Praia do Futuro

O novo filme do diretor Karim Aïnouz volta a explorar a temática da falta e do vazio existenciais. Mais do que de estradas e deslocamentos, seu cinema é feito de impasses entre idas e vindas, partidas e chegadas, entre o desterro que impulsiona e a busca que não se completa. Há sempre personagens em trânsito. Talvez o mesmo que marque sua trajetória pessoal entre outras culturas e países. Filho de uma brasileira e de um argelino, nascido em Fortaleza, sua produção cinematográfica toca fundo na mitologia brasileira do sertão, sem pretensões demasiadamente localistas, como se nos dissesse que o sertão está em nós: o seu vazio, a sua solidão e o seu inexplicável. A dimensão política desta filmografia não está na coletividade, mas sim no indivíduo, no privado de suas dores, que, no fundo, são variações de um abandono fantasmagórico.

Conhecido pela direção dos premiados Madame Satã (2002), o Céu de Suely (2006) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), Aïnouz sempre fez do corpo o espaço desses atravessamentos. Em Praia do Futuro (2014) não é diferente. A cena quase inicial mostra dois corpos que se debatem, se tocam e se perdem. Dividido em três partes, esta primeira, “O abraço do afogado”, bem traduz o risco da morte. Donato, interpretado pelo ator Wagner Moura, é o salva-vidas da praia do Futuro, em Fortaleza, que não consegue evitar a morte do turista alemão. O fracasso do salvamento, o primeiro em sua vida profissional, mexe com o personagem, acostumado a restituir a vida aos outros. A visita ao hospital onde se encontrava Konrad (Clemens Schick), o outro turista amigo do afogado, para devolver-lhe os pertencentes, deflagra a aproximação de ambos. A cena seguinte, depois de um corte bem ao gosto estilístico de Aïnouz, já revela a homossexualidade de Donato. Os dois transam no carro parado à beira da estrada.

As perdas vivenciadas pelos dois, se não justificam de todo a imediata relação, empurram-nos para o encontro que impulsiona a partida de Donato para Berlim. Ao deixar a terra natal, em princípio para uma aventura amorosa, Donato abandona a mãe e os irmãos. Em especial, o mais novo Ayrton (Jesuíta Barbosa) para quem ele era o herói Aquaman. Se todo deslocamento é, por um lado, a busca de algo novo, pode ser também a ruptura de laços arraigados. As cenas de extremo afeto entre Donato e Ayrton na primeira parte do filme são substituídas pelo reencontro em Berlim, uns dez anos depois, quando Ayrton cobra de Donato, entre socos, tapas e abraços, o abandono a que fora relegado.

Nesta terceira parte, “Um fantasma que fala alemão”, o Aquaman não é mais o herói dos mares, mas de um aquário gigante no qual trabalha. Aparentemente ambientado em Berlim, falando alemão e distante de Konrad, razão inicial de sua partida, Donato não é mais o herói da infância de Ayrton. É um fantasma errante, em fuga de si mesmo, sem contato com a família, sem saber da morte da mãe, sem raízes e sem um futuro claro, ou seja, um “Herói partido ao meio”, como se chama a segunda parte do filme. Sem vínculos maiores com a família e mesmo com o amante alemão, Donato continua carregando o mar e praia da terra natal. Em cena da primeira parte, afirma para Konrad que não conseguiria viver longe da praia. No frio e no inóspito das belas paisagens berlinenses, as estradas percorridas na moto de Konrad são o trânsito constante que parece preencher um vazio que não se explica. A pergunta que perpassa o filme não é propriamente de que ou de quem Donato foge. Da família, de si mesmo, de sua homossexualidade? A grande interrogação, mote da obra, é o que Donato busca nessa cidade estrangeira não menos desterrada para si do que a Fortaleza natal. Não à toa, as cenas últimas sugerem algum fiapo de resposta. Donato, Ayrton e Konrad percorrem juntos uma estrada e uma praia gelada e deserta do norte da Alemanha, como se a apontarem que as paisagens são móveis, não se fixam geograficamente. Permanecem, no entanto, no corpo e na memória.

A chegada de Ayrton a Berlim, a cobrança da ausência cruel que lhe fora imposta pelo irmão mais velho, misto de pai e herói, serve como elemento catalisador do roteiro e da sequência fílmica. Ayrton injeta sangue no aparente alheamento de Donato. Talvez, mais do que um acerto de contas com o passado, a presença inesperada de Ayrton, na terra estrangeira, seja algum preenchimento do futuro, aludido no título e na geografia do filme, mas tão esmaecido pela neblina de nossos vazios.

O hipócrita carimbo “avisado” timbrado nos ingressos de algumas salas de cinema no Brasil como advertência a cenas de sexo entre dois homens deveriam ser, antes, o aviso de que o cinema nacional “vai bem, obrigado”. Que Wagner Moura nos dignifica, como ator, de Capitão Nascimento a Donato, que Jesuíta Barbosa carrega no corpo franzino uma potência cênica invejável e que Karim Aïnouz faz cinema da melhor qualidade, livre de clichês e a quilômetros de distância da indústria da Globo Filmes.

(Analice Martins)

A ficção da Copa do Mundo

Eventos como a Copa do Mundo, capazes de reunir milhões de cidadãos de nacionalidades diferentes em torno de um sentimento de pertencimento, têm sempre um quê de ficção. Não porque construam uma mentira, mas tão-somente por fingirem um modo fixo de localização no tempo-espaço: ser de algum lugar e sentir esse lugar de uma forma uníssona.

Assim como as religiões, o futebol, sobretudo quando em época de campeonatos mundiais, recupera raízes às vezes esfaceladas pelo igualmente intenso sentimento de repulsa que uma nação pode nos despertar no dia a dia. Por isso, não é de estranhar que as mesmas vozes que vêm tomando de assalto as ruas, as rodovias, as praças e a esplanada desde 2013, por interesses diversos, reúnam-se, agora, em um só grito de entusiasmo: Vai que é sua, Brasil!

Do quase nada que entendo de futebol, percebo, no entanto, essa dimensão de pátria disseminada que em tempos de Copa se retrai numa espécie de fundamentalismo religioso. Jogadores que talvez passem a maior parte de suas vidas jogando em times estrangeiros sonham a esperança da convocação para, enfim, vestirem a camisa de seu país de origem e se consagrarem como campeões do mundo por sua seleção, bradando o hino e agasalhados pela bandeira nacional.

Mesmo para os que pouco sabem de futebol, não é difícil perceber a dinâmica do capital regendo os passos de nossas promessas futebolísticas. A internacionalização do capital e a irrefreável globalização dita as forças de deslocamento e transferência dos jogadores mundo afora. Os mais bem sucedidos são cidadãos do mundo, vestem grifes internacionais, deslizam em carros importados e jatinhos particulares, mas dizem sentir falta do arroz e do feijão brasileiros. Será?

Os menos afeitos a essa narrativa de saudade do arroz com feijão hão de dizer que até isso é marketing, faz parte do discurso localista do qual nenhum jogador brasileiro do Paris Saint-Germain, Barcelona, Real Madri, Milan, Bayern de Munique e não-sei-mais-o-quê pode abrir mão sob pena de não ser escalado por Felipão, o gaúcho bravo e macho, que simboliza nossa virilidade (ou seria vigor?) futebolísticos. Tem também gringo no nosso futebol, mas eles dizem gostar do nosso arroz com feijão e churrasco.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, as tradições são inventadas. Nesse sentido, elas também são mais ficção do que empiria. Ao contrário do que pensa o senso comum, a ficção não é o oposto da verdade. A ficção é uma outra forma de construção da verdade de nossos sentimentos e, mais legítima, porque marcada por nossas subjetividades. No caso das tradições, há ainda o fato de serem ficções compartilhadas por uma coletividade. Sem tal sentimento de pertença comum, não poderíamos falar em tradições e raízes nacionais.

A nação brasileira, politicamente falando, talvez tenha nascido com o grito de Dom Pedro na primeira metade do século XIX, mas quem de fato criou o Brasil com suas diversidades, suas múltiplas raízes, seu hibridismo e sua urbanidade incipiente foi o Romantismo de Gonçalves Dias, de Castro Alves e de José de Alencar. Devemos à literatura romântica o início da exposição de nossa constituição mestiça, ainda que vista por um sentimento europeizado.

Pois a Copa do Mundo, uma outra vez em solo brasileiro, é como a literatura: uma espécie de ficção na qual projetamos nossas raízes, nosso sentimento de pertencimento por vezes esgarçadinho e tão pobrinho para parafrasear o poeta Vinicius de Moraes. Embora cantemos a pátria como mãe gentil, já sabemos que essa rima desandou e que a acalentamos como patriazinha tão pobrinha.

Mas, nessas ocasiões, juntamos nossos esforços exauridos e gritamos com força atávica: Vai que é sua, Brasil! Da pátria sem sapatos como a sabemos, queremos vê-la de gloriosas chuteiras auriverdes.

(Analice Martins)

Rabugices

Relutei em escrever esse texto-desabafo. Achei que primeiro precisaria tentar ler a malfadada adaptação de “O Alienista”, de Machado de Assis, feita por Patrícia Engel Secco. O conto foi originalmente publicado em Papeis avulsos (1882) e posteriormente em edição separada como um livro independente. Como o assunto é polêmico e do meu mais absoluto interesse, tive receio de escrever de forma inflamada e sobretudo precipitada, já que não conhecia a escritora nem vira ainda a adaptação, cujo lançamento está previsto para este mês de junho. Imagino que, até a publicação destas minhas inquietações, o livro ainda não tenha chegado às mãos dos 600 mil leitores aos quais está destinado, sob os auspícios de projeto orçado em torno de 1,45 milhões de reais liberados pelo Ministério da Cultura por intermédio da lei Rouanet.

Então vamos lá: A grita tem sido grande e de peso. Já se pronunciaram pelos jornais, que eu saiba, Deonísio da Silva, João Cezar de Castro Rocha, José Miguel Wisnik, João Ubaldo Ribeiro. Imagino que pelas redes sociais também o bafafá esteja rolando. Para quem de nada ainda ouviu falar ou nada leu, basta um clique. Todos os artigos ou entrevistas a que estou me referindo estão na net. Mas antes vale a pena entender o portentoso (em números, que fique claro!) projeto da escritora-empresária como a apresentou, em seu artigo, José Maria e Silva, sociólogo e jornalista.

Patrícia Secco é autora de mais de 200 títulos de literatura infanto-juvenil (esse saco de gatos tão perigoso) com temas transversais ao gosto das escolas. Uma produção “literária” em escala industrial, convenhamos, caro leitor. Segundo fontes biográficas disponíveis pela internet, a jovem senhora trabalhou por mais de 10 anos no mercado financeiro. Depois do nascimento dos filhos, resolveu dedicar-se à função, ou diríamos carreira, de escritora. Cito: “Convencida de que só o investimento na Educação das crianças pode resultar em um mundo melhor, resolveu contribuir realizando o que gostava e sabia muito bem: escrever livros. Já fez 145 títulos, sempre abordando temas como cidadania, inclusão social e meio ambiente. A primeira tiragem de cada obra, cerca de 30 mil exemplares, é distribuída gratuitamente graças aos patrocínios que Patrícia busca. Depois, elas são comercializadas normalmente pela editora”. Só para dar uma ideia, há fontes que falam em 145, 200 e até 320 títulos. Céus!

Quero registrar que não li um livro sequer da autora, o que pode fazer de mim uma pobre leitora, além de articulista leviana. Mas, como não sou jornalista, não preciso necessariamente aferir fontes e entrevistar possíveis leitores, além de professores e pedagogos que trabalhem com seus livros. Quero mesmo é comentar o projeto.

O arranca-rabo está no que a autora julga ser sua maior contribuição à educação: levar o “bruxo do Cosme Velho” aos desvalidos da oportunidade de conhecê-lo porque não são capazes de entendê-lo nem de apreciar-lhe a grandeza estética. A solução proposta pela bem intencionada autora foi simplificar a linguagem machadiana, substituindo impunemente seu vocabulário, como se a linguagem, razão de ser da obra do bruxo, se resumisse apenas ao léxico. Socorro! Então multiplicam-se os assassinatos que investiguei pela net. Cito apenas um, pela exiguidade destas linhas, colhido novamente do artigo de José Maria e Silva: “Onde Machado de Assis escreve: ‘Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte’, Patrícia Secco traduz: ‘Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte’. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: ‘volúpia’ tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra ‘curiosidade’. Além do mais, palavras como ‘volúpia’ e ‘alumiar’ não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvida em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando”.

É óbvio que ela tenta defender seus propósitos civilizatórios, alegando que a causa é nobilíssima: “Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso. A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil.” Ah, ignorantona, como diria Brás Cubas, simplórios e equivocados são os pressupostos de seu trabalho! Deveriam ter sido eles, aliás, as razões deste meu desabafo, mas podem ficar para um próximo.

É altamente prejudicial à saúde literária, podendo conduzir à morte de seu autor, a adaptação que substitua palavras impunemente, sem uma intenção estética. Cada palavra trocada, expressão suprimida ou sintaxe reorganizada mexe no centro de gravidade do literário. Altera sua semântica, seu equilíbrio instável. Cada palavra carrega e encerra em si uma dinâmica semântica própria, o que, de certa forma, torna toda versão para uma outra língua tarefa deliciosamente traidora. Ora, não seria muito mais civilizatório e universal, como princípio educacional formativo, promover o acesso do aluno-leitor ao “reino das palavras”, mostrar-lhe as chaves de entrada, encantá-lo com o uso do dicionário, ler com ele, torná-lo autônomo para construir suas interpretações? Não seria muito mais digno que o dinheiro público fosse de fato empregado para uma escola pública de qualidade e para todos onde Machado não fosse um estranho, um alienígena respeitável, mas cuja leitura dependesse de um código tradutor? Não seria mais profícuo que o governo brasileiro investisse na formação de professores-leitores, esses, sim, intérpretes autorizados à condução da ascese promovida pelo universo da leitura?

Além disso, outra questão que urgiria discutir é o que se esconde conceitualmente sob o trabalho da adaptação. O verbo de origem latina (adaptare) significa encaixar, articular. O Aurélio apresenta, entre outras, a acepção de “fazer acomodar à visão” e a de “modificar o texto de (obra literária), ou tornando-o mais acessível ao público a que se destina, ou transformando-o em peça teatral, script cinematográfico etc”. São duas definições que dão pano para as mangas. A primeira, se pensada no plano literário, parece-me uma iniciativa de propósitos ideológicos; a segunda é igualmente problemática, pois abriga a difícil tarefa de editar, condensar sem perder a tensão característica do texto literário, portanto sem falseamento, como o fez Carlos Heitor Cony adaptando clássicos da literatura universal para o público infanto-juvenil. Abriga também processos de releituras, exercícios igualmente literários, como o de Fernando Sabino que reescreveu Dom Casmurro mudando o foco narrativo para a 3ª pessoa. Escritores como Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles, Autran Dourado, Osman Lins reescreveram o conto “Missa do galo”, por exemplo. São trabalhos de criação, pois têm a intenção de explorar outros ângulos da obra, derivar perspectivas. O que observamos também nas releituras em outras linguagens, amplamente exploradas na relação da literatura com os quadrinhos, com o cinema, com as artes plásticas etc. Tudo isso é muito diferente da falsa iniciativa de adesão à leitura machadiana pretendida por Patrícia Secco.

Então, fino leitor, se gostaste das reflexões, pago-me da tarefa. Caso contrário, pago-te com um piparote.

(Analice Martins)