É consenso entre vários setores da sociedade a absoluta necessidade da leitura para a formação psíquica e intelectual de sujeitos pensantes. Difícil é remar contra a maré em um país como o nosso. Embora sejam alardeados índices de aumento do universo de leitores, sobretudo se consideramos a leitura “deslizante” proporcionada por novas mídias e suportes, nossos resultados de ensino e aprendizagem, em nível mundial, são desastrosos. Não saímos sequer do fosso do analfabetismo funcional.
Índices não são capazes de atestar, com segurança, se um leitor consegue decodificar o sistema simbólico da língua escrita e dar-lhe significações, muito menos se consegue ampliar tal sistema, sendo capaz de “ler o mundo”, ambição máxima da atividade da leitura. Um sujeito- leitor não pode ser meramente um decodificador de signos, deve ser sobretudo alguém apto a associá-los, derivá-los, ampliá-los, verticalizá-los paradigmaticamente.
Em entrevista recente ao jornal “O Globo”, Pedro Saffi, professor do Departamento de Finanças da “Cambridge Judge Bussiness School” ressalvou que, apesar de o Brasil ter subido de posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), desde o Plano Real, a educação foi um indicador que permaneceu estagnado, constituindo uma das mazelas do crescimento econômico responsável pela perpetuação da concentração de renda no país: “É essencial a melhoria da qualidade na educação para que o Brasil possa competir com outras nações. Nossa mão de obra é, na média, pessimamente qualificada em todos os níveis e, infelizmente, sem grandes perspectivas de melhora. A expansão no acesso à educação não foi acompanhada por qualquer melhora significativa de qualidade”.
O diagnóstico de Saffi põe o dedo em nossa ferida e faz cessar um cenário promissor a médio prazo. Sua constatação de nosso quadro econômico e consequentemente de Desenvolvimento Humano aponta a estagnação na educação como nosso calcanhar de Aquiles. Para mim, tal estagnação tem um nome específico: ineficiência na leitura. Eu poderia citar aqui muitas matérias, artigos e entrevistas que apontam esse quadro desolador e desigual como a razão de nossa histórica defasagem. Nem é preciso recorrer a especialistas na área de ensino de língua portuguesa e literatura para reconhecer que a incapacidade de ler com eficiência impede qualquer compreensão de conhecimentos matemáticos, físicos e químicos e, consequentemente, a resolução de suas questões.
Existem, é claro, experiências exitosas, mas isoladas, que não constituem uma política pública nem um esforço governamental que passaria inicialmente pela formação e valorização do professor, sem o qual o acesso ao universo da leitura ficaria a reboque da sorte e de casuísmos. Ler com competência e ser capaz de interpretar a realidade para, diante dela, ter uma postura reflexiva e de interferência não pode ser uma benção, um dom, um privilégio. Tem que ser (e é) um direito, que nos tem sido constantemente negado.
É lindo ver eventos como as Festas Literárias e as Bienais, mas nelas o acesso ao universo da leitura já está consolidado. Trata-se apenas de um aprofundamento de laços e afinidades. O osso duro de roer está na sala de aula. Dos problemas estruturais aos mais filosóficos, continuamos a dar cabeçadas às escuras.
A professora e crítica literária Nelly Novaes Coelho enumera as seguintes funções para a leitura, em especial do texto literário: lúdica, evasionista, catártica, cognitiva, pragmática e sinfrônica ou sintonizadora. Deveríamos, ainda antes de alfabetizados, ter o direito assegurado pela escola de nos beneficiarmos de todas essas funções, em ordem ou fora dela, separada ou simultaneamente. Nenhuma delas deveria se apartar de nós na vida adulta.
Uma vez introduzido competentemente no universo sígnico da leitura, o sujeito-leitor (criança ou adulto) poderá entreter-se, divertir-se; escapar da realidade contingente e projetar-se em uma realidade paralela, sonhar, viajar; dar vazão aos seus sentimentos, purgá-los, purificar-se deles, experimentar sensações novas, nunca vivenciadas; aprender, adquirir informações, conhecimentos; transformar a si mesmo ou a realidade a partir deles, mas sobretudo poder reconhecer nos textos a capacidade de perpetuação da vida, da memória, de identificação de sentimentos para além de fronteiras geográficas, linguístico-temporais, culturais e etárias.
Enfim, entender que, pela leitura, a realidade se descortina e se reinventa e que ter esse direito negado por ineficientes políticas públicas de formação do professor ou de escolarização de alunos nos fará perder o bonde da história.
(Analice Martins)