O título a que recorro para esse texto-homenagem aos 450 anos da cidade do Rio de Janeiro é parte do questionamento levantado por Nelson Brissac em artigo de 1996: “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nelas?”
A primeira parte da pergunta, a que escolhi para pensar a relação dos moradores com a “cidade maravilhosa”, é a que traz, sobretudo, uma noção de pertencimento afetivo, que, independentemente de onde estejamos residindo no momento, arrastamos como memória fecunda. Não ter nascido em determinado lugar não nos exclui de nos sentirmos parte dele, de nos vermos em seus hábitos, costumes, falares, paisagem e história.
Ser habitado por uma cidade é ter com ela uma relação de identidade, é elegê-la como discurso e imaginário. Isso não tem nada a ver com cegueira crítica ou política, é vínculo mais doído: é amar apesar de. Algo como diz Carlos Drummond de Andrade, poeta nascido no estado de Minas Gerais, sobre sua cidade natal: “Itabira é apenas uma fotografia, mas como dói”.
São dele, aliás, alguns dos poemas que mais dão conta do sentimento de enamoramento e paixão pela cidade de São Sebastião. A mineiridade drummondiana vai aos poucos cedendo ao fascínio das linhas sinuosas do Rio de Janeiro, como na seção do poema “Lanterna mágica”, que leva o nome da cidade: “Fios, nervos, riscos, faíscas./ As cores nascem e morrem/ com impudor violento”. Mais à frente, com o coração que segue “molemente dentro do táxi”, cede à voluptuosidade dos corpos nas areias: “Nas praias nu nu nu nu nu nu/ Tu tu tu tu tu no meu coração”. Não sem ressalvar a dinâmica ambígua da cidade: “Mas tantos assassinatos, meu Deus.”/E tantos tantíssimos contos do vigário…”
As comemorações muitas que estão ocorrendo na cidade por meio das artes em geral reverenciam essa “paisagem cultural urbana”, considerada patrimônio pela UNESCO em 2012. Um patrimônio material e imaterial, uma categoria peculiar que corresponde à utilização humana da natureza e da topografia da cidade e que identifica um estado de espírito sem o qual a cidade perderia o seu elã: ser ou sentir-se carioca.
É claro que qualquer entendimento do que seja tal estado de espírito gerará controvérsias, mas o fato é que, aprisionados entre o mar e as montanhas, entre avenidas e favelas, entre o samba e o clássico, entre Niemeyer e o grafite, vai palpitando em nossos corações “a alma encantadora das ruas”, de que já falara João do Rio.
O poema “Coração numeroso”, de Drummond, expressa a captura da alma do poeta, sua gradual rendição à cidade, do mar que era uma promessa e do vento que ainda vinha de Minas para “uma fascinação casas compridas/ autos abertos correndo caminho do mar/ voluptuosidade errante do calor/ mil presentes da vida aos homens indiferentes”, de tal modo que seu “coração bateu forte” e que o mar agora batia em seu peito: “o mar batia em meu peito, já não batia no cais”. O poeta, então, exclama “a cidade sou eu/ sou eu a cidade”, na fusão lírica por excelência em que o “eu” faz transbordar seu estado anímico sobre a realidade externa, e esta o toma de assalto. Sujeito e objeto passam a ser uma coisa só. Nesse caso, de fato, é a cidade que habita os homens.
Meu coração também está mole como o do poeta. A contingência de uma mudança de apartamento no Rio de Janeiro me fez percorrer a cidade novamente a pé, de ônibus, de táxi. E colocou-me a observar, encantada, sua dinâmica em cada rua, em cada bairro, em cada esquina, em cada bar e padaria.
Mais fascinantes ainda têm sido as histórias dos proprietários dos apartamentos visitados. Cada um e sua janela, sua vista sobre a cidade, o bairro e sua história. Cada um e seu discurso sobre o Rio de Janeiro. Talvez, pela ausência de um olhar técnico sobre o imóvel em si, acabo ficando presa às histórias contadas das janelas que se debruçam sobre ruas, árvores e morros. O cansaço da procura vai sendo substituído pela escuta das relações de cada um com a cidade e por esse sentimento de que a cidade os habita e a mim também.
(Analice Martins)