Intérprete de culturas

A escritora indo-britânica Jhumpa Lahiri estará na edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP). Filha de migrantes indianos, nascida em Londres, passou a maior parte de sua vida em Rhode Island, no norte dos Estados Unidos. Atualmente, vive em Roma. Já foi premiada com o Pulitzer de ficção. Além do recém-lançado Aguapés (2014), é autora do livro de contos Intérprete de males (2001) e do romance O xará (2004), todos traduzidos no Brasil. Sua ficção é atravessada pelas identidades cindidas, em constante negociação entre dois mundos, duas culturas. Elejo um de seus contos para breve comentário que sirva como convite à leitura de suas narrativas em trânsito.

O conto “Esta casa abençoada”, do livro Intérprete de males, revela pelo viés ficcional dois posicionamentos distintos diante da tradução entre culturas. Os contos do livro são ambientados ora na Índia ora nos Estados Unidos. Um jovem casal de ascendência indiana muda-se para uma casa nova em Connecticut. Ele, engenheiro formado em Boston, com carreira promissora. Ela, mestranda em Standford, pesquisadora de um poeta irlandês.  Filhos de famílias que já se conheciam: a dela, residente na Califórnia; a dele ainda em Calcutá, onde foram casar-se, por insistência dos pais.

A arrumação da casa nova traz à tona os diferentes posicionamentos de Sanjev e Twinkle frente à descoberta de um “zoológico bíblico” de imagens cristãs, nas palavras do marido. Enquanto a mulher Twinkle mantém uma curiosidade infantil, diante da descoberta, em todos os aposentos da casa, destas imagens cristãs, guardando-as num console, como num pequeno altar; Sanjev desespera-se diante da possível reação dos vizinhos a essa aceitação tolerante.

Se, para Sanjev, tais objetos estavam despidos da aura do sagrado, para Twinkle, jogá-los fora representaria uma espécie de sacrilégio, pela importância que deveriam constituir para os antigos moradores: “Sanjev examinou os objetos sobre o console. Intrigava-o o fato de que cada um deles à sua maneira era inteiramente ridículo. Sem dúvida, faltava-lhes a aura do sagrado. Intrigava-o também constatar que Twinkle, uma pessoa de bom gosto, estava encantada com eles. Aqueles objetos tinham algum significado para ela, mas não para ele. Pelo contrário, irritavam-no. ‘A gente devia ligar para o agente imobiliário. Para dizer que largaram todas essas porcarias aqui. Pedir para ele levar tudo embora’. ‘Ah, Sanj’, Twinkle gemeu. ‘Por favor. Eu ia ficar arrasada se a gente jogasse isso fora. Essas coisas eram claramente importantes para as pessoas que moravam aqui. Seria, sei lá, uma espécie de sacrilégio’”.

Na festa de inauguração da casa, alguns convidados se espantaram com a imagem da Virgem (Nossa Senhora) no jardim, ao que Sanjev replicou dizendo que, apesar de na Índia haver cristãos, eles não o eram. Twinkle, então, relatou aos convidados, alguns colegas de trabalho de Sanjev e casais indianos residentes em Connecticut, a aventura diária de descoberta desses objetos, dizendo ser o sótão a única parte da casa ainda não vistoriada. Foi para lá que todos se dirigiram para desespero de Sanjev. Foi lá também que encontraram um enorme busto de Cristo que Twinkle obrigou Sanjev a retirar de lá, como numa espécie de caça ao tesouro.

Interessante notar que a postura de Twinkle, para quem até a culinária indiana era trabalhosa (“detestava picar alho e descascar gengibre, e também não sabia usar o liquidificador”), é mais porosa, em todos os sentidos, com relação à manutenção das tradições indianas, ao passo que Sanjev resiste a qualquer prática de reposicionamento e de reinscrição diante das negociações impostas pelo pertencimento da escolha, já que constituíam uma segunda geração, filhos de imigrantes. Era ele, por exemplo, que, nos fins de semana, temperava óleo de mostarda com pedaços de canela e cravo para fazer um molho de curry decente. Até resistência à garrafa de vinagre encontrada na casa, ele faz, para depois reconhecer o sabor do peixe preparado por Twinkle com tal ingrediente.

No conto, as diferenças culturais são constantemente interpeladas, a condição de pertencer a duas culturas simultaneamente avulta como contingência inequívoca, porém tensa, já que em constante negociação. Portanto, o que poderia ser entendido como uma blasfêmia, no sentido simplista da deturpação do sagrado, é visto, pelas práticas de tradução cultural, como positividade de uma poética da reinscrição que vê no duplo pertencimento mais uma “benção” do que uma prática de recusas.

Por isso, talvez, possamos entender o final do conto de Jhumpa Lahiri, num sentido mais amplo, como circunstância inevitável das práticas tradutórias: “De fato Sanjev detestava o busto. Detestava seu tamanho desmesurado, sua superfície perfeitamente polida, seu valor inegável. Detestava a ideia de que aquele objeto estava em sua casa e que lhe pertencia”.

Talvez também se possa constatar, por meio da ficção de Jhumpa Lahiri, as complexas estratégias de inclusão requeridas pelas novas identidades culturais.

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*A íntegra deste meu artigo se encontra publicada na Revista Agenda Social do Programa de Políticas Sociais da UENF, disponível em versão eletrônica. Intitula-se “Benção ou Blasfêmia: aspectos da tradução”

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(Analice Martins)

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