O documentário e a vida

Não gosto de cinebiografias nem de musicais biográficos. Às vezes prefiro não saber que o filme foi baseado em fatos reais. Fico então muito deslocada diante da voga atual de boa parte das produções ditas artísticas no Brasil. Acho que sou uma chata mesmo. Vejo em todo esse movimento de produção muito oportunismo mercadológico disfarçado como circunstância de celebração.

Tudo isso é apenas um lado da “espetacularização do eu”, promovida pelas mídias em geral. Não vejo gratuidade nesse fenômeno. Ao contrário, lamento que não nos preocupemos com as causas sociológicas, psicológicas, filosóficas dessa “febre do eu”, ou como diria a pesquisadora Paula Sibilia, desta “exintimidade”.

Para que fique claro: Não estou julgando o mérito e a qualidade de atores, dançarinos, fotografia, figurinos e sonoplastia. Podem ser impecáveis. São exaltados pela crítica em geral, mas escondem roteiros, por vezes, frágeis e duvidosos. Discordem ou não, creio que o roteiro seja a alma de um filme. É ele que conduz a narrativa que trará, para o plano visual e cênico, as personagens que se erguerão diante de nossos olhos. Em cinebiografias e musicais biográficos, não nos iludamos, o que está diante de nós é um personagem que, por meio do corpo do ator e do entorno cênico da produção, evoca uma pessoa que é ou foi “de carne e osso”. Quando sentimos o personagem e a narrativa fílmica como a pessoa e sua história concretas, é porque o poder da ficção funcionou, criando a ilusão de realidade tão desejada pelas artes em geral.

A ficção existe para isso: para nos iludir, para recriar, para reinventar ou mesmo para falsear. Ficção não é documento de cartório. Não precisa prometer dizer a verdade, apenas a verdade, nada mais do que a verdade sob a ameaça de amargar alguma punição. Então, em que ponto se encontra a resistência pessoal de que falei no início?

Talvez apenas em minhas rabugices. Prefiro os documentários mesmo sabendo que, no fundo, são também um narrativa construída meticulosamente, urdida com os mesmos procedimentos de uma trama ficcional. O documentário pretende ser o decalque da vida como ela é ou foi, mas a vida não ganha a tela de forma tão autônoma ou talvez autômata assim. Há olhares e mãos que a transpõem. Um documentário também tem roteiro, também constrói uma narrativa. Mas é diferente. Nele, assombrosamente aquelas pessoas que já se foram pulam diante de nossos olhos e sentidos com a dimensão de seus corpos, gestos, respiração e voz. Saem do além e entram em nosso aqui-e-agora fantasmagoricamente imantadas por aquela “aura” da presentificação. O documentário é como a divertida montagem de um quebra-cabeça. Os fragmentos dispersos vão reconstruindo a vida, com suas idiossincrasias e arranhões.

Insisto: um documentário, por mais que queira ser a vida como ela é ou foi, é ficção, admite versões, sugere interpretações, tem direção, tem decisões e opções. É como abrir um baú e escolher as peças “reais” com que vamos recontar uma história. Há escolhas, opções, descartes, peças inusitadas, mas guarda um cheiro do mofo da vida.

Gostei muito do documentário “Cássia Eller”, de Paulo Henrique Fontenelle, seja pelo maravilhoso arquivo de imagens que nos transportam para aquela realidade que já se esfumaçou, seja pela história da trajetória da cantora, observada por aqueles que a acompanharam de perto: amigos, parceiros, empresários, diretores, amados e amantes.

Em especial, gostei muito dos aspectos de sua vida destacados pela amiga Zélia Duncan, não à toa, uma mulher amante das letras e das narrativas. Zélia pontuou a garganta vulcânica (“a Cássia tinha um vulcão na garganta”), sua estranheza fêmea-macho, macho-fêmea, seu pioneirismo, mesmo que não premeditado, na constituição dos novos lares. Chicão, seu filho com o baixista Tavinho Fialho, morto em um acidente de carro, ganhou judicialmente o direito de ser criado pela ex-mulher de Cássia, Maria Eugênia Vieira. Um desejo sempre reiterado pela cantora.

Adorei o depoimento do crítico musical Tárik de Souza que destacou a importância de Cássia no sentido autoral, pelas apropriações de que foi capaz: de gêneros musicais distintos, do rock ao samba, de canções inesquecíveis na voz de seus intérpretes originais. Se Cássia não foi uma grande compositora, foi uma intérprete autoral, ou seja, fez ser dela, como só ela o faria, o que era do outro. Isso é criação, isso é autoria, isso é assinatura. Para mim, o caso mais visível desse aspecto é sua interpretação de “Non, je ne regrette rien”, canção enaltecida na voz de Edith Piaf. Sem falar uma palavra em francês, mas com a coragem e o destemor dos grandes cantores, fez da canção francesa um depoimento-símbolo de sua vida: “Não, eu não lamento nada”. O “erre” gutural francês descia como um doce veneno em sua garganta.

E, ao final, para dar um xeque-mate na ficção e em seus engodos: a aparição de Chicão em um depoimento à la Cássia Eller. Tímido, esforçando-se com as palavras diante das câmeras.

Vale a pena conferir!

(Analice Martins)

O sertão de Ronaldo Correia de Brito

O escritor Ronaldo Correia de Brito é cearense, mas mora em Recife. Sua ficção, representada pelos contos de Faca e Livro dos Homens, além dos romances Galileia e Estive lá fora, encena os tensos diálogos entre a ambientação sertaneja e a esfera urbana, entre tradição e modernidade, entre localismo e cosmopolitismo.

O premiado romance Galileia (2009) narra o retorno dos primos Adonias, Davi e Ismael à casa do patriarca, o avô Raimundo Caetano, na qual todos passaram a infância. Homens da cidade e do mundo, viajantes e estrangeiros, fazem o caminho de volta ao sertão do qual fugiram como “aves de arribação”, segundo o avô. A celebração do aniversário do patriarca moribundo é o mote da viagem. O reencontro com um passado que não esconde culpas, mágoas, violência e tragédia é temido pelos três assim como o sertão com o qual se deparam.

São as ruínas de um passado opulento, de latifúndios com até doze mil cabeças de gado, que são vislumbradas pelas janelas da caminhonete que os traz de volta. Com a agricultura e a pecuária falidas, o sertão descortinado aos olhos dos personagens é outro. Os tempos mudaram, como diz, sobre a terra e os filhos, o dono de uma birosca à beira da estrada: “Não existe mais roça, nem eles querem, não existe mais gado, nem eles querem. Tem a cidade sem emprego”.

O sertão descrito pela ficção de Brito é agônico, sua grandeza épica pertence a uma outra ordem econômica do Brasil. Já o sertão contemporâneo se assemelha à periferia da cidade grande. Vive às margens de uma efetiva modernização, ainda que beneficiado por ela. Celulares, games, internet, motocicletas e mototáxis encurtam as distâncias, mas não preenchem o vazio de empregos, nem incluem o sertanejo marginalizado. Se antes era o flagelo da seca, agora a prostituição como resultado de uma modernização excludente.

As tradições culturais locais servem tão-somente para encenações. Roupa de couro e chapéu na cabeça são tristemente adereços para o xaxado, não correspondem mais ao exercício de uma função. Até os aboios de vaqueiro são ouvidos apenas nos programas de rádio. O sertão arcaico é apenas imagem, simulacro: o quarto de fabrico de queijo na Galileia, por exemplo, arruinou-se, as prensas lembram esqueletos de dinossauros, lembranças da fartura de leite: “Nos fogões de lenha não se torra café nem manteiga, nem se produz sabão da gordura de porcos e bois. Panelas de barro e cobre, cuias, jarras, potes e alguidares perderam a função. Minguaram, substituídos sem saudades por plásticos e acrílicos”.

Seria temeroso, no entanto, afirmar que o sertão ficcionalizado por Brito seja apenas uma paisagem e um cenário em ruínas, pano de fundo para discussões mais universalizantes. A fortuna crítica tem feito coro a esse olhar, embalada, sem dúvida, pela voz do próprio escritor, cujas entrevistas ajudam a construir tal discurso de autoridade.

Penso que uma das grandes subversões temáticas da prosa de Brito tem sido insistir na representação do sertão como um lugar de passagem, de trânsito, atravessado por deslocamentos e abandonos, incapaz de agarrar o homem a terra. A paisagem desolada e arruinada de agora em nada lembra os “inventários do passado”, “quando os Inhamuns eram uma terra rica, cheia de pasto, em que não parava de chegar gente” como afirma o personagem Ismael. Nesse contexto, observa-se não apenas a reestruturação de uma ordem econômica de produção, mas sobretudo um traço mais acentuado, sinal de que os tempos irremediavelmente mudaram: a mobilidade. É desses atravessamentos e hibridizações de que fala Brito.

O conceito de lugar identitário, relacional e antropológico, postulado pelo antropólogo Marc Augé, pode ser associado ao sertão da prosa regionalista de 30, ao qual os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, por exemplo, mesmo acossados pela seca e pela miséria, desejavam estar plantados, criando raízes e agarrando-se  a terra. O deslocamento compulsório em direção à cidade grande era antes de tudo uma estratégia de sobrevivência, não um desejo de errância. O sertão da Galileia de Brito não é relacional, é lugar de passagem e de fluxos. Um lugar em que, como diz Adonias, estão todos sempre de passagem ou de saída. Portanto, perceber o sertão como um “não-lugar”, na acepção de Augé, fratura o discurso localista da tradição regionalista brasileira, embaralha e tensiona as fronteiras entre campo e cidade, configurando um palco de tensões entre a herança rural e o futuro apocalíptico das cidades.

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*Este texto é parte do artigo que apresentei, em 2014, em Rennes (França), no congresso “Cartografias literárias do Brasil atual: espaços, atores e movimentos sociais”.

(Analice Martins)