Tecnologia e crítica literária

A editora francesa “Short Édition” anunciou, no site “Actualité”, que está desenvolvendo um algoritmo capaz de avaliar, em alguns segundos, a qualidade literária de obras que lhe sejam submetidas. Essa invenção tem provocado suores frios em críticos literários. Segundo Quentin Pleplé, cofundador da editora, sua empresa está trabalhando no momento com agências especializadas, como a LIRIS (Laboratório de Informática em Imagem e Sistemas de Informação), para desenvolver uma fórmula matemática que combine “Data Mining” (mineração de dados) e “Big Data” (dados volumosos).

O processo por trás desses complexos cálculos se explica com facilidade. A inteligência artificial da máquina se desenvolverá inicialmente a partir de um painel de 25.000 trabalhos publicados pela editora “Short”, obras que já foram avaliadas previamente por um mínimo de cinco leitores humanos. Com base nos resultados dos primeiros testes, a editora “vai começar a informar e alimentar a máquina: a inteligência artificial vai processar os dados e fazer ligações entre a qualidade e as exigências”.

O computador deverá, posteriormente, ser capaz de avaliar por si mesmo um livro, a partir de vários critérios. O algoritmo poderá identificar, separadamente, a ortografia a e pontuação, a repetição de padrões semânticos (repetições), o campo lexical (vocabulário, registro de linguagem) e a extensão de frases e parágrafos. De forma mais sofisticada, ele poderá avaliar o estilo do autor, qualificado pelo número de advérbios, adjetivos, pronomes, verbos, os substantivos empregados e a legibilidade do texto, que pode ser desde uma obra infantil até um tratado de economia.

Essa descoberta não poderia parar por aí. O fundador da “Short Édition” imagina já poder vender sua pequena maravilha tecnológica a outros atores do mundo dos livros, das mídias às bibliotecas: “Ela poderá, por exemplo, servir para as bibliotecas na classificação de livros digitalizados, mas também para a imprensa. Para as editoras, ela poderá fornecer uma primeira visão sobre as obras recebidas”, assegura Quentin Pleplé.

Uma tal novidade levanta, de imediato, muitas questões de ordem moral. Substituir o homem pela máquina não acarretará inevitavelmente uma padronização da paisagem literária? E sobre a especificidade de um autor? Pensemos em Louis-Ferdinand Céline, por exemplo, cujas qualidades não são de modo algum redutíveis à soma de todos esses critérios estilísticos.

A editora pretende apaziguar essas dúvidas legítimas. Aos que já veem nesta invenção o fim do mundo adverte: “Não se trata de substituir o nosso conselho editorial por uma máquina, mas permitir que ela sirva como um assistente de filtro, na detecção menos das qualidades literárias do que da ausência delas: “Na verdade, a máquina servirá simplesmente para fazer uma pré-seleção a fim de poupar o tempo precioso dos editores que poderão, então, realizar seu trabalho, insubstituível, de forma mais eficiente. Os matemáticos de mãos dadas com a literatura, a tecnologia a serviço do ser humano, não o contrário”.

ESCLARECIMENTOS:

Esta notícia, traduzida por mim, foi publicada no jornal francês Le Figaro e pode ser consultada no seguinte endereço eletrônico: http://www.lefigaro.fr/livres/2014/07/25/03005-20140725ARTFIG00142-un-algorithme-pour-juger-de-la-qualite-d-un-livre.php. Em outro artigo, comentarei algo igualmente capaz de provocar suores frios: a informação de que a “Robot Associate” já escreveu seus primeiros artigos.

Antes, quero fazer algumas considerações até certo ponto banais, mas sem as quais todo esse alarde tecnológico pode gerar a crença equivocada e disseminada de que uma máquina pode pensar por si mesma e ser capaz de fazer juízos reflexivos e estéticos que, na realidade, dependem não apenas de gostos e de preferências, mas de leitura acumulada, comparada, discriminada, ou seja, da intervenção de leitores e de críticos especializados.

Entendo a mineração de dados tão-somente como uma ferramenta surda e muda, que sem a condução da inteligência humana nenhum milagre opera. Os corretores ortográficos são sempre bem-vindos, desde que atualizados. No entanto sempre nos cercearão a liberdade de um uso mais plástico ou neológico da língua. Aqueles que proclamam correções sintáticas são engessados, pois não entendem nossos usos criativos da língua, não entendem nossas inversões, nossas elipses, a performatividade que podemos imputar ao sistema linguístico e que, sem sombra de dúvidas, é o elemento, aliado ao contexto que a enuncia, caracterizador da linguagem literária.

Identificar repetições como critério para ausência de qualidade literária é um assassinato conceitual. A repetição de palavras ou padrões semânticos pode ser o nó do texto literário, a cereja do bolo. Já as repetições em textos de natureza não-literária de fato podem revelar um empobrecimento da linguagem, um defeito da argumentação etc.

Já leram André Sant’Anna? Acho que, se avaliado previamente por tal artifício tecnológico, ficaria nos porões digitais das editoras. E Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luiz Ruffato? Seriam recusados de saída. Graciliano Ramos e seu estilo econômico e cortante talvez fosse barrado no quesito adjetivação. Mas Paulo Coelho certamente sobreviveria com seu estilo amorfo, insípido e insosso.

(Analice Martins)

João do Leblon

Não, João Ubaldo Ribeiro era de Itaparica na Bahia. Mas emprestava seu nome ao café da livraria Argumento na rua Dias Ferreira no Leblon. Agora, talvez, também vire nome de rua ou receba uma homenagem do Tio Sam, o boteco de sua preferência, que guardará vazia sua cadeira cativa, de onde observava e sentia a vida que lhe entrava com brisas marinhas: a maresia do Leblon, a maresia da ilha de Itaparica.

As cidades e os lugares são os do nosso nascimento, mas sobretudo os de nossa eleição. Às vezes, disputam preferência e nos dão uma espécie de duplo pertencimento, fazendo-nos múltiplos em vez de cindidos. Quando há um destino escolhido, não há dores nas lembranças, como parecia ser o caso de Ubaldo. Itaparica não era apenas a memória de uma cidade cuja fotografia na parede doía. Itaparica era também a cidade de sua memória criativa, seu espaço de retorno e de invenção, território fértil de sua criação. Itaparica não era uma cidade fantasma que assombrava o escritor com seus espectros. Não, Itaparica continuava solar em suas visitas, como me parece ser Santo Amaro da Purificação para Caetano Veloso e Maria Bethânia, conterrâneos de baianidade.

O escritor que percorre ruas a pé e se apropria do bairro e da cidade com sua presença funda um discurso, como diria Michel de Certeau, na sua “fala dos passos perdidos”. Andar, percorrer, atravessar, sentar-se e frequentar são formas de apropriação dos espaços. Talvez, esse tenha sido o caso de Ubaldo com o Leblon e suas gentes.

Quando eu o vi dois anos atrás sentado lá no Tio Sam, em sua janela para rua, fazendo ecoar, entre amigos, sua inconfundível voz de trovão, sua gargalhada, e desfrutando da simpatia de todos – conhecidos ou não –, não me pareceu uma figura folclórica. Ao contrário, pareceu-me uma figura bem real, um homem à frente de seus livros e não escondido atrás deles, um homem além de sua ficção, um homem não apenas de palavras, como muitos escritores nos parecem, mas um homem de verdade, agarrado à vida, um homem que não era etéreo nem eterno, um homem cuja imagem não fora apenas inventada pelo que nossas idealizações de leitores aficionados gostam de mirabolar. Digo isso sem juízos de valores, pois não me importo com o contrário, quando a ficção é boa, ou seja, com escritores impalpáveis, que vivem em nossas memórias na dimensão exclusiva da potência de suas palavras literárias.

João gostava da rua. Não sei se isso chega a ser um mérito, mas cria genealogias e filiações entre escritores. Os que gostam da rua, que extraem dela o máximo que podem, tornam suas partidas mais sentidas. Talvez porque se ausentem em dois sentidos: da vida e da obra. Por outro lado, sabemos que é a obra que os torna imortais e não o fardão. A obra prolonga a vida, posterga a morte. A obra, num certo sentido, atenua a morte para os leitores.

Os cronistas, ainda quando deem a esse gênero matizes mais literários, são homens ligados ao cotidiano de suas cidades, de seus países e de seus territórios. Este é um outro traço da escrita de Ubaldo que o tornou bem “terráqueo”  e não uma figura evanescente por trás do véu da ficção. A crônica põe em movimento a dinâmica da vida em seu sentido político-social e também existencial. Por isso, dizemos que é um texto ao rés-do-chão, que parte quase sempre do factual para uma reflexão mais abrangente, ao sabor de um senso crítico mais ácido ou de um lirismo mais pungente.

Embora tenha lido Viva o povo brasileiro, aos dezessete anos, por solicitação de uma professora de Teoria Literária e, portanto, me deparado com as várias encarnações da “alminha brasileira” ainda adolescente, só fui perceber a importância do escritor no cenário da literatura brasileira um pouco mais tarde. Ainda naquela época, uma amiga mestranda, cuja pesquisa girava em torno das relações entre literatura e história em Viva o povo, partiu para Itaparica a fim de entrevistá-lo e voltou de lá enredada nas histórias de Ubaldo e seus personagens, cujas inspirações ele apontava na praça e dizia: “Tá vendo lá fulano? Ele é o personagem tal”.

Nesses dois anos em que escrevo para a Folha da Manhã, já mencionei algumas vezes suas crônicas dominicais no jornal O Globo. Eu adorava suas desconfianças tecnológicas, suas rabugices com as falsas promessas desses aparatos e sua consequente fetichização. Concordava inteiramente com suas colocações e ainda as reproduzia em sala de aula, como, por exemplo, a linda crônica (“No tempo do livro”) em que João falava da insubstituível liberdade que a leitura, a partir do suporte impresso, sem necessidade de mídias de imagem e som, pode promover para a imaginação do leitor, conferindo-lhe a oportunidade de criar suas próprias imagens sem se tornarem reféns das que já lhe seriam oferecidas em links, hiperlinks, hipermídias, e-books etc. Era uma doce advertência à glamourização às vezes burrinha que a tecnologia pode prometer. Lembro também da crítica feroz à adaptação do conto machadiano “O Alienista”, feita por Patrícia Engel Secco.

Com a sua partida na sexta última (18/07), as ruas do Leblon certamente ficarão saudosas de sua alma brasileira. Assim como Drummond, em Copacabana, e Otto Lara Resende, no Jardim Botânico, acho que ele merece uma estátua no Leblon.

(Analice Martins)

Liberdades artísticas

Em sociedades em que Estado e Religião são esferas independentes, ou seja, em que não há uma fusão fundamentalista, os cerceamentos às manifestações artísticas e aos credos deveriam inexistir ou, ao menos, serem entendidos sem a pecha da blasfêmia ou do vilipêndio.  Portanto, não é de estranhar que um escritor como o paulista Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica (1975), romance cultuado pela crítica literária, goze de notoriedade, reverência e prestígio, ao contrário do anglo-indiano Salman Rushdie, que foi perseguido, ameaçado de morte e impedido de voltar à terra natal depois da publicação de Versos satânicos (1989). Em Portugal, traduzido como Versículos satânicos

Em ambas as obras há releituras das tradições religiosas, uma forma outra de interpretá-las, de pensá-las associadas a outros signos da cultura e da condição humana. Para as artes, símbolos e signos religiosos são matéria de representação tanto quanto a vida mesma. Podem ser reapropriados e deslocados em seus significados primeiros sem que isso constitua ofensa, mas, pelo contrário, seja sinal de uma reflexão crítica autônoma, despida de (pre)conceitos e juízos moralizantes.

No romance de Raduan Nassar, André é o filho pródigo que abandona a casa paterna, sem nunca deixar de amá-la, para poder viver a liberdade que não encontra nas palavras imutáveis da tradição judaico-crístã, representadas pelo pai. Mais do que isso, André deixa a casa paterna porque não pode viver a paixão incestuosa e correspondida pela irmã Ana. Foge da casa e de si. Retorna, no entanto, pelas mãos do irmão mais velho Pedro, a quem revela o seu segredo e a quem pede silêncio e cumplicidade. Mal disfarçando suas intenções, André retorna para viver a paixão que acha lícita, que manteria os laços indissolúveis da família, como desejava o pai, que daria continuidade aos brinquedos infantis, que cumpriria a sentença paterna de que não haveria felicidade possível para além dos limites da família. André interpreta ao seu modo a ciência paterna e ousa “mudar o lugar das palavras” inscritas na tradição. Essa é uma das leituras possíveis de Lavoura Arcaica. Apenas uma e feita em tom de paráfrase e que nem de longe consegue dar conta da potência narrativa da obra. Serve, no entanto, ao propósito de minha análise: mostrar que, em culturas em que o Estado não é a chancela de tudo, há liberdade para a criação artística sem censuras prévias. Deveria caber à sociedade, aos indivíduos, o juízo ético e estético das obras.

Destino diferente teve Rushdie que ousou reler o Alcorão e se aproximar do intangível, o que não pode ser tocado, sob pena de se pagar com a vida a liberdade do pensamento. Radicado atualmente nos Estados Unidos, Rushdie foi condenado a uma espécie de desterro ao se colocar como um intérprete da cultura mulçumana. Culturas fundamentalistas não admitem interpretações. Bastam a si mesmas. Possuem uma espécie de cegueira e de autoritarismo. São detentoras de uma verdade que não pode ser relativizada jamais. Manipulam signos e símbolos segundo sua conveniência. Ai daqueles que ousarem pensá-los por si mesmos, arderão no fogo do inferno.

Por isso, o mais recente episódio, no Brasil, envolvendo um veto à liberdade de criação artística, não deveria ficar sem discussão por parte da sociedade civil. Um dos episódios da produção cinematográfica “Rio, eu te amo”, com previsão de estreia em setembro, foi censurado pela Igreja Católica, representada pela Arquidiocese do Rio, detentora dos direitos de imagem da estátua do Cristo Redentor, patrimônio também da cidade e uma das sete maravilhas do mundo.

No curta dirigido por José Padilha, o personagem interpretado por Wagner Moura, sobrevoa de asa delta a estátua do Cristo Redentor e, em tom de desabafo e indignação, interpela-o sobre o abandono afetivo que sente e sobre a situação da cidade: “Lá embaixo, você não vai, né? Lá embaixo, não tem amor, né?” Como bem disse Arnaldo Bloch, não se trata de um discurso sobre o Cristo, mas sim sobre a cidade. Esse, um direito de todos, não?

A estátua do Cristo Redentor é uma representação em pedra da ideia de Cristo. Não é o Cristo. Fico pensando, a partir dos exemplos que dei na literatura, que a imagem criada por palavras é igualmente imagem, pois, como já disse Foucault e antes Saussure, as palavras não são as coisas. Afinal de que a Arquidiocese é proprietária? Não é do Cristo.

Não faz sentido nenhum, se pensarmos que não há censura às charges, cartoons, grafites – que são imagens – e que se valem da estátua do Cristo, como imagem, para discursos sobre a cidade. É só abrir os jornais cariocas com regularidade. Ora, a estátua pode ser iluminada por cores da seleção vencedora da Copa, mas não pode ser por um discurso artístico? Definitivamente não entendo.

Em 1989, a Cúria Metropolitana proibiu que uma reprodução da estátua fizesse parte do desfile da escola de samba Beija-Flor, gerando polêmica semelhante a essa de agora, em que tanto Joãozinho Trinta quanto Padilha estavam discutindo a cidade e não o Cristo.  Felizmente tais grilhões não se aproximam da literatura brasileira. Aproveitemos essa liberdade não tão vigiada e leiamos para sermos intérpretes autônomos.

Para uma cultura eminentemente audiovisual, uma imagem vale por mil palavras, mas ninguém há de negar que as palavras podem ser até bem mais explosivas e transgressivas. André, depois de consumar sua paixão pela irmã, diz: “Deitado na palha, nu como vim ao mundo, eu conheci a paz”.

(Analice Martins)

Literatura e Futebol

Chama-se epopeia a narrativa que descreve e exalta fatos históricos e personagens heroicos. Trata-se de uma forma adequada à expressão de sentimentos coletivos, de cenários grandiosos, repletos de confrontos e combates. Pertencem, portanto, ao gênero épico os textos preocupados com a exaltação de conquistas em que comumente o narrador – outrora, o poeta -assume um tom bastante eloquente.

São conhecidas, na Antiguidade Clássica, a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Na última, o poeta narra a volta de Ulisses a Ítaca, sua casa, muitos anos depois de finda a guerra de Troia. Retorna vencedor, embora disfarçado de mendigo maltrapilho. Na Renascença, Os Lusíadas, de Camões, com seus mais de oito mil versos, dão conta não só da viagem de Vasco da Gama às Índias, mas da supremacia político-econômica do povo português, da sua ciência das técnicas de navegação, desbravando mares nunca dantes navegados e se apossando de terras remotas, lutando entre gentios com bravura e destemor.

A Modernidade é pouco afeita a narrativas desse porte. A matéria épica se tornou rarefeita; “a imitação, por meio do metro”, como propôs Aristóteles, “de seres de elevado valor moral ou psíquico” parece encontrar poucas correspondências nos tempos modernos que dão lugar a heróis muito mais tangíveis e realistas, porque conflituosos, dúbios, frágeis e sobretudo falíveis. Personagens que não carregam mais responsabilidades coletivas, porém, quando ainda o fazem, carregam a fragilidade da condição humana e não mais o peso do mito infalível.

Na Literatura, o século XVIII dá forma e estrutura ao gênero romanesco cujos personagens reinventam de um modo mais plausível a complexidade do ser humano, sua natureza instável, não retilínea, nem sempre movida por razões grandiosas e, sobretudo, passível de falir, mesmo que à revelia de sua bravura. De lá para cá, para nossos tempos atuais, a figura do herói como portador das virtudes de um povo, de uma nação, de uma coletividade, praticamente desapareceu. Em especial, apagou-se a necessidade de justificar a história pelo artifício literário de uma invenção grandiosa.

A literatura da segunda metade do século XIX e a do século XX preocuparam-se com o contingente, o episódico, as diversidades, o diferente, numa espécie de antirrelato da nação, de uma (contra)viagem, tema tão caro à literatura, talvez mesmo, sua condição fundadora.

Apesar dessas constatações, o imaginário coletivo (se é que tal instância existe) insiste em reconvocar, sempre que possível ou em momentos como esse da Copa do Mundo, a narrativa épica que diga não apenas da bravura de seu coletivo, mas que conte a saga das dificuldades vencidas, dos percalços ultrapassados, das peripécias contornadas, das estratégias empregadas para a vitória que nos sagre campeões mais uma vez. Em tempos ultramidiatizados e de “narrativas do self”, tudo isso se potencializa em feições, gestos, gritos, atitudes repetidas à exaustão.

O futebol, no Brasil, talvez não seja apenas uma paixão nacional, pois essas também são inventadas, mas uma necessidade épica que possa sustentar alguma grandeza que nos distinga para além da incontestável extensão territorial e dos igualmente incontestáveis índices de analfabetismo funcional, escolaridade, precariedade na saúde e violência urbana. Depositam-se nos jogadores da seleção os brados retumbantes de um povo que se quer heroico em algum sentido.

A emoção dos jogadores, às vezes convertida em lágrimas, é hipertrofiada pela obscenidade dos closes televisivos replicados de imediato nos vertiginosos tentáculos das redes sociais. O choro, como bem lembrou o editor de redação da Folha da Manhã, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa, pode ser percebido como um momento de lirismo porque traduz a emotividade daqueles que criam a realidade, contaminando-a com sua subjetividade. As lágrimas foram perseguidas, porque pareceram exageradas e poderiam sugerir o descontrole que o herói épico não pode ter. Ora, o que foram e serão sempre exageradas são as lentes persecutórias da mídia, capazes de quase fazer escorrer a lágrima que só embaça os olhos dos jogadores.

Esse texto era para dizer da tristeza em ver, fora da Copa, o jogador Neymar: o camisa 10 que foi alçado, mesmo antes do início dos jogos, à condição de herói da saga em busca do hexacampeonanto. Franzino, não é na força física que encarna as virtudes do herói épico, mas naquilo em que o povo brasileiro quer se ver espalhado: a alegria, a irreverência, a genialidade e a humanidade que, por avesso que seja, tornou-o falível. Fosse Neymar um personagem épico, levantar-se-ia do chão e, mesmo com dores inimagináveis, “mais do que prometia a força humana”, estaria na linha de frente do combate da semifinal desta terça-feira.

Não vivemos tempos épicos, nossos heróis choram, e suas forças humanas não contam com a intervenção divina. Mas de qualquer forma: Avante!

(Analice Martins)

Intérprete de culturas

A escritora indo-britânica Jhumpa Lahiri estará na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Filha de migrantes indianos, nascida em Londres, passou a maior parte de sua vida em Rhode Island, no norte dos Estados Unidos. Atualmente, vive em Roma. Já foi premiada com o Pulitzer de ficção. Além do recém-lançado Aguapés (2014), é autora do livro de contos Intérprete de males (2001) e do romance O xará (2004), todos traduzidos no Brasil. Sua ficção é atravessada pelas identidades cindidas, em constante negociação entre dois mundos, duas culturas. Elejo um de seus contos para breve comentário que sirva como convite à leitura de suas narrativas em trânsito.

O conto “Esta casa abençoada”, do livro Intérprete de males, revela pelo viés ficcional dois posicionamentos distintos diante da tradução entre culturas. Os contos do livro são ambientados ora na Índia ora nos Estados Unidos. Um jovem casal de ascendência indiana muda-se para uma casa nova em Connecticut. Ele, engenheiro formado em Boston, com carreira promissora. Ela, mestranda em Standford, pesquisadora de um poeta irlandês.  Filhos de famílias que já se conheciam: a dela, residente na Califórnia; a dele ainda em Calcutá, onde foram casar-se, por insistência dos pais.

A arrumação da casa nova traz à tona os diferentes posicionamentos de Sanjev e Twinkle frente à descoberta de um “zoológico bíblico” de imagens cristãs, nas palavras do marido. Enquanto a mulher Twinkle mantém uma curiosidade infantil, diante da descoberta, em todos os aposentos da casa, destas imagens cristãs, guardando-as num console, como num pequeno altar; Sanjev desespera-se diante da possível reação dos vizinhos a essa aceitação tolerante.

Se, para Sanjev, tais objetos estavam despidos da aura do sagrado, para Twinkle, jogá-los fora representaria uma espécie de sacrilégio, pela importância que deveriam constituir para os antigos moradores: “Sanjev examinou os objetos sobre o console. Intrigava-o o fato de que cada um deles à sua maneira era inteiramente ridículo. Sem dúvida, faltava-lhes a aura do sagrado. Intrigava-o também constatar que Twinkle, uma pessoa de bom gosto, estava encantada com eles. Aqueles objetos tinham algum significado para ela, mas não para ele. Pelo contrário, irritavam-no. ‘A gente devia ligar para o agente imobiliário. Para dizer que largaram todas essas porcarias aqui. Pedir para ele levar tudo embora’. ‘Ah, Sanj’, Twinkle gemeu. ‘Por favor. Eu ia ficar arrasada se a gente jogasse isso fora. Essas coisas eram claramente importantes para as pessoas que moravam aqui. Seria, sei lá, uma espécie de sacrilégio’”.

Na festa de inauguração da casa, alguns convidados se espantaram com a imagem da Virgem (Nossa Senhora) no jardim, ao que Sanjev replicou dizendo que, apesar de na Índia haver cristãos, eles não o eram. Twinkle, então, relatou aos convidados, alguns colegas de trabalho de Sanjev e casais indianos residentes em Connecticut, a aventura diária de descoberta desses objetos, dizendo ser o sótão a única parte da casa ainda não vistoriada. Foi para lá que todos se dirigiram para desespero de Sanjev. Foi lá também que encontraram um enorme busto de Cristo que Twinkle obrigou Sanjev a retirar de lá, como numa espécie de caça ao tesouro.

Interessante notar que a postura de Twinkle, para quem até a culinária indiana era trabalhosa (“detestava picar alho e descascar gengibre, e também não sabia usar o liquidificador”), é mais porosa, em todos os sentidos, com relação à manutenção das tradições indianas, ao passo que Sanjev resiste a qualquer prática de reposicionamento e de reinscrição diante das negociações impostas pelo pertencimento da escolha, já que constituíam uma segunda geração, filhos de imigrantes. Era ele, por exemplo, que, nos fins de semana, temperava óleo de mostarda com pedaços de canela e cravo para fazer um molho de curry decente. Até resistência à garrafa de vinagre encontrada na casa, ele faz, para depois reconhecer o sabor do peixe preparado por Twinkle com tal ingrediente.

No conto, as diferenças culturais são constantemente interpeladas, a condição de pertencer a duas culturas simultaneamente avulta como contingência inequívoca, porém tensa, já que em constante negociação. Portanto, o que poderia ser entendido como uma blasfêmia, no sentido simplista da deturpação do sagrado, é visto, pelas práticas de tradução cultural, como positividade de uma poética da reinscrição que vê no duplo pertencimento mais uma “benção” do que uma prática de recusas.

Por isso, talvez, possamos entender o final do conto de Jhumpa Lahiri, num sentido mais amplo, como circunstância inevitável das práticas tradutórias: “De fato Sanjev detestava o busto. Detestava seu tamanho desmesurado, sua superfície perfeitamente polida, seu valor inegável. Detestava a ideia de que aquele objeto estava em sua casa e que lhe pertencia”.

Talvez também se possa constatar, por meio da ficção de Jhumpa Lahiri, as complexas estratégias de inclusão requeridas pelas novas identidades culturais.

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*A íntegra deste meu artigo se encontra publicada na Revista Agenda Social do Programa de Políticas Sociais da UENF, disponível em versão eletrônica. Intitula-se “Benção ou Blasfêmia: aspectos da tradução”

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(Analice Martins)