Não, João Ubaldo Ribeiro era de Itaparica na Bahia. Mas emprestava seu nome ao café da livraria Argumento na rua Dias Ferreira no Leblon. Agora, talvez, também vire nome de rua ou receba uma homenagem do Tio Sam, o boteco de sua preferência, que guardará vazia sua cadeira cativa, de onde observava e sentia a vida que lhe entrava com brisas marinhas: a maresia do Leblon, a maresia da ilha de Itaparica.
As cidades e os lugares são os do nosso nascimento, mas sobretudo os de nossa eleição. Às vezes, disputam preferência e nos dão uma espécie de duplo pertencimento, fazendo-nos múltiplos em vez de cindidos. Quando há um destino escolhido, não há dores nas lembranças, como parecia ser o caso de Ubaldo. Itaparica não era apenas a memória de uma cidade cuja fotografia na parede doía. Itaparica era também a cidade de sua memória criativa, seu espaço de retorno e de invenção, território fértil de sua criação. Itaparica não era uma cidade fantasma que assombrava o escritor com seus espectros. Não, Itaparica continuava solar em suas visitas, como me parece ser Santo Amaro da Purificação para Caetano Veloso e Maria Bethânia, conterrâneos de baianidade.
O escritor que percorre ruas a pé e se apropria do bairro e da cidade com sua presença funda um discurso, como diria Michel de Certeau, na sua “fala dos passos perdidos”. Andar, percorrer, atravessar, sentar-se e frequentar são formas de apropriação dos espaços. Talvez, esse tenha sido o caso de Ubaldo com o Leblon e suas gentes.
Quando eu o vi dois anos atrás sentado lá no Tio Sam, em sua janela para rua, fazendo ecoar, entre amigos, sua inconfundível voz de trovão, sua gargalhada, e desfrutando da simpatia de todos – conhecidos ou não –, não me pareceu uma figura folclórica. Ao contrário, pareceu-me uma figura bem real, um homem à frente de seus livros e não escondido atrás deles, um homem além de sua ficção, um homem não apenas de palavras, como muitos escritores nos parecem, mas um homem de verdade, agarrado à vida, um homem que não era etéreo nem eterno, um homem cuja imagem não fora apenas inventada pelo que nossas idealizações de leitores aficionados gostam de mirabolar. Digo isso sem juízos de valores, pois não me importo com o contrário, quando a ficção é boa, ou seja, com escritores impalpáveis, que vivem em nossas memórias na dimensão exclusiva da potência de suas palavras literárias.
João gostava da rua. Não sei se isso chega a ser um mérito, mas cria genealogias e filiações entre escritores. Os que gostam da rua, que extraem dela o máximo que podem, tornam suas partidas mais sentidas. Talvez porque se ausentem em dois sentidos: da vida e da obra. Por outro lado, sabemos que é a obra que os torna imortais e não o fardão. A obra prolonga a vida, posterga a morte. A obra, num certo sentido, atenua a morte para os leitores.
Os cronistas, ainda quando deem a esse gênero matizes mais literários, são homens ligados ao cotidiano de suas cidades, de seus países e de seus territórios. Este é um outro traço da escrita de Ubaldo que o tornou bem “terráqueo” e não uma figura evanescente por trás do véu da ficção. A crônica põe em movimento a dinâmica da vida em seu sentido político-social e também existencial. Por isso, dizemos que é um texto ao rés-do-chão, que parte quase sempre do factual para uma reflexão mais abrangente, ao sabor de um senso crítico mais ácido ou de um lirismo mais pungente.
Embora tenha lido Viva o povo brasileiro, aos dezessete anos, por solicitação de uma professora de Teoria Literária e, portanto, me deparado com as várias encarnações da “alminha brasileira” ainda adolescente, só fui perceber a importância do escritor no cenário da literatura brasileira um pouco mais tarde. Ainda naquela época, uma amiga mestranda, cuja pesquisa girava em torno das relações entre literatura e história em Viva o povo, partiu para Itaparica a fim de entrevistá-lo e voltou de lá enredada nas histórias de Ubaldo e seus personagens, cujas inspirações ele apontava na praça e dizia: “Tá vendo lá fulano? Ele é o personagem tal”.
Nesses dois anos em que escrevo para a Folha da Manhã, já mencionei algumas vezes suas crônicas dominicais no jornal O Globo. Eu adorava suas desconfianças tecnológicas, suas rabugices com as falsas promessas desses aparatos e sua consequente fetichização. Concordava inteiramente com suas colocações e ainda as reproduzia em sala de aula, como, por exemplo, a linda crônica (“No tempo do livro”) em que João falava da insubstituível liberdade que a leitura, a partir do suporte impresso, sem necessidade de mídias de imagem e som, pode promover para a imaginação do leitor, conferindo-lhe a oportunidade de criar suas próprias imagens sem se tornarem reféns das que já lhe seriam oferecidas em links, hiperlinks, hipermídias, e-books etc. Era uma doce advertência à glamourização às vezes burrinha que a tecnologia pode prometer. Lembro também da crítica feroz à adaptação do conto machadiano “O Alienista”, feita por Patrícia Engel Secco.
Com a sua partida na sexta última (18/07), as ruas do Leblon certamente ficarão saudosas de sua alma brasileira. Assim como Drummond, em Copacabana, e Otto Lara Resende, no Jardim Botânico, acho que ele merece uma estátua no Leblon.
(Analice Martins)