Shoppings são, em princípio, lugares destinados ao consumo. Lugares de passagem provisória e pragmática, para onde se dirigem os movidos pelo desejo ou pela necessidade de compra. São lugares que, restritos a essa função, não seriam lugares identitários, ou seja, aqueles com os quais estabelecemos vínculos e com os quais, por alguma condição existencial, psicológica ou sociológica, criamos pertencimentos.
A partir do momento em que os templos do consumo massivo passam, cada vez mais, a agregar outras funções, tais como a alimentação (praças ou restaurantes); o entretenimento (teatros, cinemas, jogos); a atividade física (academias) e a estética (cabeleireiros, massagens, drenagens), deixam de ser lugares de passagem, sem vínculos fixos, para se territorializarem, ou seja, para os povoarmos como se fossem também as nossas casas, os nossos espaços de eleição. Nesse caso, conferimos a eles um sentido não apenas utilitário, movido pelos contratos de compras e serviços, mas de cultura e diversão, atributos também necessários ao espaço público que, em essência, é para todos, como por exemplo, a rua, a praça, a praia.
O antropólogo francês Marc Augé traz importantes contribuições a tal reflexão em seu livro Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Para ele, o conceito de “não-lugar” não está atrelado à não existência, ao que não existe, mas aos espaços com os quais não se estabelecem vínculos identitários ou de pertencimento, pois são apenas espaços de trânsito, de passagem, sem laços. Rodoviárias, aeroportos, hotéis, shoppings seriam exemplos de “não-lugares” em oposição aos “lugares antropológicos” como a casa e seus duplos (o bairro, a cidade).
Nada disso, no entanto, pode ser entendido sem uma perspectiva relativista que introduz questões que subvertem essas categorias. Por exemplo, em um mundo globalizado e veloz, de trânsitos nervosos e urgentes, a “casa”, como representação das raízes e das pertenças primeiras, acaba por ser apagada em proveito de outras estadas em que o anonimato e a despersonalização das relações são novas e desejáveis fórmulas de vínculo.
Para entender as dinâmicas sociais, é conveniente que, além dos nossos sentimentos de rejeição, estranhamento, preconceito ou mesmo repulsa, olhemos para além de nossos umbigos. A esfera pública pressupõe um convívio democratizado, aberto às diferenças e às múltiplas vozes. A esfera privada, voltada para o público – o que me parecem ser os shoppings -, não pode se furtar a tal exercício, sob pena de oficializarmos uma política segregacionista e enterrarmos de vez nosso já questionável mito fundacional da cordialidade.
Portanto, em época de rolezinhos – que não são arrastões –, devemos erguer nossos estados de consciência e não necessariamente muros policialescos. Quebra-quebra, furtos, depredação, algazarra, nada disso se justifica, sem dúvida. Mas é hora de entendermos que a democracia é um processo de territorialização, otimizado, agora, pelo poder das redes sociais.
O que nos soa invasivo e estranho, nada mais é do que o resultado das nossas territorializações. Ao entendermos o shopping como casa, ao desejarmos viver resguardados por suas paredes e tetos de vidro, não queremos aceitar que ele pode ser o trânsito de todos ou de qualquer um. Ao introduzirmos nele nossas sagradas horas de descanso, lazer e ócio, territorializando-o como a nossa casa, esquecemos que ele é para o público que não precisa de carteirinha para aí entrar. Para alguns, quem sabe, esta seja uma boa solução: fazer dos shoppings clubes de diversão e privacidade.
Vale lembrar, por último, que, talvez, o problema não esteja nos shoppings, na privacidade, na segurança ou na mobilidade das periferias, mas no que efetivamente entendemos por território.
(Analice Martins)