Entre culturas

O papa negro dos Estudos Culturais, Stuart Hall, morreu na semana passada em Londres onde vivia desde a década de 50 do século XX. Valho-me desta designação apropriadíssima que intitulou a entrevista que concedeu, em 2003, a Heloisa Buarque de Holanda e a Liv Sovic, professoras e pesquisadoras da UFRJ.

Para minha felicidade, estive em Salvador, em 2000, quando ele fez a conferência de abertura do mais importante evento de estudos de literatura no Brasil: o VIII Congresso da ABRALIC, Associação Brasileira de Literatura Comparada. Também lá estiveram outros pesquisadores da diáspora negra, do entrelugar do discurso, das vidas em trânsito, das identidades cindidas, dos estudos multiculturalistas, como, por exemplo, Gayatri Spivak, autora do provocante ensaio “Pode o subalterno falar?”. Naquela ocasião, eu começava meu Doutorado em Estudos de Literatura, na PUC-RIO, e acabava de ser lançado no Brasil seu pequeno e badalado livro “A identidade cultural na pós-modernidade”. Um livro de caráter didático, mas que se tornou febre nos cursos de Graduação e Pós-Graduação nas universidades do país, uma leitura quase obrigatória. Lembro-me de que, por uns dez anos consecutivos, praticamente todas as dissertações e teses que li, nas grandes áreas das Ciências humanas e sociais, Letras e Artes, pagavam tributo a ele. Não sem razão, embora de forma às vezes um pouco forçosa e em detrimento de outros vigorosos estudos de fôlego sobre a questão da identidade cultural e sua vertente diaspórica, da qual Hall, jamaicano radicado em Londres, fosse talvez o mais prestigiado representante.

As travessias compulsórias, por mais que possam prometer a libertação de determinados grilhões, não se fazem impunemente. Essa cicatriz é a lembrança sempre viva de que os novos pertencimentos, ou seja, as inserções na cultura dominante, dão-se por agenciamentos difíceis. Na entrevista a que me referi, Hall afirma que sua migração para a metrópole antecedeu as lutas pela independência jamaicana, mas que, apesar de ter-se casado com uma inglesa e ter filhos nascidos na Grã-Bretanha, nunca se sentiu como um inglês integralmente. Esta consciência do entrelugar de seu discurso, como professor e pesquisador, bem se traduz no depoimento a seguir: “Quanto à Jamaica, é meu país perdido, onde já não me sinto em casa. A Jamaica é o que eu poderia ter sido, é o que poderia ter acontecido. Portanto tenho uma relação muito romântica, muito nostálgica com a Jamaica. Meus amigos que ficaram tiveram experiências fortes como a da independência e das lutas dos anos 70, da transformação da Jamaica numa sociedade negra. Se a Jamaica já fosse uma sociedade negra quando parti, eu nunca teria ficado na Inglaterra. Teria voltado para casa. Sinto que não estou em casa em nenhum dos dois países, o que é, suponho, a causa da minha ênfase na noção de ‘in-betweenness’. É por isso que me interesso pelo fenômeno das diásporas, é por isso que me interesso por hibridizações, pelo que constitui a “casa” , para a qual nunca se volta efetivamente”.

Hall formou-se em Letras em Oxford e não custou a repensar o cânone da literatura ocidental, em especial a inglesa, como um mecanismo também excludente, afeito a um certo elitismo literário. Ora, para um homem ciente de seus duplos pertencimentos e engajado socialmente, o cânone literário precisava ser revisto para incluir as vozes das margens, das ex-colônias, das periferias urbanas etc. Percebeu logo que a ausência do estudo da contemporaneidade era uma postura segregacionista, que a academia quando muito chegava ao estudo da literatura do século XIX. Percebeu além: que, sem a associação das formas literárias aos contextos histórico-culturais de suas produções, toda pesquisa estaria fadada ao beletrismo e teria um caráter inócuo. A aproximação da crítica social e de Richard Hoggart de quem foi assistente permitiu demarcar a indissociabilidade entre literatura e cultura ou, de forma mais abrangente, entre artes (música, pintura, fotografia) e cultura, isto é, tudo aquilo sobre o que se debruçam os Estudos Culturais, esgarçando as fronteiras entre alta cultura e cultura de massa, arte e mídia, e reafirmando a importância de pensar de “onde se fala”? De que contexto? Que implicações isso traz para as marcas discursivas que entram em circulação em registros mais universalizantes?

Para a cultura brasileira, transplantada, miscigenada, híbrida e múltipla em seu nascedouro, tais questões urgem. Não à toa observa-se a penetração de seus estudos nas universidades do país. Não foi apenas como pensador da diáspora negra que Stuart Hall fincou seu legado entre nós, mas, sobretudo, pela percepção da identidade como algo que não é nem essencialista nem fixo, mas sim uma “celebração móvel”, um processo de identificações na convergência das variantes de etnia, gênero, escolaridade, faixa etária etc. Reconheceu que por trás de uma aparente homogeneização identitária reinam importantes variantes discursivas, como nele próprio, um intelectual negro, de origem jamaicana, cidadão inglês. Toda formação discursiva de relevo parte de fissuras e atritos ou alguém desconsidera, para citar um caso nosso, que Clarice Lispector, além de mulher, era judia, ucraniana, residiu em Recife, mudou-se para o Rio e correu o mundo?

(Analice Martins)

Quando a realidade engole a câmera

O documentário é um gênero audiovisual que pretende captar a realidade em seu estado bruto, sem a mediação de atores, cenário ou vestimentas. Esta estratégia finge abolir o enquadramento da câmera, as intenções do diretor, colando-se no entorno para decalcá-lo e nos devolvê-lo em imagens e sons desprovidos de maiores interferências. O documentário é também um gênero que visa à exploração investigativa da realidade, seja ela social, política ou mesmo pessoal e subjetiva.

Este princípio estruturante é, no entanto, falacioso, como bem sabemos, pois o enquadramento da lente, os ângulos escolhidos, a tomada de sequências e closes funcionam como molduras que recortam a realidade palpável e a reconfiguram na necessária edição, que é condição operatória de qualquer arte, mesmo aquelas com propósitos documentais. Ainda que o diretor filme sem interrupções e sem intervenções, o que foi filmado deixa sua condição objetal para se transformar em imagem. Não se trata mais, portanto, da realidade, mas de sua representação, como na caverna de Platão.

Tal processo, então, fabrica o real, valendo-se do mesmo princípio estruturante dos filmes de ficção que, por vezes, parecem mais reais do que documentários com a mesma temática. Cito, por exemplo, o documentário “Tiros em Columbine” (2003), de Michael Moore, em que o diretor, a partir de entrevistas, imagens de arquivo, vídeos institucionais, sequências de animação, procura entender a fascinação dos americanos por armas de fogo, sua venda legalizada e as consequências nefastas desta postura armamentista para a sociedade americana. O documentário, qualquer que ele seja, apoia-se em testemunhos, mesmo que não haja falas.

O testemunho se ergue como a prova incontestável do fato. Um argumento de autoridade que dá credibilidade à argumentação que se constrói sobre determinado assunto. Imagens de arquivo e fotos também funcionam nesse sentido como elementos que capturaram o evento em tempo real e que, portanto, podem conferir autenticidade ao ocorrido.

Ser ficcional, ou seja, ter um caráter representativo e não apresentativo, não retira necessariamente da narrativa audiovisual sua plausibilidade, aquilo que Aristóteles, em sua “Poética”, nomeou como verossimilhança, ou seja, “as virtualidades criadoras”. Este estatuto das composições artísticas é tão eficiente, parece-me, quanto a pretensão de retratar a “verdade nua e crua”, pois ela pode ser indecifrável a olho nu sem as mediações de um enredo paralelo à história em si. A ficção não deve subordinar-se à realidade, pois não lhe serve obrigatoriamente de testemunho, mas bem pode elucidá-la, jogar-lhe luz e produzir o tão perseguido “efeito de real” que nossa sociedade contemporânea exige como condição de sobrevivência: a coisa real, o espaço real, o tempo real. Ora bolas, o real pode ser indizível e inapreensível.

“Elefante” (2003), de Gus Van Sant, é uma pequena joia rara. Um filme de ficção enxuto sobre a mesma temática de “Tiros em Columbine” que, sem as amarras sociológicas de um documentário, consegue colocar, com mais veemência que Moore, algumas questões possíveis para o entendimento do comportamento cada vez mais frequente dessas tragédias americanas: a facilidade de acesso às armas, os jogos eletrônicos simuladores dos tiros e da morte como mero entretenimento, o vazio das rotinas de alguns adolescentes, uma família ausente, tribos e “bullying”. A atmosfera de indagação sobre a tragédia consumada nas mortes da escola de Columbine ganhou no filme de Van Stan , creio, mais poder de nos afetar e fazer pensar do que na estrutura fílmica do documentário.

“Jogo de cena” (2007), de Eduardo Coutinho, traz à tona este embaralhamento entre realidade e ficção. Em um cenário minimalista, mulheres anônimas e conhecidas, atendendo a um anúncio de jornal, falam de suas vidas sem que consigamos discernir ao certo se as conhecidas como atrizes representam um papel ficcional ou se se apresentam autenticamente, se falam de si ou se falam como personagens. Em contrapartida, as anônimas não necessariamente são não-atrizes, mas o fato de não conhecê-las nos borra a visão e os ouvidos. Não sabemos se são elas próprias ou os seus papéis. Que importa? Tudo que é relatado é absolutamente crível, seja um relato inventado, fabricado pelo diretor/roteirista, seja um relato memorialista. Sem deixar de parecer verdadeiro, nada escapa da edição do ato de recordar e, depois, da câmera e da montagem.

Mas, às vezes, a realidade é intraduzível, seja no testemunho das imagens, seja no relato ficcional. Às vezes, a realidade avassaladora engole a câmera que procurava enquadrá-la, documentá-la para explicá-la. A realidade engoliu o documentarista Eduardo Coutinho, engoliu também o cinegrafista Santiago Andrade.

(Analice Martins)

 

Para o dia nascer feliz

A experiência de esquecer o celular em casa pode ser uma grande reflexão sobre o tempo. Afinal, carregamos, com esses smartphones ligados à internet, o mundo na palma da mão. Carregamos também todas as suas urgências, instabilidades, suscetibilidades e novidades. Talvez já nem saibamos mais como estar fora de tal sincronismo. Distância virou uma palavra a ser abolida dos nossos vocabulários, algo meio abjeto e anacrônico. É claro que esta constatação tem uma paga. Os tributos são altos.

Penso dessa forma, ainda que reconheça que um celular na bolsa pode obrar milagres, retirar-nos de situações quase irremediáveis, salvar vidas, encontrar vidas sob escombros, enfim, evitar ou contornar tragédias e, assim, interromper o que, antes, seria irreversível. Eu mesma, certa vez, fiquei presa em um elevador com minha mãe, minha irmã, minha sobrinha, à época, com uns dois anos e um tio. Quando o desespero começava a nos apertar, lembrei-me do celular na bolsa. Já lá se vão uns treze anos. Do outro lado da linha, outro tio, não menos nervoso, ligava para o corpo de bombeiros. No final, o alívio se misturava às risadas.

Ainda assim, peguei-me extasiada outro dia pela manhã em que esquecera dois aparelhos em casa e, passado o primeiro ímpeto de retornar, relaxei e gozei. Duas maravilhosas horas de desligamento em que o esquecimento do “aparelhinho da alegria” me conduziu à sensação de suspensão do tempo. Sim, eu prendera o gênio na garrafinha e me mantive longe de suas garras cruéis, absorta de suas imposições e embalada pelos versos de Chico Buarque: “Não se afobe, não. Que nada é pra já”.

Canto baixinho esses versos como uma espécie de mantra ou de rosário, crendo que sua repetição me salvará do “já”, o diapasão da vida contemporânea. Isso aqui não é papo de preguiçoso não, muito embora esteja escrevendo essas “mal traçadas linhas” em uma manhã de segunda com uma brisa fresca que vem do pontal de Atafona. É uma cachacinha que tomo às segundas de manhã, seja lá onde estiver, para aguentar o tranco depois até às 22h40min, quando saio de sala de aula, quase sempre feliz.

O fato é que essa portabilidade do mundo que smartphones promovem, considerada seu maior atributo, é também um despotismo para nossas rotinas. Podemos não atender às chamadas, não acessar a internet ou as redes sociais, mas ele fica lá como uma acusação de nossa alienação ou sumiço, como se fosse uma obrigação estar online.

O telegrama, o rádio, a televisão e o próprio telefone em suas versões fixas já representaram esse assédio informacional. Eu me sinto assim às vezes: estuprada pelo mundo. É contraditório, pois não sei viver sem um jornal. Em Campos, em que não encontramos a Folha de São Paulo, o Estadão, o Correio Braziliense ordinariamente nas bancas e, se não acorrermos a elas até às 11h mais ou menos, podemos vir a não ler nada, fico nervosa, ainda que possa ligar qualquer aparelho em casa e deixar que o mundo venha para minha cama ou para minha mesa de café da manhã.

Os celulares, no entanto, parecem-me a tradução mais exata da formulação de David Harvey sobre a pós-modernidade: a tal compressão espaço-tempo. Para mim, este é o verdadeiro mal-estar da civilização contemporânea. E, para fugirmos dele, precisamos nos esconder dos aparelhinhos. Estar sem eles, é, atualmente, uma experiência sensória radical, quase uma amputação de membros. É, no entanto, com tal ausência, que reaprendemos a olhar as pessoas, a ouvi-las, a encontrar soluções criativas, a dar ao corpo e à mente um compasso menos frenético.

Diz o ditado popular que a pressa é inimiga da perfeição. Mas quem se importa? A instantaneidade, a simultaneidade, a sobreposição de tempos, ou seja, esta espada do “já” virou nossa companheira inseparável. Ai de nós, caso não tenhamos prontidão, discernimento rápido, não saibamos fazer leitura dinâmica e digitar na velocidade da luz, arderemos no fogo do inferno.

Nesse contexto, smartphones são companheiros do imperativo da velocidade, esquecê-los quase nos gera culpa, temos que nos desculpar por isso, não podemos estar off line, nem usar a desculpa de que estávamos sem o sinal da operadora. O dia que relatei no início desta crônica, em que esqueci os celulares em casa (ato falho, dirão os psicanalistas de plantão), dei ao meu corpo e ao meu espírito uma viagem libertária, saltei para fora do tempo do “já” e cantei com Chico: “Não se afobe não…”.

(Analice Martins)