O consumo do privado

(Michael Wolf)

Não vou entrar aqui na polêmica sobre a prévia autorização de biografias por parte dos biografados, embora pense que, havendo sanções previstas em lei e aplicáveis com celeridade sobre crimes de calúnia e difamação, os interesses de biógrafos deveriam pautar-se por critérios mais relevantes do que apenas o consumo frenético da fofoca.

Biografias são um gênero textual que já foi marginalizado pelas “altas literaturas”, mas que goza hoje de prestígio acadêmico e de um envolvimento definitivo com a cultura de massa. Se vivemos em uma sociedade cujas fronteiras entre o público e o privado se diluíram, é urgente também olhar, por um ponto de vista sociológico, o lugar ocupado por biografias, autobiografias, autoficções, talk shows.

Os americanos são um público leitor (ou seria consumidor?) voraz deste gênero. Biografias são altamente rentáveis para o mercado editorial americano. Em uma sociedade do espetáculo, a exposição do privado é artigo indispensável para a satisfação de espectadores. Tudo se dá como encenação grandiosa da intimidade alheia.

Nem toda situação íntima, porém, é necessariamente privada. Decidir sobre o que deve ser tornado público diz muito dos perfis comportamentais de cada sociedade. O íntimo pode tanto ser esclarecedor, revelador, quanto pode também ser absolutamente dispensável, matéria apenas de entretenimento. Quando o íntimo pode ajudar a desfazer enganos e a compreender uma época, a partir de atitudes pessoais, talvez, torne-se urgente e necessário torná-lo público, ainda que contrariando silêncios de toda uma vida.

As narrativas digitais das redes sociais, como o facebook, fazem tudo parecer digno de nota e registro. Acopladas a artefatos portáteis, como celulares e tablets, colocam o mundo na palma de nossas mãos, ao alcance de nossos sentidos hipertrofiados. É fácil perceber isso em situações como uma viagem sem fotos compartilhadas. Se o íntimo não é exposto, parece que não existiu. Concordo que a existência dependa de narrativas: de si, do outro, de muitos. Mas duvido que tenham que se tornar públicas para que sejam críveis.

Uma vida off line não parece ser uma vida que interesse. Por esta lógica perversa, consumir o alheio (o íntimo do outro) é o outro lado da mesma moeda das narrativas de si. Fora de uma dimensão pública, não haveria existência. Ou por outra, tal existência não importaria. O segredo tem que cair na rede. Isto até pode ser catártico e terapêutico, mas não deveria ser um critério de valor e opressão, uma espécie de ditadura.

Quando Roberto Carlos diz que não impediu a publicação da biografia Roberto Carlos em detalhes, feita pelo jornalista Paulo César de Araújo, por conta da narrativa sobre o acidente de que foi vítima, a amputação de sua perna e uso de uma prótese, pode até ter razão, mas, quando afirma, como na entrevista veiculada no programa “Fantástico” da TV Globo no domingo passado, que ninguém melhor do que ele poderia falar sobre este fato e suas implicações, parte de um pressuposto de univocidade lamentável. A voz do outro, amparada em pesquisas, depoimentos, entrevistas e documentos, pode ser mais esclarecedora do que uma autobiografia. Não somos detentores de nossa própria imagem, ainda mais em situações públicas. Dependemos do olhar e da voz do outro para existirmos enquanto subjetividade e discurso. Isso, no entanto, não justifica a espetacularização da privacidade. Fica bastante difícil, erguer muralhas em torno de si em uma sociedade que pede, a toda hora, que “botemos a bunda exposta na janela” para que passem a mão nela.

(Analice Martins)

Os poderes da ficção

Nem seria necessário algum tipo de comprovação científica para que percebêssemos os efeitos da ficção literária sobre os leitores. Efeitos sensórios, lúdicos, catárticos, pragmáticos e cognitivos. As artes poéticas clássicas já os haviam apontado. Os estudos críticos sobretudo do século XX também distinguiram as várias funções da leitura literária. Entretanto, para um mundo tão científico-tecnológico como o nosso, talvez, fosse indispensável mesmo uma pesquisa que os afirmasse.

Interessante observar que funções não são efeitos. Uma função é mais facilmente perceptível e mensurável. Já efeitos, em especial os de ordem cognitiva, parecem invisíveis e intangíveis, carecem de uma prova científica. Pois então, ei-la. A revista Science (migre.me/gkK9J) acaba de publicar uma matéria intitulada “Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind” (ler ficção literária melhora a teoria da mente). Cheguei a esta pesquisa a partir da leitura do artigo “Qual romance você está lendo?” do psicanalista e ficcionista Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo de 17/10. Vale a pena conferir a pesquisa e o texto de Calligaris.

A teoria da Literatura já havia, de certa forma, afirmado tais efeitos quando discutiu o critério de “desautomatização” da língua em seu uso literário. Tal conceito, proposto pelos formalistas russos no início do século XX, também ficou conhecido como “estranhamento”. Acho-o extremamente relevante e producente para compreensão do que seja literatura. Trocando em miúdos seria o mesmo que reconhecer que, no contexto de uso literário da língua, qualquer que ela seja, o leitor é obrigado a sair de sua zona de conforto de uma percepção linear e automatizada, para compreender, com sobressaltos e esforços, a mensagem veiculada por determinado código linguístico. Eis aí a questão: é no processo de estranhamento da informação transmitida que o leitor “ganha” cognitivamente. Ao correr atrás da decodificação da informação, o leitor se exercita, como diz Calligaris: “Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação”. Dito assim, pode parecer não valer a pena, já que a palavra de ordem e de opressão de nossa sociedade é otimizar o tempo, diminuindo esforços e percalços. Mas vale e muito! Os iniciados que o digam!

A pergunta que Calligaris diz ser a ideal para entrevistas – “Qual romance você está lendo?” – sempre me acompanha quando estou, como examinadora (ó céus!) em processos seletivos. Se não a faço diretamente, vou pela tangente. Quando não estou nesta posição, a que o ofício me obriga, mas, na rua, em praças, em ônibus, metrôs, aviões ou praias, vou me esgueirando até que consiga ver a capa do livro que o sujeito empunha e ler-lhe o título. Como se, ao ler o título, meus olhos disparassem uma radiografia cognitiva do sujeito perto de mim. Terrível, confesso! Mas não consigo me libertar deste vício, quase uma sanha antropológica.

Portanto, concordo com os resultados da pesquisa. Aliás, eles nem me seriam necessários para reconhecer que, ao ler, por exemplo, uma oração como “Diadorim é minha neblina” de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, toda a tortuosa delícia dos sentimentos de Riobaldo se revele extraordinariamente. Há quem possa alegar que as metáforas não são exclusividade de textos literários. De fato, não são. Portanto, quando empregadas, em qualquer outro contexto, implicam um exercício mental em busca do sentido representado pelo objeto escolhido como alvo da similitude.

Na poesia, creio que tais poderes se avolumem, pois o caráter de concisão imagética encurrala o leitor em seus processos cognitivos. Não quero dizer, em absoluto, que tais esforços cognitivos estejam atrelados a quaisquer dificuldades lexicais ou sintáticas constantes no texto. Não mesmo! No miniconto de Antonio Carlos Secchin, intitulado “Fim de papo”, não há nenhuma das dificuldades mencionadas, no entanto, por força da criatividade do autor, o leitor é obrigado a uma pequena ginástica para ser brindado com o entendimento: “Na milésima segunda noite,/ Sherazade degolou o sultão.” Fantástico, não?

Uma antologia poética pode ser uma biografia para lá de autorizada, como “Mar” (editora Caminho), de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das maiores vozes da poesia portuguesa do século XX. Recolho das vagas de seu mar poético, alguns versos do poema “No alto mar” que, penso, provocam efeitos sensórios e cognitivos, porque capazes de nos deslocarem do comodismo de nossas percepções automatizadas e nos lançarem no mar revolto do conhecimento: “No alto mar/ A luz escorre/ Lisa sobre a água./ Planície infinita/Que ninguém habita./O Sol brilha enorme/ Sem que ninguém forme/Gestos na sua luz./Livre e verde a água ondula/Graça que não modula/O sonho de ninguém/São claros e vastos os espaços/Onde baloiça o vento/E ninguém nunca de delícia ou de tormento/Abriu neles os seus braços.”

 (Analice Martins)

Espelho, espelho meu!

Por que, afinal de contas, o discurso do escritor Luiz Ruffato causou tanta polêmica na cerimônia oficial de abertura da Feira do Livro de Frankfurt na terça-feira anterior? Para quem conhece sua relação com a literatura, seus romances e contos, não houve ruídos nem inadequação. Para os que não conhecem sua produção literária nem tampouco a literatura brasileira, lá representada por uma delegação de setenta escritores, foram muitos os rumores que criou a verve político-literária do premiado escritor, cujas obras já foram publicadas em países como Itália, França, Alemanha, Argentina.

Nesta cerimônia falaram, além dele, a escritora Ana Maria Machado, presidente da ABL, e o vice-presidente do Brasil, Michel Temer. A Ruffato coube a palavra inaugural, como escolhido entre os escritores brasileiros, para tal missão. Que Ziraldo não tenha se sentido representado, que Nélida Piñon tenha feito ressalvas à aparente depreciação retratada na fala do autor de Eles eram muitos cavalos (2001), nada disso deve embotar a crua e dura realidade do que foi dito. Seu discurso não foi ufanista, nem hiperbólico. A condição de país homenageado pedia uma apresentação, e ele o fez ao seu modo engajado e crédulo, de quem entende a utopia como um lugar a ser alcançado e não como uma quimera.

Ao expor nossos paradoxos socioeconômicos, com estatísticas e números cirúrgicos, apenas pretendeu, creio, colocar o dedo em nossa ferida. Narcísica, registre-se. Ao lançar a reflexão sobre o lugar do escritor em país ainda periférico nesta fase do capitalismo tardio e defender a literatura como compromisso, não obliterou a diversidade das tendências em nossa literatura contemporânea, mas tão-somente assinalou seu projeto político-literário ainda mais notório nos cinco volumes de Inferno provisório. A pena de Ruffato sempre expôs nossas vísceras com a consciência de que a forma escolhida para representá-las não flerta com um realismo documental convencional. A fotografia fragmentada e em ruínas de nossa condição à margem colore sua obra com o sombrio da falta de perspectivas para que são empurrados os personagens, por exemplo, de Eles eram muitos cavalos. Não à toa o romance termina com uma tela preta, espelho de nossas misérias. Ao abrir mão da palavra nesta página última, Ruffato quis mostrar que, frequentemente, o trauma é indizível. É um fato maior que a palavra.

Ao enfatizar, ainda uma vez, sua trajetória de inclusão social, por meio da educação e da leitura – do acesso ao verbo-, ao não escamotear suas origens (filho de um pipoqueiro semianalfabeto e de uma lavadeira analfabeta), sua condição de trabalhador desde cedo (balconista, caixa de botequim, operário têxtil, torneiro mecânico, jornalista), Luiz Ruffato deixou claro que todo escritor deve saber o lugar de onde fala, em nível pessoal ou coletivo. Tal engajamento não macula em nada os imaginários criados pela literatura. Ruffato sabe que a literatura não é documento, tanto assim que implode a estrutura ilusionista do realismo histórico, chamando a atenção do leitor para a palavra que cria a realidade verossímil que se descortina diante de seus olhos. Por isso, não hesita em dizer que escreve para afetar o leitor, porque acredita que a palavra tenha esse poder transformador e libertário.

Ora, mencionar nossas feridas (o genocídio dos índios, a escravidão de três séculos, a hipocrisia, o machismo, o analfabetismo) não significa depreciação, nem “falar mal de”, mas ter a coragem de se olhar no espelho e entender a rasurada identidade brasileira. Hipocrisia é não falar disso. Hipocrisia seria declarar que somos a sétima economia do planeta, sem dizer que ocupamos, entretanto, o terceiro lugar entre os mais desiguais. Hipocrisia é dizer que a seleção dos setenta escritores foi racista porque nela só havia um negro – Paulo Lins, autor de Cidade de Deus. Isso não parece a lógica decorrente de três séculos de escravidão e da consequente marginalização do negro? Em um país de não-leitores, como bem disseram Ruffato e Ana Maria Machado, não causa espanto que, talvez, noventa por cento dos escritores desta lista sejam ilustres desconhecidos para a maioria dos brasileiros. Espelho, espelho meu, não somos um país de leitores!

Qualquer lista é seletiva. Toda seleção implica exclusão. Toda exclusão é lícita desde que os critérios sejam explícitos e válidos. Como país homenageado, adotaram-se critérios de representatividade. A condição racial é apenas uma das variantes da identidade cultural da nação. Não pode ser analisada por si só. Por outro lado, também não é verdade que critérios literários ignorem as variantes de etnia, gênero, escolaridade etc.

Hipocrisia é não querer ver que a estratégia argumentativa utilizada por Ruffato, iniciando seu discurso pelas ressalvas e adversidades que nos constituem, põe em relevo o que disse por último, ou seja: “eu acredito no papel transformador da literatura”. Triste é saber que a desistência de Paulo Coelho, uma semana antes da feira, só diz do narcisismo que nos acomete. Ser um entre os setenta, e não o escolhido para ser o orador oficial, feriu a vaidade do mago, que, apenas nessa hora, lembrou que é brasileiro.

Viva Ruffato, este sim um mago das palavras!

(Analice Martins)

Flashes de viagem

A LÍNGUA

Estou em Portugal pela segunda vez.  Como é bom sentir-se docemente estrangeiro na própria língua, estranhar-se entre sons e palavras. Os deslocamentos territoriais impõem à língua outros fluxos e inflexões. Com o mundo cada vez mais globalizado e interligado pelas tecnologias da comunicação, de fato, não é preciso deslocar-se fisicamente para viajar, mas o corpo empresta à língua uma densidade única. É desejável que ele também goze da experiência desta viagem.

Caetano Veloso sempre teve razão ao cantar que sua pátria era sua língua, mas a língua fora do território da pátria ou mesmo de alguns estados está sempre a roçar em nossos lábios e sentidos, é sempre uma pátria um tanto quanto estrangeira. Nisso, Caetano também tem razão quando canta que gosta de ver a sua língua roçar a de Luís de Camões.

OS LIVROS

Livros e viagens são bons companheiros. Nenhum tipo de viagem é incompatível com tal companhia. Nas minhas, de certa forma, eles são a própria viagem. Estão antes delas, são os seus pontos de partida. Seguem em minhas malas e descortinam-se nas prateleiras dos hotéis, pousadas, hostels, B&B. Estão lá sempre a me acenarem. E derramam-se em cascatas por livrarias e bibliotecas. As cidades também deveriam ser conhecidas pelas livrarias e bibliotecas que têm (ou, infelizmente, que não têm): “Diga-me que livros guarda, e eu lhe direi quem é”.

Assim, não foi com surpresa que me encontrei com Machado de Assis, Jorge Amado e Clarice Lispector. A literatura brasileira fora do Brasil talvez seja sobretudo eles. Paulo Coelho não conta, não tem pátria, mora nos pireneus entre walkírias e alquimistas. Foi com alegria que encontrei, entre as prateleiras de uma livraria de Óbidos, nossos bravos autores contemporâneos: Bernardo Carvalho, Daniel Galera, Rubens Figueiredo, Chico Buarque e até Adriana Calcanhoto e sua saga lusa “renegada”. Percorrer livrarias é também percorrer cidades ou esquecê-las nos mapas de nossas memórias. Tristes as cidades que enterram suas livrarias! Serão sepultadas como indigentes!

Em Coimbra, a Biblioteca Joanina é uma joia do barroco. É espaço de visitação como qualquer monumento que é parte do patrimônio cultural e histórico da cidade. Debruça-se sobre o Mondego. Lá, por entre os livros, avistam-se o rio e as viagens.

OS RIOS

Os rios oferecem uma espécie de identidade aos lugares. Fernando Pessoa já cantara o rio de sua aldeia. Portugal é também o Tejo e o Mondego. É preciso percorrê-los para sentir a alma lusitana, é preciso admirá-los e entender sua geografia para conhecer as cidades e suas gentes.

OS ESTUDANTES E A UNIVERSIDADE

Levei algumas boas horas caminhando por Coimbra no domingo de minha chegada à cidade. As ruas em silêncio deixavam que toda a arquitetura se desenhasse diante de meus olhos. Prédios, igrejas, chafarizes, monumentos, palácios se erguiam de forma abrupta, quase pulando do chão à espera de um olhar atento. As ruas da cidade antiga sobem e descem sinuosas, esgueirando-se em ladeiras. A cidade estava em silêncio até a chegada de seus estudantes. De volta do fim de semana nas casas dos pais, vinham descendo coloridos e ruidosos dos trens, na estação ferroviária A, ao lado do rio Mondego, arrastando malas e mochilas, carregando livros, dirigindo-se às repúblicas.

É comovente perceber o espetáculo do movimento promovido por eles. Coimbra é conhecida por ser uma cidade universitária. Sua alma também está aí. Em uma Europa ainda em crise, com índices crônicos de desemprego, em um país sempre considerado periférico na união europeia, é comovente, sim, ver a força utópica do conhecimento, representado pelo ensino e pela pesquisa universitária. É comovente perceber que “the dream isn’t over”, que é preciso, qual Fênix, renascer das cinzas. “Navegar é preciso”!

(Analice Martins)

Circuitos literários

A relativização da escala de valores para se pensar a literatura e o descentramento da crítica literária especializada pode ser considerada uma espécie de novidade ou mudança paradigmática acarretada pela “web” (world wide web) e pelas novas tecnologias. Assim, em nosso cenário atual,  a função destas críticas como legitimadoras das produções literárias vem sendo constantemente revista.

A experiência de sites especializados, revistas eletrônicas, redes sociais, fóruns de debate pela internet, como foi o fórum virtual “o que é literatura?”, deflagrador do seminário “Literatura sem papel”, realizado em 2006 e 2008, na UFRJ, e resenhas de livros apenas de circulação pela internet promoveram, além de vaidades exacerbadas, uma espécie de dança das cadeiras e de livre expressão de juízos estéticos.

Essas contribuições, trazidas pela “web”, estão, de certa forma, determinando uma espécie de reconstrução da vida literária nacional, a partir da fragilização da importância de mediadores como editores e críticos. Os próprios escritores executam, com frequência, os papéis tanto do editor quanto do crítico. Dessa maneira, ocorre um descentramento das relações de força com uma aproximação mais direta, quer na relação entre escritor e leitor, quer na relação do escritor com a crítica literária.

Se os suplementos literários já haviam empurrado a crítica institucionalizada pela academia para um certo obscurantismo, agora, a “web” diminui e suprime o espaço reservado a tais suplementos nos jornais. Se os jornais americanos suprimiram ou reduziram seus suplementos literários na primeira década do século XXI, a atual vida literária brasileira também acompanhou, paralelamente, o aparecimento de novos espaços, talvez mais democratizados, porém passíveis de questionamentos sobre sua autoridade para atribuição de juízos estéticos.

Em um movimento semelhante ao ocorrido com o antagonismo entre os críticos “scholars” e os de rodapé, a possível democratização trazida pela pulverização de opiniões, a partir da “web”, fez com que o crítico de cinema da revista “Time”, Richard Schikel, escrevesse na página de opinião do jornal “Los Angeles Times” que “nem todo mundo é um crítico”, e que o trabalho de resenhar livros não é uma atividade democrática, promovendo, com tais declarações, reações acaloradas nas quais os jornais criticaram o amadorismo dos blogs, e os blogs denunciaram o partidarismo dos jornais.

Assim como, em um primeiro momento, o espaço assegurado ao livro literário impresso pareceu ameaçado de extinção, com a ameaça trazida pela “web” ao espaço da crítica literária nos suplementos literários, o escritor Salman Rushdie afirmou, em evento promovido pelo Círculo Nacional de Críticos de Livros (NBCC, na sigla em inglês), que “é um erro tratar os novos meios como uma ameaça à crítica de jornais”. Jornais e blogs se complementam.

Mais importante, talvez, do que dimensionar a procedência e a legitimidade das críticas realizadas nesses blogs e sites é avaliar o que a pesquisadora e ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda identifica como “simultaneidade geracional entre autor e leitor”: “O novo escritor sempre falou com o velho crítico ou o velho escritor. Hoje, o escritor já fala de imediato com sua geração. Isso produz uma troca muito importante”.

Outra alteração paradigmática que se observa nas reconfigurações promovidas pelas novas tecnologias é a mobilidade dos lugares ocupados por escritores, críticos e leitores, em uma nítida acumulação de funções. O mesmo que escreve lê seus pares e é por eles lido. O que apenas lia, opina publicamente. De certa forma, escreve, interfere.

Fronteiras e muros delimitadores de territórios impenetráveis são atravessados, no século XXI, acirrando o que, anteriormente, em outro contexto, Karl Marx identificara, como a solidez que se desmancha no ar. Constatação que, de certa forma, Zygmunt Bauman, sociólogo expulso do Partido Comunista em 1968, retoma com o tema da liquidez, explorado, em livros como “Modernidade líquida”, “Tempos líquidos”, “Amor líquido”, “Vida líquida” e “Medo líquido”, para identificar a precariedade, a vulnerabilidade, a instabilidade e a incerteza dos vínculos dos indivíduos entre si e nos mais variados âmbitos da vida social no atual estágio da modernidade avançada.

Em um mundo, portanto, em que há uma liquefação nas relações entre os indivíduos e uma espécie de desengajamento social, tal diapasão para pensar a contemporaneidade envolve, sem dúvida, as manifestações culturais. A literatura, ainda que constituída de obras que atravessam, na sua condição de clássico, os tempos e as fronteiras geográficas, permaneceria infensa a tal contingência de liquidez? O que se escreve na “web” é feito para se desmanchar no ar? Só a publicação impressa asseguraria uma sobrevida e uma espécie de resistência temporal à obra literária?

(Analice Martins)

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Este texto é parte do artigo “Modos de produção e circulação na web: algumas notícias da atual literatura brasileira”, de minha autoria, publicado no número 179 (out.- dez.), da Revista Tempo Brasileiro, em 2009.