Cartão de Natal

Desde que li, pela primeira vez, o poema de João Cabral de Melo Neto que se intitula “Cartão de Natal”, deposito nele, a quem eu o enderece, a expressão de meus votos natalinos. Portanto, repito-lhe os versos ano após ano, como uma espécie de mantra, capaz de guardar uma força que aponte para a vida com entusiasmo, no sentido etimológico que a palavra guarda: ter um Deus dentro de si.

Cabral, poeta que se dizia ateu, não se furtou, mesmo que de forma desconfiada, a desejar que, nesta data, boas novas pudessem renascer, inaugurando “o novo em cada amanhecer”. Peço licença ao poeta para, mais uma vez, transcrever seus versos e me apropriar de seus sentidos insinuados, acrescentando-lhes outros das minhas intenções de leitura. Ei-lo:

“Pois que reinaugurando essa criança

pensam os homens

reinaugurar a sua vida

e começar novo caderno,

fresco como o pão do dia;

pois que nestes dias a aventura

parece em ponto de voo, e parece

que vão enfim poder

explodir suas sementes:

 

que desta vez não perca esse caderno

sua atração núbil para o dente;

que o entusiasmo conserve vivas

suas molas,

e possa enfim o ferro

comer a ferrugem,

o sim comer o não”.

 

A subjetividade do poema é velada, camuflada no desejo da humanidade. Talvez, apenas entrevista, de fato, nos seguintes versos: “que desta vez (…)o entusiasmo conserve vivas/ suas molas/e possa enfim o ferro/comer a ferrugem,/ o sim comer o não”. Só da engenharia cabralina sairia uma inversão tão contundente traduzindo esta assertividade de que precisamos para redirecionar a vida, reorientar desejos, inibir a corrosão do “não” e imaginar que são imprescindíveis as molas do entusiasmo para alavancar a esperança que constrói o “sim”.

Em seu auto de natal pernambucano, “Morte e vida severina”, diante da morte que grassa no sertão (“só a morte vejo ativa”), Severino, que queria “saltar numa noite, fora da ponte e da vida”, ouve de José, mestre carpina, a dura lição: “ a vida de cada dia/cada dia hei de comprá-la”. Em seguida, Severino assiste ao nascimento do filho de José que “saltara para dentro da vida”.

Severino ouve vizinhos, amigos e pessoas que vieram visitar o menino dizerem de sua formosura às avessas, pois, apesar de “ser criança pálida e franzina” é “tão belo com um sim/ numa sala negativa”, “E belo porque com o novo/todo velho contagia./Belo porque corrompe/ com sangue novo a anemia./Infecciona a miséria/com vida nova e sadia./Com oásis, o deserto,/com ventos a calmaria”.

Sim, é “difícil defender/só com palavras, a vida”, sobretudo esta severina, que continua avançando com outras máscaras, como bem descreveu, em seu artigo do domingo passado, Aldir Blanc falando do mesmo nordeste brasileiro. Este que parece não acabar, este arrombado pela ausência de postos de saúde, de escolas dignas, de bibliotecas, de centros culturais e de lazer, faminto até de arroz, feijão e macarrão, destroçado pelo crack, sejam as vítimas homens, mulheres, adolescentes ou velhos. Ironia ferina o “feliz natal” desejado ao final do artigo.

Difícil mesmo defender só com palavras a vida. Ainda assim desejo a todos os meus leitores O FERRO QUE POSSA COMER A FERRUGEM E O SIM QUE POSSA COMER O NÃO.

(Analice Martins)

Experimentação e criação

Vivemos encurralados pela ameaça constante de que não está longe o dia em que nossos conhecimentos serão definitivamente substituídos por algum tipo de inteligência artificial capaz de pensar e criar. Ou seja, que a máquina não será mais um acessório ou ferramenta conduzida pela inteligência humana, mas agirá de forma autônoma e independente. Se esse dia nos chegar, estaremos diante de uma alteração paradigmática irreversível que relegará a existência humana a uma condição periférica.

A máquina, qualquer que seja ela, desvinculada da subordinação à inteligência humana, esvaziará de vez nossa condição de sujeitos criadores. Seremos algum reflexo distorcido de um princípio maquínico vital. Há quem pense que já estamos nesse estágio ou que não poderemos evitá-lo. Há talvez os que anseiem por tal realidade imaginando que nela estarão livres do fardo da humanidade: esta condição que nos faz pensar e, portanto, parafraseando Descartes, existir.

Tais reflexões têm uma razão de ser nem tão relevante assim, porque já experimentada no início do século XX com os movimentos vanguardistas, os famosos ISMOS que trouxerem para o primeiro plano da representação os bastidores da criação, a materialidade dos artefatos artísticos e que fraturaram a crença ainda persistente de que a arte possa copiar a vida. Futurismo, Dadaísmo, Cubismo, Impressionismo, Surrealismo, Expressionismo nos ensinaram que a palavra e a cor não são a coisa em si representada. Um cachimbo pintado não é um cachimbo palpável, mas tão-somente um truque, uma mágica, um engodo orquestrados por uma subjetividade criadora. Em outras palavras, por uma cognoscência, um individuo pensante e atravessado por muitas outras vozes pensantes.

Para criar, para dar existência, é necessária uma subjetividade pensante. No fundo, as experiências vanguardistas só reforçaram tal estatuto. Ao realizarem experiências com as palavras e a língua, como no Dadaísmo, fazendo crer que uma ordem aleatória para as palavras pudesse ser um discurso, experimentaram a elasticidade da língua, esgarçaram-na para que, liberta da linearidade previsível, pudesse significar longe dos arbítrios discursivos.

As experiências foram muito válidas, tanto que ficaram conhecidas como vanguardas históricas. Contribuíram para estremecer, arejar e dilatar sentidos e nos legaram a certeza de que a desconstrução e a fragmentação são operações que exigem uma “engenharia” intelectual e autoral. Quando os dadaístas propuseram que a fórmula de criação poética se realizaria com palavras recortadas de jornais, colocadas em um saco, retiradas aleatoriamente e copiadas em um papel, anteciparam princípio semelhante ao aplicativo “What would I say?” que, como um programa-robô, lê o histórico das postagens dos perfis do Facebook e as reordena aleatoriamente. Ora, se não há uma subjetividade construtora, a criação poética seria fruto do acaso, esta sombra indesejada para uma certa linhagem de poetas?

Sem dúvida, são os modos de ler que também legitimam o que é literário ou não, mas, neste caso, o leitor é movido por sua subjetividade pensante e passível de ser criadora. Em nossos tempos simulacrais e preguiçosos, por que não experimentar? Em tempos de escritores instantâneos (postou, criou!), a moda pode pegar. E aí, dada a quantidade de aficionados pelo Facebook, poderíamos ter um “boom” de novos poetas?

Tristes tempos esses em que brincadeiras autômatas e programas-robôs preenchem o vazio de nossas subjetividades, em que um mundo de não-leitores ou de leitores umbigueiros, aqueles que só leem postagens imbecilizantes, podem ser catapultados à condição de escritores e, quem sabe,  pertencerem a alguma antologia dos tempos maquínicos.

Pensar para quê? Ler para quê? Há programas-robôs que o fazem por nós e que agora também criariam por nós. A etimologia da palavra “criar” remete à ideia de erguer, produzir, tirar do nada, colocar de pé. Logo, não me parece que a criação artística possa ser atributo de máquinas e programas desprovidos de singularidades marcadas por atravessamentos psíquico-sociais.

É inegável a importância do experimentalismo como mola propulsora da criação artística. De fato, é preciso rasgar, costurar, encaixar, montar, ousar, reinventar. É preciso mexer, sacudir para, depois, (re)ordenar a partir de um ponto de vista escolhido por um indivíduo, ainda que caoticamente pensante. O caos também é condição de criação.

Já a supressão das subjetividades só pode nos conduzir a uma condição objetal e marginalizada onde permaneceremos em um limbo asfixiante.

(Analice Martins) 

 

Coisas sujas e invisíveis

Barco com imigrantes chega à Lampedusa; naufrágio de outra embarcação deixou 15 mortos e 130 desaparecidos

Em outubro deste ano de 2013, naufragou, perto da ilha de Lampedusa na Itália ultramarina, mais um navio com cerca de 450 imigrantes ilegais, em sua maioria somalis e eritreus, que tendo partido do litoral da Líbia, na costa africana, pretendia alcançar a Europa Mediterrânea. Um drama europeu muito mais do que italiano.

Em abril de 2005, as labaredas que tingiram o céu parisiense, no maior incêndio das duas últimas décadas naquela capital, segundo informações da Cruz Vermelha, fizeram não apenas vinte mortos aproximadamente, mas também expuseram, na aparente indistinção dos corpos inertes entre cinzas e escombros, raízes e particularidades outras que aquele espaço urbano abriga.

A cartografia do nono distrito da capital parisiense dispunha, em espaços contíguos, o pequeno hotel Paris-Opéra, com uma única escada de emergência, e a multinacional Galeria Lafayette, que serviu de posto para os primeiros socorros dos feridos. O espaço globalizado e imperioso do capital abrigou durante algumas horas os feridos pobres de nacionalidades distintas.

Para além da morte trágica de crianças e adultos, aqueles escombros pareciam sinalizar uma outra dinâmica imobilizada pelo fogo: o fluxo migratório de africanos, portugueses, ucranianos. Segundo dados oficias, o hotel, com capacidade para setenta e seis hóspedes, localizado na Rue de Provence, 76, atrás da luxuosa galeria, fazia parte das políticas públicas da prefeitura parisiense no sentido de acomodar imigrantes africanos pobres.

O incêndio tornou visível a dinâmica deste “cosmopolitismo do pobre” nas metrópoles do mundo pós-industrial, tomando emprestada a expressão cunhada por Silviano Santiago, em livro homônimo, para expressar o que caracterizou como segunda investida do multiculturalismo: “Uma nova e segunda forma de multiculturalismo pretende dar conta do influxo de migrantes pobres, na maioria ex-camponeses, nas megalópoles pós-modernas, constituindo seus legítimos e clandestinos moradores, e resgatar, de permeio, grupos étnicos e sociais, economicamente desfavorecidos no processo assinalado do multiculturalismo a serviço do estado-nação”.

O incêndio também tornou visível o sujo da pobreza, decorrente do apelo do capital transnacional, sedento de mão-de-obra barata, que faz migrar, como afirma Santiago, “a pé, a nado, de trem, navio ou avião os desprivilegiados do mundo que estejam dispostos a fazer os chamados serviços do lar e de limpeza e aceitam transgredir as leis nacionais estabelecidas pelos serviços de migração”

Evocar, neste artigo, certos  naufrágios dos últimos anos e o incêndio ocorrido no hotel Paris-Opéra é pensar em que medida as imposições do capital transnacional fazem eclodir um fluxo migratório desejavelmente clandestino, malgrado os esforços de políticas públicas habitacionais. É pensar ainda em que medida este deslocamento compulsório seria estratégia de inclusão, por conferir aos desempregados do mundo a perversidade da inclusão pela empregabilidade barata e clandestina. Ou se continuamos a falar tão-somente de uma mesma lógica operacional já identificada no multiculturalismo antigo, de que fala Santiago, ao se referir ao império do homem branco, europeu, ocidentalizando o mundo, só que agora convocando para o seu território, num fluxo centrípeto, os povos anteriormente colonizados e subjugados no além-mar.

Nesse sentido, Coisas belas e sujas, do diretor britânico Stephen Frears, lançado no Brasil em 2003, traz para a cena cultural cinematográfica o trânsito nervoso do cosmopolitismo de africanos, espanhóis, turcos, coreanos, na babel londrina, já que é, em Paris, Londres, Roma, Nova Iorque e São Paulo, que, segundo o crítico referido, unem-se os desempregados do mundo.

Londres é palco de uma “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau. O filme de Frears apresenta a Londres excludente (ou perversamente includente) do capital, a Londres africana, turca, chinesa, dos que, como responde o médico argelino/dublê de recepcionista de hotel e motorista de táxi, a um inglês, são “invisíveis”: “Nós somos as pessoas que vocês não vêem. Somos nós que limpamos suas latrinas, dirigimos seus carros, chupamos seus paus”.

O hotel londrino, não-lugar na acepção  antropológica de Marc Augé, é por excelência a possibilidade de identificações provisórias, em trânsito, não relacionais. É lá, microcosmo babélico da Londres pós-moderna, que a “estrangeiridade das línguas” e corpos transforma aquelas singularidades em mão-de-obra barata, incluindo o gerente espanhol do hotel (Juan/Sneaky), imigrante pobre legalizado, que mantém sob estreita vigília os que, sem passaporte e sem visto de permanência, trabalham na clandestinidade como camareiros, ascensoristas, recepcionistas.

 

 (Analice Martins)

A lanterna do meu Natal

Este texto foi feito para ser publicado no dia 25 de dezembro de 2012 no jornal Folha da Manhã. Como, na data natalina, o jornal não circulou, publico-o neste dezembro de agora em que a saudade me aperta o coração.

As luzes de neon que envolvem as ruas nessa época sempre me foram um convívio duro. Ofuscam minha visão e não iluminam nada. Passo por elas apressada desejando que logo se apaguem e devolvam aos lugares públicos e privados seus contornos reais. São muitas lâmpadas de luz contínua ou intermitente, coloridas em sua maioria: um cenário carnavalesco.

A árvore de Natal que se instala na Lagoa Rodrigo de Freitas, a cada ano mais alta e mais luminosa, é esquisita, qualquer que seja a sua decoração temática. Ninguém mais consegue olhar a sinuosidade das curvas da lagoa. Todos olham vidrados para a torre flutuante, contemplam-na como um espantalho às avessas capaz de atrair multidões e parar o trânsito. Pequenas embarcações se aproximam dela para que os ávidos possam admirar esse totem de luz. Meus olhos se cansam.

Na minha memória infantil, o cenário é tão outro… Os preparativos para o Natal sempre reuniram e ainda reúnem na casa de minha mãe mãos céleres que empacotam alimentos e os dispõem em cestas que serão entregues nesta data. Confesso também que a austeridade e o rigor daquela rotina me deixavam sem pouso. Na sala, uma pequena e mesma árvore prateada com poucos enfeites vermelhos era colocada sobre uma mesa de canto. Lá permanecia sem despertar muita atenção, sem interromper o ritmo da casa, recolhendo os presentes que, quase sempre, sem nenhuma cerimônia, eram abertos antes e, depois, devolvidos ao seu lugar forjado.

Atualmente observo essa rotina das cestas de longe. Embora haja lâmpadas na árvore que fica sobre a mesma mesa, ela é outra. Há luzes piscando. Tudo trazido pela iniciativa de minha sobrinha que, sozinha, se encarrega de comprar e instalar árvore, enfeites e iluminação. Ela não admite recusas. Mal dezembro começa, já vai nos encurralando: “Titia, pode comprar enfeites novos? Preciso de dinheiro para as lâmpadas!”. Sem ajuda, monta toda a engenhoca com requintes de tomadas e adaptadores. Mas ela não fica de fora do “ritual” da casa de minha mãe, onde mora. Corre para ajudar a avó a cumprir uma rotina de mais de quarenta anos.

Lembro-me de duas comunidades que eram assistidas com os alimentos das cestas de Natal. Uma ficava embaixo da ponte de Lapa. Quando chovia no dia 24 ou o rio Paraíba enchia, as construções de madeira, papelão e zinco pareciam que iam se desfazer naquela mesma noite. Mas o pequeno exército que minha mãe arregimentava tinha braços fortes e descia até lá onde, impreterivelmente, as famílias nos esperavam. Eu olhava assustada, queria descer, mas não me lembro se chegava até lá. Meu irmão era mais valente e não desgrudava de minha mãe que seguia sempre à frente segurando uma lanterna e uma lista em que estavam relacionadas as famílias que receberiam os alimentos.

O nosso trajeto mais árduo – e para mim chocante – ainda estava por vir. Atravessávamos de volta a ponte da Lapa e seguíamos para o Inferno Verde, comunidade que fica às margens do rio Paraíba. Todos se reuniam na entrada de um beco que me parecia um túnel infinito. Um cheiro acre de suor e álcool se misturava à realidade fétida da falta de infraestrutura sanitária. Seguia no meio dos amigos de minha mãe ajudando a carregar as cestas ou latas de leite Ninho que eram passadas de mão em mão até chegarem a seu destino. Quando minha mãe anunciava um nome da lista, jogando o foco de luz de sua lanterna sobre o papel e depois sobre as paredes das casas, meus olhos viam rostos tristes. Uma tristeza diferente de tudo que eu conhecia até então, que nunca tinha visto ao meu redor ou na televisão. Quando aquele foco de luz se projetava sobre o cômodo, com frequência dividido por mais de uma família, meus olhos se cegavam naquelas sombras. Minhas retinas retiveram para sempre aquele flashes tão distantes do neon das ruas, pois a única luz que se acendia de fato era a da lanterna que ela empunhava com mãos firmes.

A luz pálida que emanava da lanterna fazia nascer o que, depois, fui reencontrar, já de forma estetizada, nas telas de Portinari. Não a cena em si, como a da série “Os Retirantes”, mas a dor das figuras distorcidas e tão imensamente críveis na sua desproporção. A lágrima gigante que escorre do rosto da menina numa dessas é a síntese do que a minha memória guardou. Mas minha experiência estética foi posterior ao Inferno Verde e suas ruelas, seus tetos baixos que pareciam não permitir a entrada de uma pessoa mais alta. Tetos que pareciam comprimir aquelas vidas e sufocá-las mais do que abrigá-las do sol e da chuva.

Hoje tudo me parece ainda tão próximo, embora eu já não faça esse percurso ajudando o pequeno exército de minha mãe. Sua lembrança, no entanto, não me deixa relaxada diante de tantas lâmpadas e do neon. Um incômodo me faz correr da artificialidade dessa luz e esperar que, tendo cumprido sua tarefa anual de entrega das cestas, o semblante de minha mãe se refaça aliviado e iluminado. É essa a única luz que me acende a cada Natal. Neste de 2013, o primeiro de sua ausência entre nós, haverá, certamente, a presença de uma estrela a guiar e a iluminar os passos de seu pequeno exército na escuridão de ruas perdidas.

(Analice Martins)