Esse é o título de um belo poema de João Cabral de Melo Neto. Acho também que já escrevi uma crônica com esse título ou quis ter escrito. Seja como for, eu o escolhi para esse recomeço de anotações que pretendo constituam uma sequência intitulada FOTOGRAMAS.
Estou aqui, em Roma, enredada também com a aprendizagem mais sistematizada da língua italiana, condição mínima para inserção em novo universo histórico-cultural: a língua no dia a dia. Essa experiência da comunicação mais rasteira é a que nos faz pertencer, por alguns instantes, àquela dinâmica outra que atravessa minha vida de agora em país estrangeiro. Se não se quer permanecer em guetos, no aconchego da língua materna, é preciso “parlare e andare avanti”.
Não sei com os outros, mas, para mim, sempre foi mais fácil entender outra língua do que falar, até porque, na dimensão da escuta, entram várias estratégias também não verbais. Algo como uma língua presa, uma face da timidez, do receio de errar, da mania de escolher palavras. Sei lá.
O italiano nunca me foi uma língua estranha pelo cancioneiro, pela culinária, pelos poemas recitados por minha mãe, pelo cinema, pelo conhecimento de outras línguas neolatinas ou por minhas incursões turístico-antropológicas, já adulta, pela Itália. Mas tudo isso é bem diferente de estar aprendendo uma segunda língua em meio a americanos, alemães, paquistaneses, chineses, venezuelanos e brasileiros como eu. Artigos, pronomes, substantivos, gênero e número, verbos, conjugações etc. Imersa nessa outra língua, tudo é bem simples se os assuntos são afins: literatura, cinema, história. Tudo é bem esquisito se o universo de temas nos escapa e o léxico se transforma em petardos.
“Va bene”! Tudo isso é para falar de lembranças tenras e sorrateiras que sempre teimam em me fustigar os sentidos. Sou licenciada em Letras (Português-Francês), estudei francês no Liceu de Humanidades de Campos com dona Jonice da Hora e Ana Teresinha e também com minha querida “tia emprestada”, Iracy Peixoto. Devo a elas a aprendizagem competente e que me fez, sem Aliança Francesa ou outros cursos que não existiam à época, entrar sem sofrimentos na Universidade. Mas foi em casa, sempre lá, na companhia de minha mãe que a alquimia se fez. Estudei regularmente com ela para a prova do vestibular. A língua estrangeira seria o francês, claro. Não sei que tempo ela encontrava para, duas vezes por semana, sentar-se à mesa comigo e me mostrar seu método de estudos no antigo Curso de Letras Neolatinas na PUC-RIO. Trazia de sua biblioteca os “livres de poche” (“livrinhos”) com fábulas de La Fontaine, trechos de Les Miserábles, de Victor Hugo. Todos com texto integral. Havia uma gradação de aprofundamentos literários de que não me recordo mais. O método era simples e eficaz. Ela os lia com sua pronúncia inesquecível. Devo a ela certamente a pronúncia elogiada, sem falsa modéstia, toda vez que estou na França, falando com acento parisiense (eu não sabia o que eram dialetos naqueles tempos). Ela também cantava e declamava, como alguns que me leem sabem. Então, ela lia o livro escolhido, por fragmentos, ambientava-me na história e no contexto literário e dali me fazia escrever, no caderninho, o vocabulário novo do dia: substantivos, adjetivos, verbos, que eu ia absorvendo e associando com as lições de gramática francesa que tinha no Liceu.
Como veem, um método bem convencional, o possível para a época, o que resiste de algum modo. O fato é que se, na escola, eu aprendia um vocabulário mais pragmático e comunicacional, em casa, meu mundo se dilatava na relação em que mais acredito, como professora hoje, em qualquer situação de ensino e aprendizagem: língua e literatura casadas. A língua potencializada na literatura. A língua liberta das amarras sintáticas. A língua articulando mundos novos, fundando reinos, inaugurando linhagens, como já disse Adélia Prado. Com licença, Adélia!
Agora, aqui, na minha mesa branca de estudos, fazendo a lição para aula mais tarde na Scuola Dante Alighieri per Stranieri, listando, em caderno à parte, os artigos definidos, maschile e femminile (il, lo, la i, gli, le) e as flexões de gênero e número para os substantivos, me veio aquele cheiro das manhãs ao lado dela. As aulas eram de manhã. O mármore de nossa mesa da sala, branco como minha mesinha de agora. Grazie, mamma, per tutto! Pena que o italiano não tenha a palavra saudade… Privilégio e patrimônio nossos.
Analice Martins – Roma, 25/05/2107