Abracadabra

Na parede branca e lisa,

a realidade

escorrega

sem contornos,

inexistente.

*

Dentro da moldura,

na parede branca,

a realidade

se ergue

outra.

*

A que é entrevista

pela janela,

essa,

não a inventamos.

* 

Mas a que aprisionamos,

em cores e linhas,

é a que nos inaugura

a vida e os desejos.

 

(Analice Martins)

Trânsitos

(são paulo é o lá fora? é o aqui dentro?)

vozes sobrepostas

sobressaltos

quarteirões de gente muita

múltipla gente em trânsito

semitons

*

a rua se eleva

olho de cima

narciso acha feio

o que não é espelho.

 

(Analice Martins)

Cronos

                                                   Para Raduan Nassar

 

A rosa branca

colhida em dura disciplina

grita a fúria

de silêncios ancestrais.

 *

O verbo interdito

é carne

de desejos

dilacerados.

*

O fruto pródigo

dita uma pressa

imprópria.

*

A lógica do tempo –

arcaico –

suprime das coisas

sua abundância.

Paga-se com a vida

a fruta que se morde

antes.

(Analice Martins)

 

O longe

Quando há mar à vista,

as velas logo

se eriçam.

 *

É para o longe

que o leme

aponta.

*

E, quando a manhã

intumesce de vermelho

o horizonte,

*

a brisa marinha

faz ecoar

o chamado da sereia.

 

(Analice Martins)

Magia

O traço na página em branco

cava a palavra,

que tomba em gruta

profunda.

*

O eco da palavra escavada

distorce o sentido.

Inventa uma outra

vertigem.

*

A página em branco é caverna

de paredes e ásperas entranhas.

Precisa da teima e da urgência

de quem a percorre.

* 

A sombra do traço entrevisto

ganha a cor do desejo imaginado.

Eis a magia que propicia

a coisa.

 *

A coisa que – sólida –

o desejo inventou,

e o traço riscou

na parede branca e muda.

(Analice Martins)

 

Outros quintais

Não, não quero o quintal da minha infância!

Esse, todos o arrastam

nos olhos, nos gestos,

na cantilena da memória.

*

Por mais doce que seja,

é fruta do outrora.

Amarga vez ou outra,

e os brinquedos se perderam.

*

Quero o azul

do pássaro desconhecido.

Azul pura memória

do que ainda não vi.

 *

Dos mares que não atravessei,

das colinas que não subi,

dos desertos que pressinto,

dos passos que me perderão.

 

(Analice Martins) 

Rumores da cidade: janelas

 

Sem cortinas,

a casa é o fora:

a rua que entra,

o verde espelhado.

* 

Sem cortinas,

o dentro da casa

é nudez devassada

e cores à mostra.

* 

Com cortinas,

o fora é lá fora:

a rua se encolhe,

e o verde se encobre.

* 

Com cortinas,

a casa é só o dentro:

corpo privado

e cores escondidas.

 

O oco

                                                  “A vida dói” (Iberê Camargo)

Qual o menino morto

na tela ocre

do sertão

de Portinari,

 *

 esse outro

 – também cândido –

 agonizou

 à beira-mar.

* 

Braços impotentes

recolheram a dor

de travessias

horrendas,

*

sem horizontes

sem divisas

sem acenos

sem nada.

 

(Analice Martins)