(Des)limites da educação

De fato, a educação sozinha não pode, nunca pôde, resolver desigualdades socioeconômicas. Há exceções, claro! Vez ou outra, ouvimos, lemos ou presenciamos alguns casos. Nós, professores, sabemos que a escola não consegue nem tem que sanar a fome ou prover a saúde. É, entretanto, no espaço escolar, que todas essas demandas reprimidas ou explícitas gritam urgentemente.

Tampouco a educação restringe-se ao espaço da escola. A educação é um conceito, um conjunto de operações, a articulação de várias dimensões da vida. Já a escola é o espaço onde saberes e vivências devem articular-se para erguer conhecimentos e construir uma formação cidadã.

Qual seria a lógica e a expectativa, portanto, deste funcionamento? Entender que a escola, sendo o espaço promotor, por excelência, da formação integral do cidadão, seja também o laboratório que nos tornaria indivíduos com iguais condições de pensar, trabalhar e sonhar. É isso que se afirma quando se diz que a educação pode resolver nossas desigualdades socioeconômicas. Ou seja, a escola torna-se o espaço metonímico da educação.

Ouvi, na segunda-feira, do jornalista Alexandre Garcia, em suas crônicas matinais no “Bom dia”, uma defesa inconteste da educação pública e laica neste sentido da potência de resolução de desigualdades. Em seu relato, citou a própria experiência no “antigo primário”, em que estudou na mesma sala tanto com o filho de um carroceiro quanto com o filho do maior banqueiro da cidade, para concluir que, embora tivessem entrado em posições desiguais socialmente, saíram “nivelados” pela educação. Não é a primeira vez que o ouço defender enfaticamente a educação escolar pública e laica como o trampolim e o pulo do gato para uma vida digna.

Não é por outra razão que já o vi vociferar contra a indignidade dos salários dos professores, contra a falta de investimento e de qualidade nos cursos de formação para o magistério, contra cotas etc. Não penso que o faça por demagogia ou utopia, penso que creia, por experiência própria, que tais condições sejam uma espécie de divisor de águas entre o que pode ou não uma sociedade, um país. Afinal que país é este que ignora um caminho tão lógico para o desejado progresso mensurado em índices (IDEB, IDH)?

Sua posição de ressalva com relação às cotas fundamenta-se na crença de que uma educação de qualidade e para todos resolveria as enormes e incontestáveis discrepâncias criadas por um passado colonial e, sobretudo, escravocrata. Para ele, as cotas procuram equacionar as distorções fundadoras de nossa sociedade. Essa é uma questão realmente muito delicada. Vejamos: o ministro Joaquim Barbosa, baluarte da dignidade nacional, estudou em escola e universidade públicas sem cotas, mas as defende assim como o ator Lázaro Ramos. Para o cineasta Cacá Diegues, o conceito de raça, no Brasil, é um equívoco. Portanto, todas as políticas daí derivadas incorrem na mesma falácia. Apesar disso, não se coloca contra os sistemas de reserva de cotas na educação e nos editais de cultura.

A partir do momento que se perde de vista a expectativa de uma educação de qualidade para todos, é necessário até mesmo reservar vagas para alunos de escolas públicas, já que elas não têm, grosso modo, cumprido sua função. Penso que tal reserva anula o pressuposto que deveria nortear as organizações sociais. Mas como nos colocarmos contra se não vemos outras iniciativas que possam debelar, na raiz, tais diferenças de oportunidades?

Sou filha de uma escola e de uma universidade públicas ainda de excelência. Acredito ainda hoje nesta excelência. Luto por ela, diariamente, como professora e cidadã. Gostaria que todos tivessem esta experiência radical de convivência com as diferenças, tão-somente a partir das quais podemos construir nossas singularidades.

No meu curso de Letras na UFRJ, havia tanto a filha do diplomata que chegava em carro oficial todos os dias quanto os colegas que vinham de trem, barca, ônibus. Devia haver grupos e guetos. Para mim, só importava o trânsito. Poder estar com todos, escolher com quem estar, ouvir diferentes sotaques e aperceber-me de que o meu não era o mesmo dos meus colegas cariocas da gema. Existe mesmo essa “gema”?

A dimensão escolar pública, quando com igualdades de acesso, leva ao heterogêneo, ao diverso, a uma babel de referências. Não há nada mais salutar do que isso! Nenhum aprendizado democrático se faz sem a alteridade. Então, as conclusões são mais ou menos as seguintes: a escola, para cumprir sua função instrutiva e educadora, deveria ser um polo de investimentos e investigações, um caldeirão, um laboratório, uma escada, um conjunto de janelas, um trampolim para a vida! Nela, a educação deveria levar além e fazer atravessar limites.

(Analice Martins)

Significados possíveis

A aula inaugural da Licenciatura em Letras (Português-Literaturas) do Instituto Federal Fluminense foi ministrada, na última quinta, pelo professor e poeta Antonio Carlos Secchin. Aqueles que conhecem seu longo e feliz casamento com a poesia apenas se deliciaram, mais uma vez, com esta profícua parceria. Mas aqueles que nunca o leram, como crítico ou poeta, e nunca o ouviram falar tiveram uma extraordinária oportunidade de se deixarem seduzir pelos (en)cantos do gênero lírico.

Não vou aqui fazer um resumo de sua aula, intitulada “Professando a poesia”. Não correria este risco, até porque defendo a tese de que parafrasear poesia seja algo impossível, tarefa vã. Neste sentido, concordo com outro poeta, o Antonio Cicero, que diz que, embora queiramos aproximar, muitas vezes, filosofia e poesia, há algo que as distingue radicalmente. A primeira é passível de ser parafraseada. Por mais delicado que seja, podemos parafrasear o que Platão, Kant, Heidegger, Merleau-Ponty disseram. Conseguimos transportar, quando bem sucedidos, as ideias alheias para as nossas palavras, mantendo-lhes o sentido original. Já a segunda não se rende a este procedimento dialógico. A poesia não é redutível à paráfrase. Não podemos, ainda que ousemos, dizer o que o poeta disse, senão repetindo-lhe as palavras. Ou seja, na poesia, os sentidos e significados estão indissociavelmente ligados à estrutura dos versos e ao léxico em que se enunciam. Trocar palavras, alterar sua ordem, quebrar-lhes o ritmo, tudo isso fatalmente conduzirá a outros significados e imagens.

Mas, feita esta justificativa, autorizo-me a derivar algo do que foi professado (confessado, abraçado, ensinado, executado) na aula do professor. A irredutibilidade da palavra na sua forma poética foi um dos aspectos abordados por Secchin, na intenção de mostrar que os significados dos textos poéticos não estão em um espaço “além”, fora do texto, nem em um “aquém” precursor, isto é, naqueles referentes da realidade que podem ter motivado o poema. Seus significados possíveis são resultados das escolhas linguístico-estruturais que o poeta fez para dar forma a determinados tema, experiência ou sensação colhidos ao rés-do-chão. Tais escolhas permitem interpretações que podem se alargar ou se estreitar de acordo com as circunstâncias pessoais e contextuais da leitura, mas nunca extrapolar os seus domínios contextuais de produção e/ou leitura. Melhor dizendo: seja pela estetização das condições biográficas do poeta, seja por aquela do leitor empírico, os significados de um texto transitam entre estes polos, sem precisar ultrapassá-los.

Secchin recorreu a um exemplo claríssimo: A “Canção do exílio”, poema romântico da primeira metade do século XIX, autorizaria interpretações, ainda que forçosas, como a ultrapassagem da figura paterna (Portugal) na afirmação da autonomia filial (as terras brasileiras), a representação de uma “falta”, tônica constante da poesia romântica, mas nunca a leitura de que “marcianos visitaram a terra etc.”, uma vez que, neste último e exagerado exemplo, não haveria um significante que fosse que a respaldaria. Se os exemplos não foram exatamente esses, corrijam-me!

A questão interpretativa, como o professor bem assinalou, é sobretudo da ordem do ponto de vista que se elege para “olhar” o poema. A leitura produtora de significados requer um ponto de onde se avista e que deve ser sustentado com coerência. De antemão, todas as interpretações se sustentariam, desde que o leitor declarasse seus ângulos de visão e os conduzisse com lógica e clareza. Assim, as teorias críticas formalistas, estruturalistas, hermenêuticas, psicanalíticas ou sociológicas têm a sua contribuição a dar aos significados possíveis.

Na verdade, as considerações feitas até agora, grosso modo, valeriam para o quadro interpretativo de qualquer linguagem artística que não apenas a literatura. Mas lembremos: só a literatura é capaz de produzir outros signos além da palavra. O som e a imagem são também atributos da potência da palavra.

Um dos motes da aula que uso, à guisa de conclusão deste meu artigo, foi o amedrontamento que  a poesia pode causar num primeiro momento, já que, diante dela, o leitor não tem onde se amparar. Na poesia, não há personagens cristalizados, não há um enredo que se desenrole numa linha temporal, não há espaços delimitados, não há a condução de um narrador, mas tão-somente uma voz lírica que apresenta uma realidade transfigurada pela subjetividade deste “eu” que produz o canto. É por esta razão que Secchin assevera que, na sua longa experiência docente, sempre viu os alunos se bandeando para o lado da prosa – da narrativa de ficção – como se, ao identificarem as categorias que descrevi, tivessem dado um significado ao texto, o que de fato não ocorre. Esta leitura primeira, parafrástica, é apenas uma espécie de mapeamento das categorias narrativas, não é um significado possível.

Para lá chegar, é preciso que aprendamos com a lição professada por Carlos Durummond de Andrade em “Procura da poesia”: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxeste a chave?”

(Analice Martins)

Identidade e Multiculturalismo

Edgar Morin et Patrick Singaïny - La France une et multiculturelle - Lettres aux citoyens de France.

Caminhar pelas ruas, frequentar mercados e espaços públicos é a forma mais interessante para se dimensionar a dinâmica de um lugar, entender os espaços de trocas sociais, simbólicas e linguísticas. Do alto de um ônibus, num city tour, vê-se tudo à distância, por mediações dos guias turísticos e através de um trajeto previamente selecionado. Lá de cima ou de dentro desses veículos, não se sente o cheiro nem o paladar de nada. Não há rumores nem ruídos.

Quando viajo, evito-os ao máximo ou os deixo para o final, depois de tudo percorrido e visitado pelo meu próprio arbítrio, segundo as minhas escolhas ou minhas errâncias. Sei, por outro lado, que, para otimizar o tempo, evitar desvios ou chegar a lugares inalcançáveis por meios próprios, um city tour e visitas programadas são de grande utilidade. Por isso, podemos afirmar que nem todo viajante é um turista típico – aquele que quer permanecer na sua condição ex(ótica) -, assim como nem todo turista tem o desgarramento imprescindível aos verdadeiros viajantes. Há também muitos matizes entre essas duas categorias que não chegam a se excluir de todo.

Não se trata de esconder ou camuflar os pertencimentos originários: de onde somos, de onde viemos, por e para que estamos em determinado lugar. Trata-se de querer ver o outro em seus ambientes de alteridade e não apenas a nós mesmos em ambiente estrangeiro. Por mais que nossa perfomance na língua ou dialetos dos lugares visitados seja convincente e nossos comportamentos revelem a assimilação ao lugar, a condição estrangeira não tem razão para ser disfarçada. Ela é, antes de tudo, um potente ponto de vista sobre as culturas. Todo pensador da própria cultura deveria também se colocar em condição de estranhamento.

No artigo anterior, comentei minhas impressões sobre Marseille, no sul da França, que se repetiram em outras cidades visitadas da Provence. Em especial, em Avignon. Com os movimentos da globalização e do “cosmopolitismo do pobre” (conceito do crítico Silviano Santiago), a noção de uma origem ou pertencimento únicos cada vez mais se esfacela em proveito de identidades multiculturais.

Vi fisionomias chinesas, japonesas, sauditas, libanesas, marroquinas, tunisianas, argelinas, indianas falando francês, algumas (a maioria) com os acentos regionais de seus lugares de origem ou de seus pais, outras sem acento algum. Nessas horas, lembro sempre de Caetano Veloso proclamando: “Minha pátria, minha língua”! Por esta equação, ser de um lugar implica apossar-se do corpo de uma língua, por onde se dão as experiências sociais da comunicação e das trocas. Conforme eu ia mudando de cidade, com meu “francês parisiense colonizado”, eu ia acostumando meus ouvidos às diferenças regionais para poder entender. Experiência estranha e meio esquizofrênica: não ser do país e usar a língua oficial do colonizador diante de outros que são ou estão no lugar, mas que não escondem seus múltiplos pertencimentos.

Longe dos cities tours, fui entrando em livrarias, sebos, lojas e me deparei com dois livros que saciaram um pouco minhas inquietudes. Creio que nenhum dos dois esteja ainda traduzido no Brasil, mas imagino que não tardem. Foram publicados em 2012 e 2013.

Um deles apenas folheei por mais de uma vez. O outro comprei. O primeiro é a narrativa de cunho biográfico chamada “Je suis Tzigane et je le reste” (Eu sou cigana e permaneço). É o relato de uma jovem romena refugiada, Anina Ciuciu, sua trajetória de inserção na cultura francesa e sua chegada à Sorbonne. O segundo é organizado por Edgar Morin e Patrik Singaïny e se chama “La France une et multiculturelle” (A França una e multicultural).

Este livro se organiza a partir de um artigo de Morin de 1991, revisitado e ampliado, sobre a identidade francesa em suas “possíveis origens”, suas mutações por força da imigração e do artigo de Singaïny, que afirma que “ser cidadão, na França, não significa ser necessariamente francês”. Além dessas propostas centrais dos organizadores, há 11 cartas de intelectuais que participam dessa identidade cultural híbrida, de duplos pertencimentos. Seus nomes dão conta do que falo: Sabah Abouessalam, Marc Cheb Sun, Misako Nemoto, Yu Shuo- Bossière, Nelson Vallejo-Gomes, Manuel Valls, Nacira Guénif, entre outros.

É desta última, socióloga da universidade Paris-Nord-XIII, que traduzo, livremente, algumas linhas que resumem as ideias expressas no título deste meu artigo: “ ‘Ser’ de uma nacionalidade exprime não um estado (civil), mas um processo que conjuga, sem nunca reconciliá-las , as provas mantidas em tensão pelo tempo que passa e pelo contexto em que elas se desenvolvem: tornar-se de um país, identificar-se aos seus discursos, adotar suas narrações, habitar seus lugares, instalar-se em seus hábitos(…), distanciar-se das fronteiras, cruzá-las, se possível, relevar as memórias, atravessar os períodos, viver momentos que se agregam e fazem sentido. Nenhuma versão destas provas conjugadas equivale à outra nem pode se assemelhar a ela.”

(Analice Martins)

Impressionismos

Crianças em museus não são fato incomum. Acompanhadas pelos pais ou professores, contam, às vezes, com estratégias direcionadas especificamente a elas, além de monitores treinados. A espetacularização das exposições que correm o mundo contribui ainda mais para esta etapa formativa da educação humanística.

A internet pode nos introduzir em qualquer museu, transportar-nos para salões às vezes inacessíveis ao nosso contato direto. Mídias portáteis (cds, dvds) também podem cumprir tal função. Mas insisto, ainda que démodée: a experiência do aqui e do agora, aurática, para usar o capital conceito de Walter Benjamin, é única. Poder olhar uma escultura, por exemplo, querer tocá-la sorrateiramente, sentir seu volume na experiência do próprio corpo, ver as tintas que não esmaeceram com os séculos, tapetes rijos e imponentes em suas dimensões, mobiliza todos os nossos sentidos e cognição.

Reafirmo essas impressões, porque estou na Provence. Como Marseille em 2013 é a capital europeia da cultura, há uma programação intensa e diversificadíssima para todo o ano e também para as adjacências, como Aix en Provence, Avignon, Les Baux etc. Investimento de milhões de euros, mas que está valendo cada cent. Há o que será temporário e o que permanecerá como espaço construído para a cidade, como, por exemplo, o MUCEM (Musée de Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée) e a Villa Méditerranée, em Marseille.

Nesta cidade, a segunda maior depois de Paris na França, com quase um milhão de habitantes, há uma grande e legítima preocupação com a identidade mediterrânea, mote de boa parte dos eventos. Marseille é cosmopolita, diversa étnica e religiosamente, ensolarada, aberta para o mar e suas viagens. É porta e porto de entrada e de partida. É, portanto, uma cidade que tem que exercitar o diálogo e a tolerância já que a diversidade a atravessa como o próprio mar.

Há algum tempo, ouvi um parisiense, de ascendência argelina, dizer que, quando andava pelos Champs Élysées, uma das avenidas mais nobres de Paris, sentia-se invisível, todos fingiam não vê-lo. Mas como? Era um jovem de quase dois metros de altura. Segregados nos banlieues, os bairros da periferia parisiense, sua travessia pela cidade parecia custosa. Mas Paris é também negra, árabe, mulçumana. Quem ainda insiste em não ver isso?

Percebi (mas posso estar equivocada, por isso digo que são apenas impressionismos) um movimento contrário em Marseille, pelo menos um discurso preocupado em marcar toda a diversidade que o mediterrâneo reuniu lá. Já estou em outra cidade, Aix, mas deixei Marseille com a imagem das crianças de uma escola pública, andando de mãos dadas, dois a dois, depois que saíram da exposição Les Mediterranées, acompanhados por seus professores. Meu percurso se cruzou com o deles. Confesso que, por alguns momentos, segui-os tanto no extraordinário espaço construído para a exposição, ouvindo todas as explicações, comentários e perguntas que a gentil monitora lhes fazia, como, por coincidência, no retorno do cais, onde estava instalada a exposição, ao interessante bairro Le Panier. Elas caminhavam de mãos dadas. Sem semblantes contrafeitos. Eram louras, negras, árabes, até japonesas. Tout simplement!

Como a cidade está em festa e em ebulição e as programações têm períodos determinados, a movimentação é intensa. A exposição Les mediterranées é um projeto ousado, em espaço todo montado por containeres, vazado para o mar, organizado a partir do mote de um Ulisses, incendiário de mares e fronteiras, tanto o mítico quanto os de todos os dias, desencantados e perdidos. Múltiplos eram os materiais: objetos, filmes, animações. Tróia, Cartágena, Atenas, Alexandria, Roma, Veneza, Gênova, Istambul, Argélia,Tunísia, Marselha..

Havia grupos pequenos e maiores de adolescentes, alguns ouvindo explicações, outros com pranchetas onde respondiam às perguntas de uma espécie de questionário ou formulário. Tentei ler, mas fiquei com vergonha de lhes pedir. Afinal, adolescente é adolescente!

Mais encantada ainda fiquei no Museu Cantini, também em Marseille, onde ocorria uma grande exposição da obra surrealista do pintor chileno Roberto Matta. Havia telas monumentais e nada figurativas. Matta foi um pintor extremamente engajado do ponto de vista social e sua obra é expressão desta postura. Ora, o surrealismo bem como o impressionismo, o expressionismo e os outros “ismos” vanguardistas desconstroem os referentes e os inserem numa existência artística nem sempre decodificável num primeiro momento. Fiquei olhando aquelas crianças de 5, 6 anos no máximo, de mãos dadas, contemplando telas de 20 metros de largura por 15 de altura algumas. Fiquei imaginando que no ludismo da imaginação infantil, talvez, o surrealismo não lhes fosse um espanto, nem precisasse de tantas decodificações.

O fato é que não devemos deixar as crianças apenas reféns da tecnologia – que é também material criativo inegável -, devemos também ensiná-las a ver a partir de outras telas que não apenas aquelas que podem se apagar com um simples clique.

 (Analice Martins)

Os segredos de Leminski

Não tenho nenhum pudor em dizer de que matéria é feita esta minha prosa semanal. Um pouco do que li há muito, um pouco do que leio no momento e muito do que me provoca na leitura deste ontem e deste hoje. Mais ou menos isso: escrevo estas “palavras tortas” para responder coisas para mim mesma ou coisas para outros que provavelmente não me lerão.

Então, não me constranjo em criar diálogos hipotéticos como, por exemplo, este de agora em que sinto vontade de responder ao mistério que ronda as livrarias há algumas semanas e que foi comentado durante a última tanto por José Miguel Wisnik quanto por Caetano Veloso: a vendagem surpreendente da poesia reunida de Paulo Leminski.

Como se sabe ou como alardeiam editores, poesia não vende, sobretudo, no Brasil. Quanto a isso, não há muito o que discutir. Os números são categóricos. Mas que poesia agrega, arrasta multidão e nos faz penetrar surdamente no reino das palavras, como diria Drummond, lá isto é verdade sim! Lembro-me de ter visto a mineira Adélia Prado permanecer por umas quatro horas autografando na Festa Literária de Paraty em 2006. Lembro-me ainda mais vividamente de tê-la ouvido falar de poesia, ler poesia, declamá-la, respirá-la, sem sequer se levantar da cadeira, sem nenhuma performance que não a do “verbo que se fez carne”. A plateia silenciava. Vez ou outra a interrompia com aplausos. E chorava também naquela manhã ensolarada.

Estranho que tal poder magnético não encontre tantos compradores. Será mesmo? Todo comprador é um leitor? Todo leitor, em tempos de internet, precisa comprar? Entender fenômenos de venda nas ondas do capitalismo tardio é uma multitarefa, requer a análise de aspectos como estratégias editoriais, mídia, sociologia da leitura etc. Será que um livro bem vendido se faz permanecer na memória de nossos sentidos como, às vezes, alguns versos que se colam em nossa pele como tatuagem?

A capacidade de fusão e de síntese da linguagem poética me parece uma das razões para que, queiramos ou não, sejamos atravessados pela poesia nossa de cada dia. Pense aí! Que versos ou imagens criadas por eles você carrega consigo e que lhe invadem a vida? Quando esses versos são ainda mais comprimidos, apertados em poucas estrofes ou numa só, em poucas sílabas, o potencial incendiário das palavras poéticas é enorme. Acredito ser este um dos segredos do poeta curitibano Paulo Leminski, morto em 1989, e cuja poesia foi reunida e lançada pela Companhia das Letras.

É desse delicioso espanto que falaram Wisnik e Caetano: mais de 20 mil exemplares vendidos em um mês e meio. Para eles e para muitos outros apreciadores do estilo haicai do poeta, é um fato a se comemorar. Num país de forte tradição poética, como o Brasil, mas de poucos leitores, o que explicaria o fenômeno definido por Wisnik como “um catatau cor de laranja em meio aos não sei quantos tons de cinza”, numa referência ao título de um dos livros de Leminski e à cor da edição de “Toda poesia”? O resto da metáfora cromática dispensa explicações.

Como pesquiso e arquivo definições de poesia por força do ofício, apoio-me, para tentar responder aos segredos de Leminski, numa colhida recentemente numa entrevista do jovem poeta árabe Tamin Al-Barghouti: “A poesia é uma forma mais eficiente de falar, intensificar e aprofundar o significado das palavras”. Concordo com o poeta, concordo com esta eficiência da linguagem poética. Vejo esta eficiência na poesia de Leminski.

Meu primeiro contato com sua poesia foi na Faculdade. O marido de uma amiga, ambos estudantes de Letras, ia defender uma dissertação de Mestrado sobre o poeta curitibano, e “Catatau” era seu foco central. Amizades e influências são almas gêmeas. Minha atenção primeiro se deparou com os mistérios de “Catatau”. Seus olhos já o apalparam?

Muitos anos depois, já na condição de professora, deparei-me de novo e sistematicamente com sua poesia por conta da pesquisa de uma orientanda, a jornalista Patrícia Daldegan, cujo trabalho recomendo como leitura: “Sacro lavoro: o fazer poético nos versos de Paulo Leminski”.

Confesso, então, alguns dos versos que, embora lidos na juventude, ainda carrego do meu lado esquerdo. São dois poemas de um livro que se chama “La vie em close”. Relendo-os agora, acho que se completam de certa forma: “A quem me queima/ e, queimando, reina,/ valha esta teima./ Um dia melhor me queira”. O outro é desenhado, qual haicai, na página em branco, perde um pouco a força quando transcrito assim: “haja/hoje/p//tanto/hontem”.

Como disse de início, são coisas que escrevo para responder a mim mesma. Vou, então, me dispensar de explicações maiores. Verso que é de valor vale por si mesmo. Para que roubar-lhe o segredo?

 (Analice Martins)