Janelas são sempre um convite ao voyeurismo, a uma condição especial de observação. O cinema a elegeu como um ângulo de visão poderoso sobre a realidade em muitas perspectivas: a contemplação, a bisbilhotice, o segredo, a investigação, o suspense, o erótico. A imaginação, sobretudo. Talvez janelas digam mais do que se imagine a partir de um ângulo privilegiado do que do visto explicitamente.
Das janelas podemos nos achar resguardados para olhar de forma inconveniente e curiosa, para criarmos nossas narrativas acerca do que conhecemos apenas pelo hábito diário de olhar. Cada um deve ter sua lista pessoal de “janelas indiscretas”, como também da filmografia que traduz essa temática. O meu preferido é “Não amarás” (1988), do cineasta polonês Krzysztof Kieslowski. Poderia falar só desse filme, no entanto o que mais me interessa nele é o fato de que, na dinâmica do contato físico, o jovem voyeur capitula, desmonta-se, perde a performance garantida de seu posto, antes, privado, de sua janela particular. Mais não digo para não ser indiscreta e para não colocar a cereja no bolo antes da hora.
Não estou praticando voyeurismo erótico das três enormes janelas do quarto desse apartamento que é meu doce lar em Roma. Nem preciso me debruçar nelas, tudo entra sem cerimônia: sons de passarinhos em revoada; os gritos da “nonna” em dialeto irreconhecível; o inglês e o francês dos turistas dos outros andares; o jardineiro brasileiro falando ao celular no telhado do Horto Botânico; o cheiro do café do andar de baixo; a colina de Gianicolo que vez ou outra subo; a poeira do apartamento ao lado que estava em obras durante umas semanas e a rotina da vizinha no seu piccolo giardino térreo.
O bairro vai-se tornando um lugar e não mais um espaço quando lhe vamos atribuindo significações e narrativas. A vizinhança também ganha essa condição quando a experiência do contato ou do olhar a torna um objeto singular.
A vizinha do apartamento em obras ao lado do meu, enfim, se mudou. Para minha alegria e surpresa, além da simpatia e da preocupação em se desculpar pelos transtornos da obra nas semanas anteriores, é francesa, casada com um italiano e com uma filhinha italiana. Ah, o aconchego de uma língua mais familiar do outro lado do corredor… Em caso de emergência, saberei pedir socorro com todas as letras. Brincadeiras à parte: esse entorno pode tornar-se familiar quando lhe atribuímos sentidos particulares.
A vizinha do piccolo giardino, no pátio três andares abaixo das minhas janelas, deve ser italiana, fala italiano, cumprimenta os vizinhos cujas janelas se debruçam sobre o seu jardim. Rotineiramente molha as plantas, coloca roupas leves para secar, deita-se em uma rede de bangalô e acende velas à noite. Cobria-se na primavera com leve tecido. Agora, banha-se de biquíni, ao sol escaldante de Roma quase 40 graus. O mais importante e curioso para mim: lê todos os dias. O que lê minha vizinha sorridente do piccolo giardino? Parecem livros grossos. Serão best sellers? De que tratam? Em que língua? Será uma cena para Fellini filmar?
Outro dia, tendo dormido com as janelas abertas (será que também sou objeto de algum olhar indiscreto?), espantei-me com rumores de vozes por volta das 5h30min. Quando me debrucei sobre as janelas para verificar o que acontecia, vi uma equipe, no giardino da vizinha, em sessão de maquiagem ou em algum ensaio sabe-se lá sobre o quê. Ela não estava lá. Estranhei o horário, imaginei que tivessem varado a noite, me achei testemunha de algum grande filme a ser lançado. Mas tive que sair para ir à Universidade. Um dia longo para mim que terminaria com um aperitivo com meu supervisor já aqui em Trastevere.
Para meu espanto, retornando pelas vielas do bairro por volta das 21h, deparamo-nos com uma filmagem ou ensaio de fotografia. Quem lá estava??? A equipe toda que eu vira de manhã no piccolo giardino da vizinha.
Quando nem tudo se alcança ou escuta, o olhar é um ótimo exercício de imaginação . Se você tem uma janela, corra para ela.
Analice Martins. Roma, 26/06/2017