É TUDO VERDADE!

É o cinema que dá à imagem movimento. Por isso, o teórico Christian Metz diz, em A significação no cinema (1972), que, entre as artes, é esta que cria, para o espectador, a mais convincente impressão de realidade. A imagem em movimento revoluciona os modos de percepção de forma assustadora.

Para ele, o teatro ficaria numa escala abaixo de acordo com este critério, pois quaisquer tosse, espirro, tropeção fora do roteiro poderiam comprometer ou mesmo romper a ilusão de que estamos diante da realidade em si mesma. Já no cinema nos enredamos nesta teia com muito mais facilidade, a tal ponto que um filme de época – que retrate fatos bem pretéritos – pode nos sugerir uma sensação de atualidade como se estivesse ocorrendo naquele momento ou como se fôssemos transportados para aquela época. A tela se dilui, não separa o concreto da projeção da imagem, que ganha uma vida autônoma capaz de nos produzir o desejo de querer fazer parte dela ou tocá-la, atravessando a tela.

Todas as formas de expressão artística têm poderes ilusórios. A arte é um engodo legítimo. Sua força de credibilidade não está atrelada à realidade concreta, mas sim aos dispositivos que nos fazem crer e sentir como possível o que vemos, mesmo que jamais tenhamos passado por experiência parecida. Isso a torna potente e deliciosamente perigosa.

O som é também elemento fundamental para a criação dos mecanismos encantatórios que envolvem o espectador. O cinema reúne em uma mesma imagem estes dois quesitos. Considero a argumentação de Metz bastante procedente, concordo com o escalonamento que ele fez, a partir do quesito “movimento”, para analisar manifestações artísticas como a pintura, a escultura, o teatro, a fotografia, o cinema.

Mas no último sábado assisti, pela primeira vez, ao trabalho da Companhia Contadores de Estórias, criada por Marcos e Rachel Ribas, e sediada em Paraty (RJ) desde 1981. O casal que há 40 anos realiza espetáculos em vários países, tendo passado da encenação de rua para o teatro de câmara, tem a valiosa colaboração criativa de Inez Petri desde a década de 90. Os espetáculos que já misturaram diversos elementos (música, dança, bonecos de até quatro metros), hoje, concentram-se no minimalismo de pequenos bonecos, que, entretanto, parecem-nos grandes e pulsantes como a vida.

Já havia assistido a espetáculos dessa natureza, mas nada como “Em Concerto”, exibido às quartas e aos sábados no Espaço Teatro em Paraty e aclamado pelo público e pela crítica especializada nacional e internacional. Saí de lá emudecida com o espetáculo desprovido de qualquer palavra, na linguagem universal dos gestos. Saí de lá pensando ser falha a teorização de Metz. O teatro, mesmo com as possibilidades de intervenção do real, já que encenado ao vivo, é passível de igual ilusão de realidade. A imagem em movimento não é atributo exclusivo do cinema. O teatro de bonecos de Paraty está imantado de movimento. Aqueles bonecos inacreditavelmente confeccionados e manipulados têm poros e vida!

Uma rápida consulta ao site www.ecparaty.org.br nos dá a medida da recepção crítica do trabalho realizado pela companhia: “Bonecos que emocionam, um primor de lirismo e arte cênica” (Carlos Eduardo Godoy, Isto é); “É uma alquimia espetacular. É poesia cênica sem palavras, com muito sentimento (Tânia Brandão – O Globo); “O público fica chocado”(Michel Cournot – Le Monde).

O lirismo vem, sem dúvida, da concisão cênica, do minimalismo dos bonecos e de sua manipulação cirúrgica. Por que ficamos chocados como diz o crítico do Le Monde? Porque os bonecos têm uma leveza de movimentos e expressões que traduzem sentimentos universais como erotismo, alegria, dor, solidão, morte. Porque parecem reais, porque se tornam grandes, porque, sem deixarem a condição de bonecos confeccionados, ganham alma com o movimento delicado da manipulação. No palco, não vemos bonecos, vemos pessoas, vemos a nós mesmos, embora saibamos que são bonecos. Aí está o fascínio da arte: deixamo-nos iludir. E, quando a luz se acende, vamos embora crédulos, esperando que a mágica não se desfaça de nossas memórias.

O espetáculo “Em concerto” se divide em episódios curtos, dos quais destaco Valsa, Primavera, Índia e Concepção. A tecnologia hoje nos permite qualquer acesso sem deslocamentos físicos. Há vídeos no Youtube, há fotos, entrevistas, depoimentos, há dvds. Mas, diante do palco, quando o espetáculo termina e a ilusão se desfaz, só ficam os manipuladores vestidos de preto, sorrindo diante da mágica operada. Guardam os bonecos que gostaríamos de abraçar e com os quais conversaríamos sem dúvida, como disse Stephen Holden do New York Times: “Ao final da apresentação sem palavras, fica a extraordinária sensação de que as figuras em miniatura são mais reais que os humanos”.

(Analice Martins)

Os efeitos de real

Na tela “Menino Morto”, de Candido Portinari, as lágrimas que escorrem do rosto da menina são desproporcionais ao tamanho de seu rosto. Lágrimas enormes, grandes como a miséria nordestina. A irrealidade destas lágrimas não perturba a percepção estética da tela. Ao contrário, traz-lhe um efeito de veracidade mais forte do que em certas fotografias jornalísticas.

No mês passado, assisti à exposição “Gênesis”, de Sebastião Salgado, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Presenciei uma cena muito curiosa. Uma senhora, acompanhada de amigos, exclamou diante da foto dos xamãs da tribo camaiurá do Alto Xingu:“Não, isso não é real! Isso não existe. É hiper-realismo”. Parei, voltei os olhos para observar mais uma vez a fotografia imensa, quase uma tela, disposta como outras entre as palmeiras imperiais. Cheguei a me aproximar para comprovar o que ela dizia. Acabei despertando minhas antigas resistências ao trabalho do célebre fotógrafo, críticas como a estetização da miséria, o sensacionalismo da pobreza, presentes em suas fotografias desde as exposições “Trabalhadores” e “Êxodos”. Relembrei comentários que lhe negavam o engajamento político comum à atividade fotojornalística.

O fato é que, até então distraída, passei a olhar a longa exposição com muita desconfiança. Para piorar minhas inquietações, via pessoas que já tinham tudo percorrido, carregando o enorme, pesadíssimo e caro livro-catálogo da exposição. A elas, provavelmente, não incomodou a impressão de excesso de realidade das fotos, algo que acabava descambando para o questionamento de seu estatuto de verdade, mesmo sendo a fotografia a mais mimética das artes.

De início, pensei na técnica da contraluz, utilizada por Salgado. Aquela em que a luz vem da frente do fotógrafo, embaçando a cena. Depois, criei uma segunda explicação para a implicância da senhora, que voltava a ser também minha. As fotos que estavam ao ar livre, fora dos salões do Museu do Meio Ambiente, deveriam ter sido impressas em um material especial para resistir à chuva e ao sol. Portanto, era essa a razão da impressão de falsidade, somada, no caso da foto referida, a uma espécie de “fundo falso”, um espaço escurecido e diluído. Apenas os índios em primeiro plano e nada mais. Fundo negro e fictício.

No mesmo fim de semana, fui a uma outra exposição de fotografias: “A vida em movimento”, do francês Jacques Lartigue. Ambas em preto e branco, com um século de distância, além das técnicas distintas. Como o próprio título da exposição já diz, as fotos selecionadas de Lartigue insistiam em capturar o instante, a velocidade, o salto, uma energia invisível. E conseguiam. Simulavam perfeitamente o real.Tanto assim que, colocadas em sequência, são uma forma de cinema.

Com o avanço da técnica e da tecnologia, a fotografia parece ter mudado suas intenções. Se, antes, seu intuito era evocar o real e capturá-lo. Hoje, tudo indica que sua razão de ser é ir além da realidade, atravessá-la e instaurar uma outra ordem. O fotoshop fez com que ela perdesse a credibilidade do real e se tornasse uma possibilidade de invenção. Nenhum problema haveria se ela não carregasse, na maioria das vezes, o ranço do cheiro da realidade, dos seus vestígios. Na hiper-realidade, os resíduos e vestígios que atestariam seus elos com o “acontecido” desparecem.

Por que, então, aquelas lágrimas expressionistas de Portinari são capazes de fazer chorar o desamparo, a dor e o abandono nordestinos? Por que, sendo parte de uma experiência vanguardista de representação artística, aquelas lágrimas “mentirosas” fazem “chorar” a verdade da terra que arde qual fogueira de São João?

Por que, na tela de Portinari como nas artes em geral, o falseamento da realidade pode não impedir seus efeitos de credibilidade? Por que a ficção pode, mesmo que torcendo o real, produzir sensações tão palpáveis? E por que as tecnologias contemporâneas de captura do real parecem esfumaçá-lo, fazendo com que perca sua tangibilidade?

Explicações para esta potência de realidade foram erguidas desde a Antiguidade Clássica. Platão e Aristóteles procuraram entender, ainda que de formas distintas, isso que chamamos de verossimilhança: a possibilidade de ser verdade, de parecer verdade.  Para Platão, em sua alegoria da caverna, a realidade se esconde atrás das imagens. Para Aristóteles, a realidade pode estar na própria imagem.

Tal constatação aristotélica libertou a arte do tributo de realidade que lhe é cobrado. Aristóteles conferiu à representação autonomia estética. Aristóteles entendeu que, por intermédio da verossimilhança, a arte pode nos parecer mais real do que a própria vida. O problema existe quando o que se apresenta como a mais inquestionável das realidades, aquela capturada por um dispositivo mimético como a fotografia, provoca-nos um efeito contrário de distanciamento, como na reação da esperta senhora por quem passei.

Por isso, a arte nos é tão essencial, porque, sem ter a pretensão de fotografar a vida como ela é, pode, no entanto, trazer-nos os mais legítimos sentimentos e reações, fazendo-nos acreditar, conscientemente, que é ali que a vida pulsa e arde.

 (Analice Martins)

Oh, intrépida amazona!

Nem formosa, nem intrépida. Tampouco amazona. Onde a mágica torrente de teu Paraíba? Oh, Campos, por que nos abandonaste?

Não é hora de complacência nem de saudosismos aristocráticos. Eis que, mais uma vez, é chegada a hora de muitos protestos, de muitos gritos de “basta”. Campos perdeu o bonde da história. Não há construção civil, prédios altaneiros, pontes novas, Porto do Açu, universidades sanguessugas (que chegam e se vão), redes potentes de supermercados e concessionárias de carros importados que indiquem algum real índice de crescimento. Não nos verticalizamos como as construções urbanísticas. Continuamos na mais absoluta horizontalidade, na mais cruel das platitudes, sem conseguir vislumbrar horizontes para todos.

No início dos anos 90, um amigo jornalista, carioca de verve ácida, de passagem pela nossa cidade, perguntou-me como é que eu havia voltado para uma cidade que tinha, em um dos pontos mais nobres à época, uma cabeça de boi no portal do restaurante, música ao vivo em todos os bares e nenhum restaurante japonês. Tentei lhe explicar, sem muita credulidade, a dinâmica de uma “cidade do interior”, provinciana, de tradição ruralista. Não colou nem para mim!

Para um olhar citadino e cosmopolita como o dele, foi difícil entender nossas temporalidades até hoje concomitantes: a carroça de burro, a bicicleta, os carros de passeio e as obscenas caminhonetes em nossas pobres ruelas. Sim, ruelas! Ninguém pode dizer que a avenida 28 de março possa sustentar tal designação. É ruela sim! E assassina!

Deixando de lado a provocação de meu amigo, com a qual tacitamente concordei, não podemos ser felizes convivendo com tantas barbáries. De fato, um verniz cosmopolita nos chegou. Hoje, temos restaurantes italianos, japoneses, chineses. Os árabes sempre existiram. Temos muitas lojas de departamentos (Renner, C&A, Leader, Casa e Vídeo, Lojas Americanas etc), franquias, Peugeot, Toyota, Honda, Hyundai, mas e daí? Continuamos órfãos, abandonados e carentes.

Afinal, quem há de não lamentar nossos anacronismos e retrocessos? Vivemos em uma cidade que, tendo perdido sua vocação agropecuária, não soube se realocar na nova ordem mundial. Uma cidade que é refém de uma prefeitura que tiraniza nossos direitos à saúde, à educação e à moradia, que os substitui por práticas assistencialistas. Uma cidade em que o sonho de consumo cidadão é ter um “bico” na prefeitura, não um emprego para o desempenho honrado de uma função social. Uma cidade sem livrarias, com bienais e shows de cifras exorbitantes, uma cidade cujos cinemas só funcionam em shoppings, só exibem filmes dublados e comerciais, em que os diretores das escolas municipais são indicações de políticos. Uma cidade com um imponente teatro – frágil presa de falsas moralidades. Um teatro-palco, não um teatro-instituição. Um teatro que coloca no “bolso” seu irmão menor.

Não me venham com argumentos de ilusórios progressos cidadãos: passagem a um real, bolsas família e escola, farmácia e restaurantes populares etc. Tenho absoluta consciência do quanto tal quadro de benefícios assiste a nossa carente população. Sei bem que, sem fome aplacada e sem saúde cuidada, não há esforços educacionais e culturais que possam vingar. Mas não concordo que seja por uma via clientelista que devamos construir condições de empregabilidade e autonomia de pensamento.

Quando, em minhas idas e vindas semanais, entre Rio e Campos, desde 1987, fui observando da janela do ônibus a cidade que crescia e se erguia, apontando para o céu (“Olha para o céu, Frederico”!), alimentava a expectativa de que esta verticalização, acompanhada da chegada de universidades como a UENF, da expansão de câmpus da UFF, pudesse se somar à trajetória já consolidada de instituições como a Faculdade de Filosofia e de Direito de Campos, hoje pertencentes ao UNIFLU, da Faculdade de Medicina e da antiga Escola Técnica, hoje IFF, e nos oxigenar. Vã expectativa.

Apesar deste crescimento, continuamos a chafurdar em nossos lamaçais. Ah, Campos formosa, em que espelho te miras? Ah, Campos intrépida, por que não acertas o passo de teu galope? Por que temos que nos deparar com atitudes tão empobrecedoras como esta que nos enxovalhou mais uma vez? Não bastassem os escândalos denunciados, em 2008, pelas operações “telhado de vidro”, temos ainda que ser dignos de nota, em cenário nacional, por episódio tão obscurantista e medieval como este do cancelamento da apresentação da peça “Bonitinha, mas ordinária” de Nelson Rodrigues?

Nessas horas, penso na doce advertência de minha mãe quando decidi retornar à planície goitacá: “O que você quer fazer por aqui?”. Anos mais tarde compreendi que não era uma atitude pouco amorosa, ao contrário, era prova do máximo desvelo de quem, campista que não era, nunca entendeu que houvesse uma rua, “a do homem em pé”, pela qual mulher não pudesse passar.

 (Analice Martins)

A rua e a multidão

Cenário das recentes e recorrentes manifestações populares no Brasil e em outros lugares do mundo, como a França e o Egito, a rua tem reunido multidões por razões variadas, mas todas com um clamor político, mesmo que não explicitamente partidário.

A rua e a praça são espaços públicos de trocas simbólicas. São uma experiência compulsória com a alteridade. Portanto, representam dinâmicas de constituição do sujeito. Sem a rua, vê-se a vida apenas pela janela ou pelas telas. A rua permite tanto uma atitude de desnudamento da privacidade quanto de anonimato. É este paradoxo que a torna fascinante dos pontos de vista sócio-antropológico e literário.

Para as relações sociais, a rua é o espaço dos serviços, do comércio, do trânsito, da diversão. A rua estabelece a contingência do encontro para a realização de alguma atividade. É um espaço privilegiado para vivenciar e entender o Outro que se avizinha casualmente. Para a literatura, a rua inaugura a modernidade de certa forma, ou mais especificamente, o modernismo. Desde o século XIX, entretanto, em certa expressão do Romantismo, modos, hábitos, comportamentos e cenários ganham os contornos públicos da rua, a partir dos primórdios da urbanização.

Nos dias atuais, a rua tem sido palco de reivindicações e confrontos. No Brasil, em especial, assistiu-se a uma singular organização desses movimentos. No espaço que é também o seu avesso – o privado -, ou seja, o dos computadores pessoais que, antes da web 2.0 e da explosão das redes sociais, eram um território que permitia a distância física e algum anonimato, orquestrou-se o maior movimento de rua, desde o “impeachment” do ex-presidente Collor, em 1992. O Brasil não é a França, país em que, pelo menos em Paris, assiste-se a um protesto por dia. O gigante sempre foi pouco dado às ruas, sempre se manteve meio adormecido.

Foi, então, das inquietudes e dos descontentamentos partilhados em redes, de uma tecnologia na palma da mão, que as ruas de muitas cidades brasileiras foram tomadas de assalto por multidões lideradas por jovens dispostos a fazerem valer seus pleitos. Apartidárias ou não, foram às ruas pessoas de idades, cores, credos e motivações distintas, mas com uma mesma palavra de ordem: BASTA!

Interessante este fenômeno de reversibilidade de fronteiras entre o público e o privado. Se os computadores domésticos e a internet, nos anos 90 do século XX, constituíram um processo de privatização de vontades, de distanciamento das ruas, de isolamento voluntário; a partir da popularização da internet e das redes sociais, tal fenômeno se complexificou, rompendo fronteiras e paradigmas.

A rede não é a rua, mas a simula de certa forma. A rede é uma rua sem odores, rumores e ruídos. A rede pode ter a mesma eletricidade da rua, mas ainda não permite o tato, o tangível, a corporeidade de seguir, como disse Drummond, de “mãos dadas”. A rede precisa da rua, assim como a rua talvez nunca mais seja a mesma depois da rede. A rua também é rede, não A REDE, mas espaço de interações onde podemos compartilhar nossas experiências mais íntimas e as coletivas.

A rua constitui uma instigante experiência de proximidade com o anônimo: o estranho que rejeitamos ou que, na maioria das vezes, queremos ser. Este anonimato, a fugacidade de um rosto na multidão, o desejo de segui-lo, de observá-lo, de se tornar íntimo do alheio na “flânerie”, em passos erráticos, de decifrar enigmas, tudo isso é matéria fértil para Edgar Allan Poe, no conto exemplar “O homem da multidão” ou para Baudelaire, em O pintor da vida moderna, ou em “Quadros parisienses” de As flores do mal.

A literatura brasileira do início do século XX também registra esta efervescência. Lima Barreto, João do Rio, Benjamin Costallat captaram mazelas, transformações urbanísticas, fizeram a crônica do efêmero, do transitório, do instante, do contingente, que são, segundo Baudelaire, a outra metade da arte moderna. Captar o momento fugidio e desconcertante, sua beleza – pois aí também reside o belo – era a tarefa dos pintores da vida moderna, veloz e urgente.

A rua de onde parte a literatura moderna e modernista não é o espaço das manifestações que presenciamos. Foi, entretanto, uma mola propulsora porque libertária, heterogênea, plural, íntima e anônima. Nela, reside a multiplicidade e o sentido caleidoscópico essenciais ao fazer literário: “Para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente”, afirma Baudelaire.

(Analice Martins)

O futuro pelo retrovisor

É lamentável o desconhecimento de que goza a literatura brasileira contemporânea mesmo entre leitores assíduos. É estranho observar que são ilustres anônimos aqueles que estão desenhando nossos perfis literários nacionais. Ignorar o presente é também uma forma de alienação.

Mais paradoxal ainda é esta questão se pensarmos que se publica muito hoje em dia, até porque há muitas facilidades editoriais, iniciativas descentralizadas que não precisam passar por corporações. A tecnologia é forte aliada deste fenômeno e dos mecanismos de distribuição da imagem dos escritores. Sites, blogs, tumblrs, twitter, facebook funcionam como eficientes plataformas de divulgação dos autores e de suas obras. A leitura em outros suportes é de fato um agente democrático. A leitura pode estar ao alcance da mão e dos olhos de um público quantitativamente mais significativo. Mesmo em formatos mais convencionais, as mídias impressa e televisiva continuam funcionando como agências difusoras da cena contemporânea.

Portanto, tudo faria crer que somos leitores de nosso tempo. Pelo menos, que estamos expostos à produção literária contemporânea de forma mais voraz do que no século passado. Mas nada disso, infelizmente, tem assegurado uma comunidade de leitores para a literatura brasileira contemporânea. Que fique claro que, neste cenário, Paulo Coelho não tem assento.

Nos currículos escolares, é ainda nítida a exclusão do presente. Quando os alunos leem Clarice Lispector e Guimarães Rosa parece que estão lendo os últimos escritores de nossa literatura, que acaba morrendo aí. Tudo bem que seria uma morte gloriosa. Mas a literatura brasileira não morreu na década de 50 do século XX como os componentes curriculares fazem crer.

Daí surgem constatações doídas. É possível que um aluno, jovem leitor, não saiba perceber como literários registros de seu tempo nem atribuir valor estético a eles. Ora, isso não ocorre com a música! Por que então a literatura contemporânea, no Brasil, fica em lugar tão marginal e desconhecido? Para piorar, nos Cursos de Letras do país, via de regra, o que deveria ser um estudo sistemático é empurrado para disciplinas eletivas, optativas etc. Forma-se então um quadro perverso: professores não leitores da contemporaneidade.

Nada do que digo aqui deve ser confundido com o menosprezo pela tradição, pelo cânone, pelas altas literaturas. Nenhuma postura iconoclasta neste meu discurso. As vanguardas e seus brados futuristas de aniquilação do passado já cumpriram sua função histórica – fundamental, sem dúvida – e se foram. Vivemos outros tempos, com outras linguagens e preocupações. Devemos procurar entendê-los e fruí-los sem nariz empinado. Desconhecer o presente é tão grave quanto desconhecer o passado. Como muito bem disse Mario de Andrade, “o passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”.

Por estranho que pareça, uma forma de entender o presente é conhecer o passado e refletir sobre ele. Acredito que a literatura seja uma destas potentes formas reflexivas. Na linguagem literária, operam-se tensões, diálogos, apropriações, estilizações ou mesmo rupturas em relação ao passado. Logo, ler o contemporâneo é imprescindível e urgente.

O livro “O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea”, recém-lançado pelo Rocco e organizado pelas pesquisadoras Stefania Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal, ocupa um lugar estratégico para tais reflexões. É um livro de crítica literária que quer levar a cabo a urgência da leitura e do entendimento da prosa contemporânea no Brasil, roubando, para isso, a imagem de Marshall McLuhan, expressa no título, como explicam as organizadoras: “A nossa aposta é que parte expressiva da atual literatura brasileira está caminhando neste momento para uma releitura das tradições da modernidade, saqueando ou revistando o passado (…) Em seu sentido original, a expressão dizia respeito a um olhar fixo sobre o passado, que tendia  recuperá-lo sempre da mesma maneira. Gostaríamos de retomá-lo aqui para tratar de uma relação com o passado que pode se dar de  múltiplas formas, de modo que não se estabeleça uma relação linear de causalidade entre passado, presente e  futuro”.

A pretensão deste livro é, portanto, por meio dos 17 ensaios feitos por pesquisadores de universidades distintas do país, verificar se os autores da prosa brasileira contemporânea “não estariam operando reapropriações de questões fundamentais dos séculos XIX e XX – no plano estético, ideológico, temático, formal etc. -, reelaboradas a partir do presente”.

Vamos lá! Não deixem que Adriana Lunardi, Adriana Lisboa, Bernardo Carvalho, Carola Saavedra, Chico Buarque, Daniel Galera, João Almino, João Gilberto Noll, Lourenço Mutarelli, Luiz Ruffato, Michel Laub, Milton Hatoum, Ricardo Lísias, Rodrigo Lacerda, Rubens Figueiredo, Sergio Sant’Anna, Valêncio Xavier lhes sejam ilustres desconhecidos.

 (Analice Martins)