Quando o cronista engasga na matéria a ser escolhida, quando nada vem em seu socorro, quando fatos, notícias, ideias fixas, temas prediletos não lhe suscitam uma percepção pessoal, um ponto de vista instigante, é para o exercício da própria escrita que se volta, é em seus livros de cabeceira ou em seus novos companheiros que encontra pouso e de onde tudo recomeça como barro maleável, dócil ao desenho que as mãos lhe darão.
A poesia de Armando Freitas Filho não me é uma leitura nova, feita pela primeira vez, embora toda leitura, quando intensa, convide sempre a outras vezes, porque não se lê para esgotar assunto ou forma, lê-se para reinventá-los. Por isso, o poeta acerta quando confessa, em “Há meio século”, poema do recém-lançado Dever (2013): “Componho para além do fôlego/da folha, para fora do papel./Não é como escrever firmando/ no tampo da mesa, na página/do livro, no tempo da areia/sujeita ao mar, sequer. Componho/para frente, onde o leitor se forma/no espaço e lê, e leva o que possuiu”.
Armando Freitas Filho está lá no experimentalismo e nas inquietações da Poesia Marginal dos anos 70, mas também está além, nesses 50 anos de produção literária, entregue à “luta vã com as palavras”, como já dissera Drummond, referência maior em sua trajetória e a quem dedica, neste Dever, o belo poema “O nome de um pai”, para quem “a morte incorrigível/já tinha chegado, há tempo.”
Recorrendo a Borges e a Mallarmé, revisita o tema sempre necessário das teorias poéticas da composição e da leitura. Colhe, em “A biblioteca de Babel”, o conto borgeano que constitui um lugar teórico de reflexão sobre a escrita e a leitura, o mote para dizer que “Cada livro é um capítulo/vindo de dentro de outro livro/ e assim sucessivamente”, para concluir, a contrapelo, “não tenho o gênio/o engenho para dizer/ que tudo vai acabar num livro.”/ Só sei que tudo não acabará/ num livro, que tudo/ vai acabar comigo”.
Neste poema “Livros”, o poeta afirma que só Borges leu todos os livros, sabendo dos que precisava, porque pressionado pela cegueira, mas que ele, “poeta cego desde sempre” não tinha tal urgência. Portanto, os livros “transbordam pelas estantes” sem que ele consiga arrumá-los, pois “se os arrumasse/ os arrumaria como na morte”.
A biblioteca do poeta, então, tem que ser duvidosa para que lhe permita “ler, reler, interromper, não ler, esquecer, perder.” Neste poema intitulado “Biblioteca duvidosa”, agarrei minha lavra desta semana, não como desculpa para a urgência e a preguiça de considerar arrumar meu próprio escritório, mas como defesa de que uma ordem catalográfica em nada talvez ajude o gênio criador. Como indaga o poeta, não é melhor tê-los “estourados/pelo tempo da traça e da leitura/pelas estantes que os regurgitam/ou que os engolem, crus, sem abrir” a “arrumá-los metro a metro, bibliotecária-/mente, com todas as lombadas certas/por assunto, sabor e peripécia/desfazendo as pilhas de autores sortidos/ o retrato do que vai por dentro/do escritório e do escritor/não seria vazio, de mentira, findo?”
Não se iludam apressados os que concluírem que esta imagem corresponda à falta de método. Ao contrário, ela é o próprio método que permite o “lance de dados” mallarmaico. Nesta aparente desordem, esgueiram-se “os entrelivros invisíveis”. Assim como cada livro é um capítulo vindo de outro livro, uma biblioteca de verdade deve nos abastecer a sanha, deve guardar invisíveis nossas associações livres ou arbitrárias, nossos desejos e descobertas para que, não tendo tempo para ler todos os seus livros, vivamos deste incômodo.
Em “Edições de Mallarmé”, Armando dá a senha para aqueles que não estão sempre ao alcance da mão, mas que se alojam na imaginação: “Entre os livros há os entrelivros/invisíveis quando estão perfilados/ que quase se esquecem de ser./ Magros, mais perto da imaginação/do que da mão, ocupam na estante/o lugar nenhum, no entanto são deles/os primeiros dados, ainda trêmulos/no meio do lançamento e da aterrissagem”.
Por isso, ainda que sem a “visita instigante da inspiração”, é melhor se entregar ao dever de escrever, porque, como reconhece o poeta, escrita é também uma “série de exercícios de repetição”. Em poema de 2007, Armando Freitas Filho justifica seus cinquenta anos de luta diária com as palavras: “Evito não escrever, mesmo se não há/ convite ou visita instigante da inspiração./Escrita é treino, ginástica, rascunhografia/momentos vários de dias em um dia único, indiviso./Série de exercícios de repetição, a fim de alcançar/não menos, mas mais segundos para a mão./O tempo todo, sofrescrevo, só, preso/na oração torturada pelo predicado do sujeito/intransitivo, em transe hermético, trancado/no escritório automático do quarto, na cabeça/ ou ao ar livre, sem suporte, cheio de gralhas./ No final sem fim, subscrevo, não subverto – ecoo.”
(Analice Martins)