente, parece-me, daquilo que representa a subjetividade do fotógrafo erguida no ângulo e na perspectiva escolhida para apreender o instante. Esse recorte, quando existe, é lícito e pode ser até o trampolim para o artístico. Mas, em tempos de tecnologia robusta, tudo que é sólido se desmancha num clique. Ou melhor: em cliques velozes como os tiros de uma metralhadora. Muitos por segundo. Uma feroz recomposição da realidade, uma prática hiperrealista, que, como tal, sempre se confunde com a ficção.
(Analice Martins)