Não vou entrar aqui na polêmica sobre a prévia autorização de biografias por parte dos biografados, embora pense que, havendo sanções previstas em lei e aplicáveis com celeridade sobre crimes de calúnia e difamação, os interesses de biógrafos deveriam pautar-se por critérios mais relevantes do que apenas o consumo frenético da fofoca.
Biografias são um gênero textual que já foi marginalizado pelas “altas literaturas”, mas que goza hoje de prestígio acadêmico e de um envolvimento definitivo com a cultura de massa. Se vivemos em uma sociedade cujas fronteiras entre o público e o privado se diluíram, é urgente também olhar, por um ponto de vista sociológico, o lugar ocupado por biografias, autobiografias, autoficções, talk shows.
Os americanos são um público leitor (ou seria consumidor?) voraz deste gênero. Biografias são altamente rentáveis para o mercado editorial americano. Em uma sociedade do espetáculo, a exposição do privado é artigo indispensável para a satisfação de espectadores. Tudo se dá como encenação grandiosa da intimidade alheia.
Nem toda situação íntima, porém, é necessariamente privada. Decidir sobre o que deve ser tornado público diz muito dos perfis comportamentais de cada sociedade. O íntimo pode tanto ser esclarecedor, revelador, quanto pode também ser absolutamente dispensável, matéria apenas de entretenimento. Quando o íntimo pode ajudar a desfazer enganos e a compreender uma época, a partir de atitudes pessoais, talvez, torne-se urgente e necessário torná-lo público, ainda que contrariando silêncios de toda uma vida.
As narrativas digitais das redes sociais, como o facebook, fazem tudo parecer digno de nota e registro. Acopladas a artefatos portáteis, como celulares e tablets, colocam o mundo na palma de nossas mãos, ao alcance de nossos sentidos hipertrofiados. É fácil perceber isso em situações como uma viagem sem fotos compartilhadas. Se o íntimo não é exposto, parece que não existiu. Concordo que a existência dependa de narrativas: de si, do outro, de muitos. Mas duvido que tenham que se tornar públicas para que sejam críveis.
Uma vida off line não parece ser uma vida que interesse. Por esta lógica perversa, consumir o alheio (o íntimo do outro) é o outro lado da mesma moeda das narrativas de si. Fora de uma dimensão pública, não haveria existência. Ou por outra, tal existência não importaria. O segredo tem que cair na rede. Isto até pode ser catártico e terapêutico, mas não deveria ser um critério de valor e opressão, uma espécie de ditadura.
Quando Roberto Carlos diz que não impediu a publicação da biografia Roberto Carlos em detalhes, feita pelo jornalista Paulo César de Araújo, por conta da narrativa sobre o acidente de que foi vítima, a amputação de sua perna e uso de uma prótese, pode até ter razão, mas, quando afirma, como na entrevista veiculada no programa “Fantástico” da TV Globo no domingo passado, que ninguém melhor do que ele poderia falar sobre este fato e suas implicações, parte de um pressuposto de univocidade lamentável. A voz do outro, amparada em pesquisas, depoimentos, entrevistas e documentos, pode ser mais esclarecedora do que uma autobiografia. Não somos detentores de nossa própria imagem, ainda mais em situações públicas. Dependemos do olhar e da voz do outro para existirmos enquanto subjetividade e discurso. Isso, no entanto, não justifica a espetacularização da privacidade. Fica bastante difícil, erguer muralhas em torno de si em uma sociedade que pede, a toda hora, que “botemos a bunda exposta na janela” para que passem a mão nela.
(Analice Martins)