Glossário e interpretações

EDWARD SAID, intelectual palestino, autor da imprescindível obra “Orientalismo”, afirma: “Hoje em dia, é muito frequente ouvir intelectuais acadêmicos norte-americanos ou britânicos falarem sobre o mundo islâmico; são abordagens feitas de forma redutora e, a meu ver, irresponsável sobre algo denominado “o islã” – cerca de 1 bilhão de pessoas, dezenas de sociedades distintas, meia dúzia de línguas principais como o árabe, o turco e o iraniano, todas elas espalhadas por um terço do planeta. Ao usarem essa única palavra, parecem considerá-la um mero objeto sobre o qual se podem fazer grandes generalizações que abrangem um milênio e meio da história dos muçulmanos, e sobre o qual antecipam, descaradamente, julgamentos a respeito da compatibilidade entre o islã e a democracia, o islã e os direitos humanos, o islã e o progresso”.

TARIQ RAMADAN, filósofo e acadêmico, professor de filosofia europeia e estudos islâmicos, no Saint Antony’s College, em Oxford, adverte: “O fato de existirem milhões de descendentes de árabes e mulçumanos vivendo no Ocidente causa um impacto tremendo no Islã. O mundo islâmico está de olho em nós. Se conseguirmos estabelecer uma boa convivência, sob uma base de confiança mútua, estaremos enviando o sinal de que é possível repetir essa experiência num patamar mais amplo, entre o Islã e o Ocidente. O maior atrito ocorre na Europa, mas é também onde há maiores possibilidades de diálogo. O desafio é tremendo. O caso das caricaturas do profeta Maomé, feitas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten em setembro de 2005, é o sonho da extrema direita europeia e também dos extremistas islâmicos, pois atrapalha o entendimento. Os mulçumanos europeus precisam estar totalmente comprometidos com a identidade europeia e convictos de que esta sociedade é também a deles”.

ALAIN FINKIELKRAUT, filósofo francês de origem judaico-polonesa, sentencia: “Aqueles que combatem a liberdade de expressão em nome do respeito à crença que lhes é cara desprezam as crenças alheias e expressam claramente esse desprezo. Os jornais de Teerã, de Damasco e do Cairo estão repletos de caricaturas vingativas e grotescamente desavergonhadas de judeus ortodoxos ou de desenhos que demonizam o Talmud (conjunto de interpretações das leis mosaicas). É a dolorosa renúncia à convicção de seu absolutismo que embasa a um só tempo a liberdade de expressão e o respeito às crenças. É a essa renúncia que as elites e as massas islâmicas opõem sua cólera santa”.

HOMI K. BHABHA, crítico literário indo-britânico e estudioso da diáspora, postula: “A blasfêmia vai além do rompimento da tradição e substitui sua pretensão a uma pureza de origens por uma poética de reposicionamento e reinscrição. A blasfêmia não é simplesmente uma representação deturpada do sagrado pelo secular, é o momento em que o assunto ou o conteúdo de uma tradição cultural está sendo dominado ou alienado no ato da tradução”.

ROLAND BARTHES, crítico literário francês, que relê SAUSSURRE, constata que “o significado é a representação psíquica de uma coisa e não a coisa em si”.

RENÉ MAGRITTE, pintor belga do Surrealismo, relembra-nos, no célebre quadro “A traição das imagens”, que a pintura de um cachimbo não é o objeto cachimbo, não é a coisa em si: “Ceci n’est pas une pipe”.

Concordo, portanto, com o que a charge de CHICO CARUSO, publicada no jornal o “Globo”, no dia 15 de janeiro, reafirma sobre as relações entre a ARTE – dimensão em que a expressão deve ser libertária – e A REALIDADE EM SI:

(Analice Martins)

“Não matarás”

O sexto dos dez mandamentos parte do pressuposto de que o direito de matar grassava entre o povo hebreu. O decálogo é imperativo, prescreve proibições, porque pressupõe condutas não desejadas e, portanto, almeja regular o comportamento daqueles a quem se endereça.

Moisés, o responsável pela transcrição dos mandamentos divinos, segundo a tradição bíblica, foi mais do que um líder espiritual, mais do que um guia em busca da Terra Prometida. Foi um legislador. Para a tradição cristã, foi uma figura imprescindível, pois coube a ele a preparação para vinda do Messias e de sua lógica revolucionária: “amar ao próximo como a si mesmo”.

Toda cultura se organiza em torno de regras e preceitos. Todas precisam de funções reguladoras para a convivência harmônica. Para a moderna cultura ocidental, a imposição da morte não seria um direito irrestrito, subordinado às paixões e aos julgamentos pessoais. Mata-se em defesa própria, mata-se em situações de guerra e para sobreviver. Ainda assim, questiona-se a legitimidade de tais situações.

Os processos civilizatórios subentendem a inexistência da barbárie, do hediondo, pressupõem o respeito e a tolerância, bases de uma convivência harmônica. Toda ótica cristã está alicerçada no amor, no perdão, na percepção e na compreensão do OUTRO. Ainda que por outros vieses – psicológicos, filosóficos ou sociológicos -, ou seja, ainda que descartando a BOA NOVA, a passagem ritualística da barbárie à civilização impõe a entrada em um universo de códigos, regras, prescrições e interdições. Não podemos ignorar, no entanto, que, em nome da civilização, a barbárie sempre foi cometida. Todos os processos de colonização aí estão para reafirmar tal paradoxo.

Caminhamos em direção ao obscuro, ao temerário, ao incontrolável. Vivemos tempos de absoluto descontrole, porque da banalização da vida e do direito a ela. Para a imposição da morte ainda havia condicionais: “Se você não…, morrerá”. Esta conjunção subordinativa adverbial desapareceu por completo. Isso é a barbárie, impulsionada por motivos torpes dos quais talvez também sejamos culpados. Ao enaltecermos o consumo desenfreado, por exemplo, como medida de ascensão social, como já advertia Néstor García Canclini, em “Consumidores e cidadãos”, ao fazermos do templo do consumo a lógica da cidadania, só vamos solidificar desigualdades com falsas ilusões.

“Ele vai te matar”. Assim fui assaltada (roubada, extorquida, juridicamente) no sábado passado, caminhando de manhã pelas ruas do meu bairro, o Flamboyant. Celular e dinheiro foram as exigências dos adolescentes empoderados, sem capacete, em uma moto. Enquanto o que dirigia proferia a sentença, o carona comparsa já estava a centímetros de mim com a mão na cintura, segurando a sua arma (de verdade ou de mentira?). Entreguei o que me pediam sem pestanejar: um celular velho e uma nota de vinte reais. E se eu não tivesse o que entregar? Tremi, como todos que já passaram por essa situação. Depois, tentei correr receando que me seguissem novamente quando vissem o “celular-bomba” que haviam roubado. Um nokia xpress vermelho, modelo 2008. Não era um iphone, não era um sansung galaxy, um nokia lumina, sei lá.

A “frase-sentença” proferida por eles ainda está ecoando em meus ouvidos. Uma violência simbólica. Uma morte anunciada sem condicionais. Veloz como nossos tempos. Sem concessões, sem contra-argumentos. Eu estava indo comprar os jornais do dia. Os mesmos que anunciaram na capa a morte de um rapaz de 23 anos em Botafogo, vítima de assalto semelhante. Ele reagiu. Não podemos reagir. Temos que engolir a barbárie e a “palavra-bala”.

Janeiro em Campos dos Goytacazes. A banca estava fechada, as ruas desertas na cidade, a situação que já conhecemos. Digamos que foi a crônica de um assalto anunciado. Mas o que de fato me pasmou foi constatar que os assaltantes adolescentes ostentavam a certeza do poder de matar. Sem restrições, sem ressalvas, sem atenuantes. Mato porque mato. Seu celular vai virar dinheiro para a minha droga. Por que não conseguimos reverter essa situação, por que os bancos escolares, quando ofertados como devem ser, não conseguem inibir tal situação?

Sei que, na semana em que o mundo assistiu estarrecido ao terror do pretenso direito de matar para vingar a questionável desonra de imagens sagradas, este fato corriqueiro talvez não merecesse o meu artigo da semana. Mas há algo que me parece comum nessas duas situações: a certeza de que se pode matar, porque a civilização é uma utopia.

(Analice Martins)

A foto que não explicou o fato

A foto publicada na capa do jornal “O Globo” no sábado passado, dia 3, quis dispensar explicações no texto que a acompanhou. A manchete dizia “Serra Pelada no Arpoador”. Os primeiros dias de 2015, no Rio de Janeiro, têm sido insuportavelmente quentes. Nada mais justo e democrático que as praias cariocas sejam invadidas por banhistas sedentos do prazer de se refrescarem à beira-mar, acompanhados ainda da quase inigualável beleza do pôr-do-sol, entrevisto da praia do Arpoador na Zona Sul. Um espetáculo sinestésico, convenhamos!

Aparentemente, nenhuma novidade nesse cenário que não sejam as transformações por que vem passando a sociedade brasileira nos últimos dez anos: fortalecimento da moeda nacional, oferta ampliada de educação, acesso das classes menos favorecidas a bens de consumo e sua consequente mobilidade territorial e simbólica.

Ainda que relativizemos cada um dos fatores mencionados ou que questionemos – com razão – um enganoso “empoderamento” das classes C e D, não podemos ignorar que a segregação em espaços marginalizados se desfez e que isso deve ser saudado. No Rio de Janeiro, as estações de metrô de Ipanema e Copacabana não só permitiram que os residentes nessas áreas pudessem se valer do transporte público para o trabalho no centro da cidade, por exemplo, como permitiu a reterritorialização de espaços públicos tratados como exclusivos de uma minoria. Refiro-me às praias da Zona Sul carioca em especial, mas também às ruas, às praças, à Lagoa Rodrigo de Freitas etc.

A chegada do metrô a Ipanema em 2009 intensificou essa sensação bairrista de posse das praias e impôs uma dinâmica de circulação e de entendimento dos usos possíveis dos espaços públicos que sugerem mais o confronto do que a inserção desejada. A evocação saudosista deste território de outrora parece-me ter sido a intenção explícita, embora não verbalizada por escrito, da foto a que me refiro, além da visão preconceituosa que me pareceu carregar.

No jornalismo informativo, tudo deve ser explicado, rezam os manuais de redação. A ausência de qualquer referência ao espaço geográfico de Serra Pelada, no Norte do país, da corrida desenfreada atrás do ouro prometido no garimpo selvagem e assassino é fato sem dúvida conhecido, documentado e até vertido para o cinema, mas é datado. Portanto, deveria ser contextualizado para que indistintamente fosse compreendido por leitores de qualquer faixa etária e condição sociocultural. Quando o jornal suprime a contextualização, cria a expectativa do pressuposto, que gera o compartilhamento de ideias, ou a inferência, que se abre para análises variadas.

A foto em cores pareceu monocromática. É marrom. Um esmaecimento do tom terracota. É meio ferrugem. Dependendo do horário, da luz natural e do ângulo em que foi tirada, talvez seja “autêntica”, mas, em tempos digitais e de photoshop, não me arrisco a nenhuma afirmação contundente.

A aproximação cromática ao garimpo de Serra Pelada é atributo insatisfatório para dispensar as analogias necessárias ao desenvolvimento da matéria, por mais que seja a única justificativa que, imagino, o jornal daria, se interpelado. Com isso, as intenções implícitas do jornal passam para o primeiro plano do interesse analítico. O que o jornal “O Globo” não disse explicitamente? Por que tentou camuflar o preconceito com a imagem muda?

Serra Pelada foi terra de todos. Logo, de ninguém. De migrantes de todas as partes do Brasil, de forasteiros, de estrangeiros. Serra Pelada pode ter sido vista como uma espécie de Eldorado, mas foi sobretudo o dantesco, o inferno dos desmandos e da barbárie.

Ao optar por não contextualizar a informação “Serra Pelada”, por não explicar as razões da comparação com a atual territorialização da Pedra do Arpoador, ao fazer parecer que o calor seria quase a única razão da analogia, o jornal (a mídia, em geral) revelou todas as suas intenções e também os seus preconceitos em relação à “natureza roubada”, ao bairro invadido, ao paraíso decaído, coisas desse gênero.

O marrom de Serra Pelada usado para representar o cenário atual do Arpoador e de suas cores sempre vibrantes deveria ter sido explicado com coragem e limpidez, sem subterfúgios metafóricos e sem subentendidos preconceituosos. Afinal, a foto, no jornal, não serve para explicar o fato?

(Analice Martins)

Quando a imagem inventa a realidade

Sobre o filme “O abutre” (“Nightcrawler”, no original), de Dan Gilroy, muita coisa pode ser dita. São muitas as perspectivas pelas quais essa recente produção pode ser analisada. Filme bom é assim, não pode se render a um reducionismo crítico. Tem que ir além das nossas primeiras impressões e tem que ficar ali nos perseguindo em imagens e cenas, coagindo-nos a dizer alguma coisa.

A trama narrativa apresenta a curiosa inserção do personagem Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) no mercado negro das informações e das imagens sensacionalistas para telejornais locais nos EUA. Ambientando em uma noturna e soturna Los Angeles, estrategicamente fotografada por Robert Elswit, a história progride de forma assustadora. O desempregado Louis se vale de expedientes escusos para sobreviver e, desde o início, não esconde a faceta doentia e cruel na obstinação do reconhecimento, mais do que da própria sobrevivência. Logo em uma das primeiras cenas, o personagem diz a que veio. Surpreendido roubando arame de uma cerca, aparenta frieza e cinismo para, em seguida, matar a vítima e roubar seu relógio. Esta cena inicial desenha, sem concessões, o personagem.

Homem metódico e solitário, sem escolaridade formal, desempregado e abastecido de informações da internet, entra no mundo das imagens sujas e sangrentas, captadas por “freelancers” que vendem, sem escrúpulos, o seu ineditismo para telejornais sensacionalistas disfarçados de bom mocismo, mas acorrentados à disputa pelos índices de audiência de um público igualmente interessado na “notícia fresca”.

Munido inicialmente de uma câmera amadora e de um rádio de polícia num carro velho, Louis cria estratégias inteligentes, acrescidas de ousadia e oportunismo patológicos, para chegar antes aos locais de acidentes, assaltos e tragédias. De preferência sangrentos. É com a desenvoltura dos grandes estrategistas que chega ao universo das emissoras, vendendo de forma amadora as imagens captadas na rua. O discurso que utiliza para explicar suas ações é repleto de clichês de empreendedorismo barato que só reforçam a ácida crítica que o filme, como um todo, faz da sociedade impregnada da “fome do real”, de que fala a pesquisadora Beatriz Jaguaribe, em “O choque do real”. Uma sociedade refém das imagens que fabrica e que devem ser, sobretudo, hiper-realistas para provocar uma impressão de realidade mais eficaz do que o próprio sangue.

É nessa teia sensacionalista e espetacularizada, que transforma a vida em um filme de ficção, ainda que ancorado em um discurso de pretensa veracidade, que se abre a sórdida relação entre mídia e sociedade. Talvez muito mais do que isso. Entre as imagens e a realidade fabricada por elas, das quais somos todos reféns. A busca desenfreada pela imagem que hiperdimensione a realidade não cumpre apenas a necessidade da informação transparente e direta. Essa é uma condição menor no filme de Gilroy. O telejornalismo denunciado pelo filme, magistralmente nos limites da (in)verossimilhança, é um mundo em que a velocidade da tecnologia, mais do que a potência do motor do carro de Louis, encurta as distâncias.

Quando percebe a dinâmica deste funcionamento e se depara com a cúmplice ideal, Nina (Rene Russo), a veterena editora de telejornais, ambiciosa e de ética duvidosa, Louis entende a lógica do mercado negro das imagens que engendram a realidade. E dele se torna um exímio criador, forjando, mexendo nas cenas dos crimes, antecipando-se à polícia na captura dos fatos (no caso, das imagens), roteirizando trajetos e movendo personagens como se fosse o diretor de um filme de ficção.

Talvez essa seja a melhor definição de “O abutre”: um filme sobre a potencialidade da criação ficcional, vislumbrada pelo ângulo comprometedor da edição das imagens. Onde a realidade? Onde a ficção? Quais as fronteiras que as distinguem em uma sociedade que se quer refém das torrentes de imagens? Nesse ponto, o foco do diretor é certeiro.

De um ponto de vista psicanalítico, o filme pode render boas análises sobre o comportamento psicopata do personagem, sua cegueira em relação ao outro, seu comportamento inescrupuloso. Já de um ponto de vista sociológico, desnuda-se a lógica mercadológica, ditando as regras do mercado de imagens que sacia a “fome do real” de uma sociedade afundada na sua incapacidade de discernimento ético. Mas é pelo ponto de vista da Teoria da Literatura que o filme se mostra mais inteligente e perspicaz. Ao diluir intencionalmente as fronteiras entre realidade e ficção, ao fazer da imagem a coisa em si e fabricá-la segundo a ótica de um “narrador”, “O abutre” diz mais do que a sanha pelas carnificinas contemporâneas. Subverte a servidão da imagem jornalística ao fato real e aponta para a liberdade criativa que a imagem (seja ela produzida pela máquina, seja pela palavra) tem sobre a realidade.

É isso: a imagem pode inventar a realidade.

(Analice Martins)

As varinhas do Natal

 

Talvez seja com algum atraso que eu faça esse comentário sobre as varinhas, mas confesso que não as vi no início deste ano. Nem me lembro se as “selfies” já eram a febre que são no momento. Sem redes sociais, sem iphone e com celulares bem modestos, talvez não tenha me dado conta de que, além da prótese, como diz um amigo meu, que todos (alguns mais do que outros) carregamos no dia a dia, agora há também a varinha acoplada a celulares e máquinas fotográficas que as pessoas empunham na busca obsessiva da autorrepresentação espetacularizada.

Confesso que tomei um susto, nesse meu primeiro fim de semana de recesso, fora dos muros do IFF e da UENF, quando vi, em Búzios, casais e grupos andando com o que julguei desavisadamente ser uma antena. Ledo engano. A varinha agora forma uma trindade com os celulares e as redes sociais.

Alguém há de argumentar que os tripés sempre existiram, auxiliando os viajantes solitários e dispensando o incômodo de solicitar a estranhos ajuda para uma foto. Mas eram fixos, deveriam ser colocados, o “time” do clique programado e o enquadramento suposto. Como tudo que é sólido e fixo já se desmanchou no ar e vivemos o império da mobilidade e da velocidade, varinhas, que imagino se chamem suportes para “selfies”, asseguram a independência dos fotografados, o melhor ângulo, os sorrisos e poses milimetricamente estudados para a subsequente narrativa de si articulada pelas redes sociais.

Fora dessa dinâmica, para muitos, a vida parece inexistir. Em épocas festivas como o Natal em que o congraçamento é a palavra de ordem, acho tudo muito cansativo. Não há como conversar, procurar saber do outro que está ao seu lado, nem comer em paz os quitutes de tantas confraternizações, pois o registro fotográfico e a sua narrativa instantânea e espetacularizada interrompem a naturalidade de qualquer evento. Poses, poses, poses. Flashes, flashes, flashes. De muitas máquinas e celulares. Muitas vezes e em busca da “selfie” perfeita.

Em recente reunião de fim de ano, mal consegui provar as delícias oferecidas, tantas eram as fotos. Como não vejo nenhuma depois, já que sou “out” total, a menos que me enviem alguma delas por email ou me interrompam novamente para mostrar, na tela, a vida nossa de cada dia, fico muito amuada em período em que o OUTRO deveria ser, para os que se dizem cristãos, a razão maior do encontro. Reúnem-se para quê? Quase não vejo ninguém conversando, é um senta-levanta interminável para as fotos.

Sempre supusemos que a fotografia e a imagem em movimento fossem o registro mais fidedigno da respiração de nossas vidas. Não creio que tal função ainda se sustente. A obsessão documental e expositiva interrompe a pulsação normal da vida, inventa um outro tempo, outros cenários e situações, e as fotos têm que cair na rede para saciar a sanha de si mesmo. O outro é um acessório.

Do ponto de vista sociológico e da estetização da vida, tudo isso me interessa muito. Já me questionaram, entretanto, como posso orientar pesquisas que tratam desses fenômenos, como redes sociais, blogs e internet, se não sou uma usuária de “verdade”. Ou seja, como posso falar de facebook, se não tenho um perfil, como podia falar de blogs se não tinha um até dois anos atrás? Acho que nada disso me desautoriza. Os usuários, quase sempre absortos e sugados pela dinâmica dos usos, nem se percebem, não se veem, cegam-se diante do fascínio da comunicação instantânea e enredam-se na teia das narrativas de si mesmos, fabulam para si personagens com que querem vestir-se na vida real. É quase desconcertante o abismo que às vezes separa o ordinário do cotidiano do mundo fictício que todos passam a habitar.

Sei que esse texto está muito rabugento para as celebrações natalinas, mas é porque, nesse período mais do que em qualquer outro, as pessoas deveriam querer ver além de si, darem-se ao encontro, ver no OUTRO o outro e não a si mesmos.

Desejo a todos um Natal com menos flashes, menos poses, menos próteses e menos varinhas.

(Analice Martins)

A pouca relevância do cinema nos dias atuais

Em entrevista ao jornal O Globo recentemente, o diretor e roteirista Jorge Furtado declarou que o cinema perdeu muito de sua importância como forma de pensar a realidade social. O aclamado diretor de “Ilha das Flores”, “Meu tio matou um cara”, “Saneamento básico”, “Mercado de notícias” e também de programas para TV, como “Doce de mãe”, não hesitou em sublinhar a perda da relevância do cinema contemporaneamente.

Embora essa declaração tenha me incomodado bastante, Furtado me fez desdobrá-la em dois sentidos: como linguagem de reflexão e como evento da imagem. No primeiro caso, o cinema, como linguagem nascida na cultura de massa, não tem conseguido se descolar da lógica mercadológica que lhe imputa temas, pasteurizações, banalidades, estética clipada, imagem hiper-realista, fazendo com que muitos filmes valham por um só, impondo aos espectadores (ou seria melhor dizer público consumidor?) um reme-reme entediante, descartável, replicável e estéril. Filmes que rendem milhões de bilheteria, mas que, ao final, só guardam o sabor enjoativo da pipoca.

Isso não é papo de esteta da linguagem afeito apenas a experimentalismos. É quase um truísmo, um senso comum.  Não fica nem um fiapo de história que valha um chope, que dirá uma insônia, uma aceleração taquicárdica, um incômodo. Não é com saudosismo apenas que Furtado identifica esse vazio criativo, é com desencanto mesmo, como algo que perdeu sua significação anterior e não ganhou outra que possa sinalizar, com raríssimas exceções, uma progressão qualquer.

Por que entretenimento, penso eu, tem que estar apartado de reflexão? Entreter-se é empenhar o tempo em algo, é investir o tempo em alguma coisa que nos chame a atenção. A indústria do entretenimento, porém, passa bem longe desses significados etimológicos. Para ela, cinema é a maior diversão. E só isso. A alegação de que a realidade já é pesada demais para que destinemos nossas horas de descanso a alguma reflexão é enganosa e pervertida. Pois é justamente quando podemos nos entreter que aumentamos nossa capacidade de entendimento, de fruição e alargamos nossas fronteiras perceptivas. Quando saíssemos do automatismo de nossas rotinas, deveríamos procurar algo que nos afetasse e que nos engrandecesse a fim de que voltássemos renovados às nossas máquinas diárias dos tempos pós-modernos.

Jorge Furtado evoca Truffaut, Godard, Scorsese, Resnais como cineastas que procuravam pensar o mundo e cujos filmes eram aguardados como se fossem nos explicar a vida e suas dinâmicas. O cinema de autor morreu? O que lhe sucedeu? Linguagens autômatas, reprodutíveis, homogeneizadoras e insípidas?

É como “evento da imagem”, no entanto, que a perda da relevância do cinema me parece mais doída e perigosa. A proliferação e a capacidade de armazenamento de imagens nos dias atuais nos tornam falsamente seguros. Cremos que o evento em si – o aqui e agora da projeção, a entrada na sala escura do cinema – não imponha nenhum rito. Entramos sem reverência e com a certeza da reprodutibilidade de toda e qualquer imagem. Nada que nos detenha demais a atenção, porque tudo entraria, de antemão, na esfera do “já guardado”.  Mídias que guardam e reproduzem aquilo que antes se dava como evento quase irreprodutível e inacessível. Vimos ou não vimos. Isso com certeza fazia do cinema uma verdadeiro entretenimento. Um máximo de concentração e entrega para que nossas memórias pudessem guardar aquelas imagens que diziam o mundo naquele único episódio da sessão. O máximo que se conseguia era ir a várias sessões, mas os filmes não ficavam ao alcance de nossos olhos e sentidos. Ou eram introjetados  em nossos sentidos e cognição ou se perdiam para sempre e, com eles, a leitura do mundo que o diretor nos ofertava de maneira singular.

Longe de mim fazer um discurso escatológico e detrator da democracia de acesso às imagens a partir de qualquer controle remoto, dispositivo de armazenamento de mídia ou ainda do “tudo se acha da internet”. Não seria leviana a esse ponto. Mas lamento muito essa anulação da condição de “evento único” que um filme outrora nos trazia. Nossa percepção cognitiva e sensorial tinha que se apurar para que não desperdiçássemos aquela ocasião.

Assim como podemos nos emocionar encontrando na internet ou em um canal de tv a cabo aquele filme que nos estremecera e que fora nosso maior entretenimento, podemos também desfazer o sabor do momento inaugural e aurático. Tenho filmes em DVD que comprei quando ainda se comprovam DVDs, a que assisti uma única vez no cinema e que me marcaram tanto, como linguagem reflexiva (o que não exclui o humor e a irreverência) e como ressignificação do mundo, que nunca quis ver em outras telas. Comprei e guardei. Talvez os veja em algum momento quando minha memória estiver embranquecendo e as imagens sumindo na estrada da imaginação.

O excesso de informações e de imagens de nossos dias atuais nos faz perder a capacidade de concentração, de significação e de reflexão. A certeza de que poderemos “ver de novo” nos torna distraídos demais para a fruição estética. Não quero carregar filmes em pendrives, hds ou na nuvem. Quero tê-los visceralmente em mim. Carregá-los na memória.

Para fruir o prazer do texto (no caso, o cinema), como já nos ensinara Barthes, temos que imaginá-lo irreprodutível e irrefreável. Luz apagada, nenhum controle remoto a mão. Ação!

(Analice Martins)

Errâncias, exílios e literatura

 

Em Por outro lado (exílios), de 2014, a escritora francesa de ascendência vietnamita, Linda Lê, realiza, sob a forma de fragmentos ensaísticos, considerações sobre a condição dos estrangeiros exilados e refugiados, dos que estão em trânsito permanente, dos que pertencem a mais de uma cultura ao mesmo tempo, partindo de experiências da literatura.

Como exercício de reflexão, já que o livro ainda se encontra inédito no Brasil, experimento a tradução de alguns desses fragmentos:

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Toda literatura, sustenta Roberto Bolaño, em Entre parênteses, carrega nela mesma o exílio. Pouco importa se o escritor teve que partir aos vinte anos ou se ele nunca mudou de casa. Mesmo sem sair de nossas casas, não ignoramos o que o seja o banimento, a expulsão. A literatura de Kakfa nos ensinou suficientemente isso. A terra estrangeira, pergunta-se Bolaño, é uma realidade objetiva, geográfica ou, antes, uma construção mental em movimento perpétuo?  Não somos todos nós errantes, com sede de espaço, e que, segundo Maeterlinck, só crescemos à medida em que cultivamos os mistérios que nos oprimem. E qual seria o enigma mais insolúvel que este Outro que nos desafia e nos oferece um outro rosto como um livro a decifrar? Magnetizados pelo que talvez seja a nossa antítese, nós nos deixamos levar pelo irresistível charme do bizarro e do extraordinário, a fim de dar espaço àquilo que existe de limitado em nós.

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Para aquele que não tem mais pátria, a escrita pode tornar-se o lugar que ele habita, observa Adorno em Minima Moralia. Em estado de emigração, o escritor menos nostálgico faz a experiência de uma dupla desapropriação, já que ele não tem nem ponto de apoio nem centro de gravidade e sofre uma espécie de mutilação, impressão dolorosa que se fixa nele e que ele só consegue superar ultrapassando interiormente barreiras e fronteiras. Só no seu texto, ele se instala como se estive em sua própria casa. Ele só se sente à vontade em seus pensamentos  descabidos e quando coloca pelo avesso a sábia ordem do que nos é um abrigo, mas que pode também nos engolir. Ele só sente estima por ele mesmo quando se depara com a prova da estrangeiridade: é sob esta brilhante luz, se ela não o consumir, que ele progredirá no que lhe parece um aprendizado de si mesmo. Sua literatura carregará a marca do que Lukács chama o “exílio transcendental”, ela conterá visões transnacionais, ela dirá até onde é necessário não sucumbir às paixões gregárias, saber que nós somos todos exilados, desde que nós não nos agarremos ao orgulho nacional como uma âncora de saúde. Em Reflexões sobre exílio, Edward Said cita Huges de Saint-Victor, monge do século XII, que definia assim as diferentes atitudes diante do mundo: “O homem que pensa que sua pátria é doce é ainda um ingênuo novato; aquele a quem cada terra parece a natal já é forte; mas é aquele para quem o mundo inteiro é um espaço estrangeiro que é o perfeito. A alma ingênua se afeiçoou a um lugar do mundo; o homem forte estendeu suas ligações a todos os lugares e o homem perfeito não experimenta mais nenhuma ligação deste gênero”.

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Bertolt Brecht, em um de seus poemas, recusa que o chamem de emigrante porque dizia não fazer parte desses que partiram voluntariamente para “escolher livremente uma outra terra”. Não. Ele pertencia àqueles que fugiram, aos que foram expulsos, aos que foram proscritos, e o país que os recebeu, dizia ainda, não era uma casa, mas o exílio.

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Nossa época, lembra-nos Edward Said, “se caracteriza por uma situação de conflito moderno, por uma tendência imperialista e pelas ambições quase teológicas dos dirigentes totalitários”: vivemos a época dos refugiados, dos deslocamentos de populações, da imigração massiva. Cioran previa mesmo que ela seria aquela do romantismo dos apátridas: “Já se forma a imagem de um universo onde nenhuma pessoa terá direito ao pertencimento(…)Em cada cidadão dos dias de hoje germina um futuro homem desenraizado”.

(Analice Martins)

 

As cores no cinema de Almodóvar

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar acaba de receber o prêmio Lumière 2014 pelo conjunto de sua obra. Senhor de uma peculiaríssima linguagem cinematográfica, em que o uso de cores exuberantes sempre foi uma constante, Almodóvar publicou o seguinte depoimento, no jornal francês Le monde, no dia 9 deste mês de novembro. Por considerá-lo fundamental à compreensão de sua poética, além de comovente e visceral, traduzo-o abaixo:

“O cinema foi tudo para mim. Nasci nos anos 50 do século XX, um bom momento para o cinema, mas terrível para os espanhóis. Se eu tivesse nascido na América e se me chamasse Spielberg, me teriam oferecido uma câmera super 8 para que eu brincasse com ela. Na Espanha do pós-guerra, eu só tinha a minha própria vida e a da minha família para me iniciar no mundo da ficção.

A ficção, para mim, era o mundo do quintal de nossa casa, os vizinhos, minhas irmãs que aprendiam a costurar com suas amigas, os gatos, a matança dos animais, os ciganos, os cantores de flamenco que chegavam para os festejos do mês de agosto, o “twist”, um coelho esfolado, ainda pingando de sangue, pendurado debaixo da videira, a minha mãe que discutia com as vizinhas na frente da casa, na fresca, durante as longas noites de verão, comentando com elas histórias de incesto, suicídios (de pessoas que se jogaram no poço do quintal), ou ainda minha mãe e as vizinhas que cantavam lavando roupa na beira do rio.

A ficção para mim era tudo o que se passava na frente e atrás da grande tela do cinema ao ar livre, uma parede espessa, único fetiche ao qual eu permaneço fiel. Atrás desta parede branca pintada de cal, nós, os meninos, íamos fazer nossas necessidades. Mito e fisiologia: sem estar totalmente consciente disso, eu aprendia muito cedo o essencial.

A IMPOSIÇÃO DO PRETO                                                        

Minha mãe sempre foi o território onde tudo acontecia. Em 1987, eu lhe pedi para encenar um pequeno papel em “Mulheres à beira de um ataque de nervos”. Nós estávamos no camarim onde a figurinista lhe mostrava vestidos que havia escolhido, todos escuros. Eu estava na outra extremidade da sala, entretido com minhas ocupações. De repente, escutei minha mãe dizer à figurinista: “Eu não quero o preto, ache-me algo mais alegre”. E ela se pôs na mesma hora a lhe contar sua longa história com a cor preta. Eu escutava essa história pela primeira vez. Nunca antes eu ouvira minha mãe contá-la.

Quando estava grávida de mim, minha mãe só usava o preto porque, desde os três anos de idade, ela havia emendado um luto no outro. Tinha passado os trinta primeiros anos de sua vida vestida de preto. E ela não queria nunca mais usar essa cor, como dissera à camareira estupefata. Eu estava transtornado pelo que ouvia. Sequer imaginava que minha mãe vestia um luto imposto quando ficou grávida de mim.

Frequentemente evocam o uso que faço da cor em meus filmes. Para mim, isso sempre foi instintivo, nunca obedeceu a nenhum critério cinematográfico. Creio que eu procurava as cores do cinema da minha infância, o “technicolor”: as cores saturadas, brilhantes, impossíveis de serem conseguidas quimicamente nos laboratórios dos anos 80.

Depois da morte da minha mãe, eu comecei a dizer para mim mesmo que ela estava na origem das cores dos meus filmes. Eu adoro pensar que essa minha paixão pelas cores é a resposta da minha mãe a tantos anos de luto e de um negrume antinatural. Ainda que ela vestisse o preto quando estava grávida de mim, no seu ventre, germinava a vingança contra o sombrio monocromático imposto pela tradição.

Eu fui sua vingança. E espero tê-lo sido à altura. Faz trinta e cinco anos que eu tento ser, com todo o meu amor, essa vingança”.

(Analice Martins)

Cartografias

EM RENNES, cidade do noroeste da França, participei de um colóquio acadêmico chamado “Cartografias literárias do Brasil atual: espaços, atores, movimentos sociais”. Rara oportunidade de reunião de pesquisadores da literatura brasileira contemporânea de várias partes do mundo. Oportunidade também de perceber como nossa produção literária recente, dos anos 90 para cá, tem circulado na Europa, em especial, e de que forma tem sido discutida. Ainda que pareça estranho sair do próprio país para discutir sua literatura, há nesse deslocamento muitas vantagens que dispensam uma perspectiva ex(ótica). Olhar de fora não é necessariamente ter uma mirada eurocêntrica e colonizadora. Vivemos tempos pós-coloniais, globalizados e multiculturais. Nenhum estudo localista se sustenta sem a necessária intersecção com o discurso da alteridade. O MESMO deve refletir o OUTRO.

O colóquio estava estruturado em dois grandes eixos, subdivididos por sua vez: “O Brasil conjugado ao presente” (“Discurso, Nação e Etnia”; “Discursos da Memória Recente”) eTopologia imaginária do espaço brasileiro” (“Novas formas simbólicas do urbano”; “Lugares emblemáticos do espaço brasileiro”). Havia pesquisadores de todas as partes do Brasil: Pará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás, Brasília. E de várias universidades europeias e americanas: Bordeaux, Paris, Rennes, Nantes, Toronto. Entres os autores cujas obras foram analisadas, estavam: Milton Hatoum, Luiz Ruffato, Michel Laub, Tatiana Salem Lévy, Adriana Lisboa, Teixeira Coelho, Rubem Fonseca, Marcelino Freire, Ronaldo Correia de Brito, Lourenço Mutarelli, Rodrigo Lacerda, Joca Terron, Bernardo Kucinski, Paulo Scott, Ferréz, Paulo Lins, Wally Salomão, Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Adélia Prado, Ana Miranda. Eis um mapeamento topográfico e nominalista. Não caberiam, nessas breves linhas, “mon récit” e os relatos de espaço que gostaria de lhes fazer com a intenção de cartografar o colóquio.

Saí de lá com a certeza de que há qualidade no olhar “de fora” sobre a nossa literatura; de que há jovens estudantes interessados nela e em suas dinâmicas linguísticas e sociais; de que a interdisciplinaridade é fundamental para o estudo da literatura para que não nos marginalizemos em um fosso de estranheza e de que o casamento da geografia com a literatura (disso eu já tinha certeza anterior) é interessante linha de pesquisa para que se ultrapasse o reducionismo de pensar as categorias de espaço, lugar e território apenas como cenários da ficção. São antes mediações discursivas, simbólicas e subjetivas entre a sociedade e a natureza. Algo que a geografia cultural vem trabalhando com desenvoltura.

A 70 KM DE RENNES, localiza-se o Monte Saint-Michel e sua inacreditável abadia. Cercado por uma baía sujeita ao fenômeno das marés, o que lhe confere uma aura fascinante, é também conhecido como a “Pirâmide dos mares”, a “Jerusalém celeste”, o “Farol da Cristandade. Confesso que gosto mais do primeiro epíteto, embora não o tenha visitado na maré cheia. Essas cidades de pedra, erguidas na Idade Média, ou mesmo na Antiguidade Clássica, me espantam. Fico tentando entender a engenharia que as ergueu e as mantém de pé. Uma perfeita apropriação do espaço. Durante a Guerra dos Cem Anos, funcionou como uma fortaleza inexpugnável contra os ataques ingleses. Um lugar está sempre sujeito a muitas (re)ssignificações.

PARIS, a Cidade Luz, continua linda, babilônica, explosão de dialetos, acentos, fluxos acelerados e nervosos, caleidoscópio de informações. Paris também cansa, é preciso um ímpeto semiótico para decifrá-la, pois é palco de uma “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau.

Li de um colunista de viagens no jornal “O Globo”, ainda no Brasil, que cada vez mais ele se dedicava a conhecer menos lugares. De vários países a algumas cidades, uma cidade, um bairro, uma rua. Não achei pernóstica a consideração. De fato, é para quem pode ou quem tem um afã antropológico e quer se perder na alma encantadora das ruas.

NO MARAIS, fiquei também a primeira vez que estive em Paris em 2009, mas o “quartier” não me pareceu tão movimentado quanto agora. Talvez eu estivesse com a alma mais bucólica. Abri o “plan de ville”. É diferente de “carte”. Tem um aspecto menos estático e linear, é mais performático do que pedagógico, mais “parole” (discurso) do que “langue” (língua). Tracei meus percursos: le Marché Les Enfants Rouges, le Carreau du Temple, le village Saint Paul, mas fui me perdendo no emaranhado de ruas do antigo bairro judeu que agora goza do status gay friendly. Pareceu-me bem menos gay do que em 2009. Conheci o Forum des Images Les Halles e a Bibliothèque du Cinéma François Truffaut. Aproveitei para assistir “Mommy”, de Xavier Dalon, que deve concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro, e “Love is strange”, de Ira Sachs. Imagino que ambos ainda não tenham chegado ao Brasil. Não resisti a uma exposição fotográfica sobre a cidade de Paris: “Champ et hors champ”. Depois de já ter passado por três livrarias, deparei-me com um salão de editores independentes, intitulado “O Outro Livro”. Perdição total. Saí de lá conhecendo a editora “Asfalto”, pela qual estão traduzidos Paulo Lins e Edyr Augusto, e a “Anacaona”, dedicada inteiramente à literatura brasileira, com as coleções “Terra” e “Urbana”.

Por fim, sem ter ainda chegado às margens do Sena para rever a Torre Eiffel, comprei dois livros aos quais estou agarrada, pois expressam intimamente as razões da minha viagem à França desta vez: Por outro lado (exílios), de Linda Lê, uma escritora francesa de ascendência vietnamita, e Bairro, de Philippe Claudel, sobre os quais escreverei em outra oportunidade.

(Analice Martins)

The Oscar goes to

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho

A premiação anual da Academia americana de Artes e Ciências Cinematográficas talvez não seja a mais relevante, mas com certeza é a mais célebre mundialmente e a mais atrelada ao “mercado da imagem”. É, portanto, objeto de desejo de diretores, roteiristas, atores, figurinistas etc. Dividida em categorias que contemplam as várias dimensões da produção audiovisual, tal premiação, desde 1957, oferece uma condecoração aos filmes produzidos em língua estrangeira e fora dos EUA. Esta categoria é conhecida como O OSCAR DE MELHOR FILME ESTRANGEIRO, por mais que nela, quase sempre, vençam os filmes que de alguma maneira traduzam as expectativas do olhar americano sobre as realidades culturais à sua volta.

Produções brasileiras já concorreram em várias edições e em várias categorias. Em quatro delas, estivemos entre os cinco indicados a MELHOR FILME ESTRANGEIRO: O pagador de promessas (1963), de Anselmo Duarte; O quatrilho (1994), de Fábio Barreto; O que é isso, companheiro? (1998), de Bruno Barreto e Central do Brasil (1999), de Walter Salles.

Para a edição de 2014, o Ministério da Cultura, por meio de uma comissão de especialistas, selecionou, entre 18 concorrentes, Hoje eu quero voltar sozinho, do diretor e roteirista Daniel Ribeiro, para representar o Brasil. Os indicados de fato, pela Academia, serão conhecidos no dia 16 de janeiro de 2015, e a 86ª cerimônia oficial se realizará no dia 2 de março.

Daniel Ribeiro tem 32 anos. É também o diretor dos curtas Café com leite (2007) e Eu não quero voltar sozinho (2010). Pelos dois, foi premiado em vários festivais nacionais e internacionais. Hoje eu quero voltar sozinho é seu primeiro longa e, tomara, tenha vida longa! Recebeu, em 2014, o prêmio da Federação da Crítica Internacional, na seção Panorama do Festival de Berlim, além de ter ficado em segundo lugar na escolha do público no mesmo festival. Não pretendo fazer um histórico dessas premiações. Gostaria apenas de levantar algumas impressões sem pretensões de especialista – que não sou – no assunto.

Nos filmes até então indicados pelo Brasil, já que nesta categoria não há livre inscrição, todos privilegiaram uma temática localista: o sertão, o sul do Brasil ou a história política da ditadura. Todos sabemos que temáticas só se sustentam a partir da linguagem que lhes dá existência. No cinema, esta análise envolve a imagem captada pelas lentes do diretor, editada e produzida pela tecnologia, o som acoplado, a escolha dos planos e frames, a opção por uma câmera parada e centralizadora ou uma na mão, além de tons e cores. A linguagem audiovisual tem uma sintaxe híbrida e complexa, uma engenharia própria. Talvez, por isso, seja aquela que tenha, segundo o teórico Christian Metz, o maior índice de realidade. Ou seja, a que consegue nos ludibriar com sua arte ilusionista e nos fazer quase crer que estamos diante da realidade “em carne viva”. Seu poder de atualidade (de tornar presente a matéria passada) nos faz esquecer as barreiras temporais e espaciais, fazendo-nos imergir no filme como se atravessássemos um túnel do tempo.

Para que um filme funcione, deve ter uma linguagem que o sustente e o coloque de pé. Então, se Hoje eu quero voltar sozinho ficar entre os cinco indicados pela Academia, não o será por qualquer temática outsider. Aliás, nem o Festival do Rio distingue mais a categoria “Gay”. Prova de uma política identitária sem guetificações. O fato de o filme de Ribeiro narrar também a descoberta da homossexualidade na adolescência, somada à condição de cegueira do protagonista Leo (Guilherme Lobo), um estudante do Ensino Médio, não é mais significativo do que a universalidade da adolescência e seus conflitos nos ambientes familiar e escolar: a mãe superprotetora de Leo e a mãe falecida de Gabriel (Fábio Audi), o rapaz por quem Leo se apaixona; as figuras paternas camaradas; a amiga apaixonada; o colega implicante e sarcástico, as aulas; as festinhas; os primeiros porres; o primeiro beijo.

Ribeiro opta por “uma estética da delicadeza” já presente em Café com leite, que, longe de parecer idealizada e fora da realidade, seduz o espectador a também querer para si a delicadeza do afeto, do companheirismo, da proteção. Opta, em especial, pela não “indexação” do cotidiano urbano, com ruas sem movimento, carros estacionados, calçadas vazias, ausência de elevadores e a possibilidade de se ver a lua da praça, na linda metáfora do eclipse que explica o triângulo amoroso entre Leo, Gabriel e Giovanna (Tess Amorim). Até o assunto a ser pesquisado na aula de História, em duplas de meninos ou de meninas, fato que aproxima Leo e Gabriel, excluindo Giovana, refere-se à Antiguidade Clássica. Também clássico é o gênero musical preferido por Leo. A música como linguagem não territorializada, assim como os anseios de liberdade, descobertas e afirmação do rapaz cego que não quer ser um excluído nem dimensiona sua homossexualidade como um traço de diferença. O filme é apenas a história de qualquer um, de todos nós.

Dirigido com a mão firme da delicadeza, sem excessos, nem gorduras narrativas, conciso e intenso, como devem ser os textos líricos, as imagens falam por si mesmas, como na cena em que Leo se veste com o moletom de Gabriel, esquecido em sua casa, e se aquece com o corpo e o abraço imaginados do amigo. O longa, cujo título risca o “não” presente no título do curta, é um SIM à vida, belamente endossado tanto pela imagem final de Leo conduzindo a bicicleta de Gabriel, em pé em sua garupeira, rompendo suas limitações, quanto pelo verso da canção “Janta”, de Malu Magalhães, que pontua o filme: “Eu ando em frente por sentir vontade”.

(Analice Martins)