“O que é uma pátria? Uma pátria pode ser um cheiro. Um buquê de cheiros. Pitangas, terra molhada, o capim macerado. Ou um verso, acrescentou Alexandre Anhanguera, um simples verso. Há versos onde cabe inteira a minha pátria”. Este é o trecho de um diálogo do livro Milagrário pessoal, do escritor angolano José Eduardo Agualusa, que meu companheiro de espaço e de afinidades, Sérgio Arruda, com brilho resenhou na semana passada.
Sinto-me, portanto, completamente dispensada da apresentação do livro, pois que não conseguiria fazer melhor. No entanto já estava eu, desde a leitura que fiz do romance um pouco antes da palestra do escritor em nossa cidade, agarrada com as impressões que a provocação do poeta Alexandre Anhanguera, personagem do livro, havia-me suscitado. Tentei, talvez já imaginando a resposta torta que viria, perguntar ao próprio Agualusa em que versos caberiam Brasil, Portugal e Angola. Óbvio que ele não me respondeu de chofre. Disse, delicadamente, que havia perguntas cujas respostas vinham depois, pois lhe ficavam ecoando. Ora, ele não precisava mesmo ter-me respondido. Um escritor não tem que revelar todos os seus segredos diante de uma plateia, não tem que se desnudar para propagar a sua obra. Um escritor, diante do público, é um personagem de si mesmo. Não porque minta, invente, camufle, mas tão-somente porque se encena no ato da fala, desfila narrativas algo desnecessárias para saciar a sanha de interlocutores “devoradores da vida alheia”. As narrativas que interessam estão lá, nos livros aos quais devemos nos lançar vorazmente. Como ele próprio esclareceu de início, a literatura não é feita para oferecer respostas, mas para colocar perguntas e nos interpelar.
As referências que sua ficção faz a Guimarães Rosa, Manoel de Barros, por exemplo, já trazem o cheiro da terra molhada, do capim macerado da língua portuguesa recriada na obra desses escritores. Por paradoxal que seja, é possível falar da pátria, sem dela falar diretamente. Basta que a língua, domada pelo escritor, dobre-se plasticamente em pitangas e cheiros. “Flor do Lácio Sambódromo, Lusamérica, latim em pó. O que quer, o que pode esta língua?” Fala, Caetano!
Então, lendo Agualusa – que lê Guimarães, Manoel de Barros, Caetano e outros tantos patrícios -, fiquei a pensar, qual seu personagem filólogo, que a pátria é um “…mistério íntimo. Penteio seus cabelos longos e ásperos no frio crepúsculo do meu quarto. Abraço-me ao seu corpo magro e choro. A minha pátria é um rumor esparso (…) As nuvens nas quais vi desenhado o meu futuro, e que logo se esfumaram. A minha mãe costurando numa velha máquina Singer o fato que o meu pai nunca chegou a vestir. A minha pátria é uma dor fantasma, como a ferida latejando na perna do jovem soldado, muito depois de lhe cortarem a perna”.
Agualusa assim como Vinícius de Moraes inventou, na língua, sua pátria, como, no fundo, deveria sempre ser. Ambos acreditaram ser ela capaz de dizer do dentro e não do fora, da saudade de quem parte para não mais voltar o mesmo. Não é isso, afinal, o que canta Vinícius em “Pátria Minha”? “A íntima doçura e a vontade de chorar”, “Vontade de beijar os olhos de minha pátria, de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos”. “Patriazinha que não rima com mãe gentil”. “Fonte de mel, bicho triste” (…) “tenho-te em tudo que não me sinto a jeito nesta sala estrangeira com lareira e sem pé direito”.
A real experiência que a literatura promove em relação às pátrias, às identidades nacionais ou às múltiplas identificações culturais não está propriamente na geografia, no espaço material, e sim na imaterialidade da memória que a língua consegue transportar e inventar. O cheiro, o gosto, o som, as imagens só nos são tangíveis porque o código das línguas os coloca de pé e os faz roçar em nossos sentidos. Caetano tem toda razão: A pátria é a língua. Não tão homogênea como a idealizamos, mas partida, esgarçada e apropriada por muitos falares.
Uma nação, uma comunidade, um povo sem literatura – ainda que oral -, sem narrativas ou versos, não existem de fato. Povoam um território, mas não ganham a existência simbólica criada pelas palavras. A falta desse corpo simbólico os condena à morte em vida. Uma nação sem literatura não tem futuro nem passado, apenas presente.
Por isso, José Eduardo Agualusa foi muito feliz quando reconvocou o mito da Torre de Babel para entendê-lo pelo avesso. As muitas línguas e falares não são razão de intolerância ou destruição. Ao contrário, são sinal de diversidade e vida. São diferentes formas de se chegar ao Conhecimento. Deixar morrer uma língua é perder uma forma a mais de conhecer o mundo.
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OBS.: Caros leitores, até o dia 4/11, escreverei quinzenalmente. Depois, os artigos voltarão a ser semanais.