Quando a realidade engole a câmera

O documentário é um gênero audiovisual que pretende captar a realidade em seu estado bruto, sem a mediação de atores, cenário ou vestimentas. Esta estratégia finge abolir o enquadramento da câmera, as intenções do diretor, colando-se no entorno para decalcá-lo e nos devolvê-lo em imagens e sons desprovidos de maiores interferências. O documentário é também um gênero que visa à exploração investigativa da realidade, seja ela social, política ou mesmo pessoal e subjetiva.

Este princípio estruturante é, no entanto, falacioso, como bem sabemos, pois o enquadramento da lente, os ângulos escolhidos, a tomada de sequências e closes funcionam como molduras que recortam a realidade palpável e a reconfiguram na necessária edição, que é condição operatória de qualquer arte, mesmo aquelas com propósitos documentais. Ainda que o diretor filme sem interrupções e sem intervenções, o que foi filmado deixa sua condição objetal para se transformar em imagem. Não se trata mais, portanto, da realidade, mas de sua representação, como na caverna de Platão.

Tal processo, então, fabrica o real, valendo-se do mesmo princípio estruturante dos filmes de ficção que, por vezes, parecem mais reais do que documentários com a mesma temática. Cito, por exemplo, o documentário “Tiros em Columbine” (2003), de Michael Moore, em que o diretor, a partir de entrevistas, imagens de arquivo, vídeos institucionais, sequências de animação, procura entender a fascinação dos americanos por armas de fogo, sua venda legalizada e as consequências nefastas desta postura armamentista para a sociedade americana. O documentário, qualquer que ele seja, apoia-se em testemunhos, mesmo que não haja falas.

O testemunho se ergue como a prova incontestável do fato. Um argumento de autoridade que dá credibilidade à argumentação que se constrói sobre determinado assunto. Imagens de arquivo e fotos também funcionam nesse sentido como elementos que capturaram o evento em tempo real e que, portanto, podem conferir autenticidade ao ocorrido.

Ser ficcional, ou seja, ter um caráter representativo e não apresentativo, não retira necessariamente da narrativa audiovisual sua plausibilidade, aquilo que Aristóteles, em sua “Poética”, nomeou como verossimilhança, ou seja, “as virtualidades criadoras”. Este estatuto das composições artísticas é tão eficiente, parece-me, quanto a pretensão de retratar a “verdade nua e crua”, pois ela pode ser indecifrável a olho nu sem as mediações de um enredo paralelo à história em si. A ficção não deve subordinar-se à realidade, pois não lhe serve obrigatoriamente de testemunho, mas bem pode elucidá-la, jogar-lhe luz e produzir o tão perseguido “efeito de real” que nossa sociedade contemporânea exige como condição de sobrevivência: a coisa real, o espaço real, o tempo real. Ora bolas, o real pode ser indizível e inapreensível.

“Elefante” (2003), de Gus Van Sant, é uma pequena joia rara. Um filme de ficção enxuto sobre a mesma temática de “Tiros em Columbine” que, sem as amarras sociológicas de um documentário, consegue colocar, com mais veemência que Moore, algumas questões possíveis para o entendimento do comportamento cada vez mais frequente dessas tragédias americanas: a facilidade de acesso às armas, os jogos eletrônicos simuladores dos tiros e da morte como mero entretenimento, o vazio das rotinas de alguns adolescentes, uma família ausente, tribos e “bullying”. A atmosfera de indagação sobre a tragédia consumada nas mortes da escola de Columbine ganhou no filme de Van Stan , creio, mais poder de nos afetar e fazer pensar do que na estrutura fílmica do documentário.

“Jogo de cena” (2007), de Eduardo Coutinho, traz à tona este embaralhamento entre realidade e ficção. Em um cenário minimalista, mulheres anônimas e conhecidas, atendendo a um anúncio de jornal, falam de suas vidas sem que consigamos discernir ao certo se as conhecidas como atrizes representam um papel ficcional ou se se apresentam autenticamente, se falam de si ou se falam como personagens. Em contrapartida, as anônimas não necessariamente são não-atrizes, mas o fato de não conhecê-las nos borra a visão e os ouvidos. Não sabemos se são elas próprias ou os seus papéis. Que importa? Tudo que é relatado é absolutamente crível, seja um relato inventado, fabricado pelo diretor/roteirista, seja um relato memorialista. Sem deixar de parecer verdadeiro, nada escapa da edição do ato de recordar e, depois, da câmera e da montagem.

Mas, às vezes, a realidade é intraduzível, seja no testemunho das imagens, seja no relato ficcional. Às vezes, a realidade avassaladora engole a câmera que procurava enquadrá-la, documentá-la para explicá-la. A realidade engoliu o documentarista Eduardo Coutinho, engoliu também o cinegrafista Santiago Andrade.

(Analice Martins)

 

Para o dia nascer feliz

A experiência de esquecer o celular em casa pode ser uma grande reflexão sobre o tempo. Afinal, carregamos, com esses smartphones ligados à internet, o mundo na palma da mão. Carregamos também todas as suas urgências, instabilidades, suscetibilidades e novidades. Talvez já nem saibamos mais como estar fora de tal sincronismo. Distância virou uma palavra a ser abolida dos nossos vocabulários, algo meio abjeto e anacrônico. É claro que esta constatação tem uma paga. Os tributos são altos.

Penso dessa forma, ainda que reconheça que um celular na bolsa pode obrar milagres, retirar-nos de situações quase irremediáveis, salvar vidas, encontrar vidas sob escombros, enfim, evitar ou contornar tragédias e, assim, interromper o que, antes, seria irreversível. Eu mesma, certa vez, fiquei presa em um elevador com minha mãe, minha irmã, minha sobrinha, à época, com uns dois anos e um tio. Quando o desespero começava a nos apertar, lembrei-me do celular na bolsa. Já lá se vão uns treze anos. Do outro lado da linha, outro tio, não menos nervoso, ligava para o corpo de bombeiros. No final, o alívio se misturava às risadas.

Ainda assim, peguei-me extasiada outro dia pela manhã em que esquecera dois aparelhos em casa e, passado o primeiro ímpeto de retornar, relaxei e gozei. Duas maravilhosas horas de desligamento em que o esquecimento do “aparelhinho da alegria” me conduziu à sensação de suspensão do tempo. Sim, eu prendera o gênio na garrafinha e me mantive longe de suas garras cruéis, absorta de suas imposições e embalada pelos versos de Chico Buarque: “Não se afobe, não. Que nada é pra já”.

Canto baixinho esses versos como uma espécie de mantra ou de rosário, crendo que sua repetição me salvará do “já”, o diapasão da vida contemporânea. Isso aqui não é papo de preguiçoso não, muito embora esteja escrevendo essas “mal traçadas linhas” em uma manhã de segunda com uma brisa fresca que vem do pontal de Atafona. É uma cachacinha que tomo às segundas de manhã, seja lá onde estiver, para aguentar o tranco depois até às 22h40min, quando saio de sala de aula, quase sempre feliz.

O fato é que essa portabilidade do mundo que smartphones promovem, considerada seu maior atributo, é também um despotismo para nossas rotinas. Podemos não atender às chamadas, não acessar a internet ou as redes sociais, mas ele fica lá como uma acusação de nossa alienação ou sumiço, como se fosse uma obrigação estar online.

O telegrama, o rádio, a televisão e o próprio telefone em suas versões fixas já representaram esse assédio informacional. Eu me sinto assim às vezes: estuprada pelo mundo. É contraditório, pois não sei viver sem um jornal. Em Campos, em que não encontramos a Folha de São Paulo, o Estadão, o Correio Braziliense ordinariamente nas bancas e, se não acorrermos a elas até às 11h mais ou menos, podemos vir a não ler nada, fico nervosa, ainda que possa ligar qualquer aparelho em casa e deixar que o mundo venha para minha cama ou para minha mesa de café da manhã.

Os celulares, no entanto, parecem-me a tradução mais exata da formulação de David Harvey sobre a pós-modernidade: a tal compressão espaço-tempo. Para mim, este é o verdadeiro mal-estar da civilização contemporânea. E, para fugirmos dele, precisamos nos esconder dos aparelhinhos. Estar sem eles, é, atualmente, uma experiência sensória radical, quase uma amputação de membros. É, no entanto, com tal ausência, que reaprendemos a olhar as pessoas, a ouvi-las, a encontrar soluções criativas, a dar ao corpo e à mente um compasso menos frenético.

Diz o ditado popular que a pressa é inimiga da perfeição. Mas quem se importa? A instantaneidade, a simultaneidade, a sobreposição de tempos, ou seja, esta espada do “já” virou nossa companheira inseparável. Ai de nós, caso não tenhamos prontidão, discernimento rápido, não saibamos fazer leitura dinâmica e digitar na velocidade da luz, arderemos no fogo do inferno.

Nesse contexto, smartphones são companheiros do imperativo da velocidade, esquecê-los quase nos gera culpa, temos que nos desculpar por isso, não podemos estar off line, nem usar a desculpa de que estávamos sem o sinal da operadora. O dia que relatei no início desta crônica, em que esqueci os celulares em casa (ato falho, dirão os psicanalistas de plantão), dei ao meu corpo e ao meu espírito uma viagem libertária, saltei para fora do tempo do “já” e cantei com Chico: “Não se afobe não…”.

(Analice Martins)

Shoppings e pertencimentos

Shoppings são, em princípio, lugares destinados ao consumo. Lugares de passagem provisória e pragmática, para onde se dirigem os movidos pelo desejo ou pela necessidade de compra. São lugares que, restritos a essa função, não seriam lugares identitários, ou seja, aqueles com os quais estabelecemos vínculos e com os quais, por alguma condição existencial, psicológica ou sociológica, criamos pertencimentos.

A partir do momento em que os templos do consumo massivo passam, cada vez mais, a agregar outras funções, tais como a alimentação (praças ou restaurantes); o entretenimento (teatros, cinemas, jogos); a atividade física (academias) e a estética (cabeleireiros, massagens, drenagens), deixam de ser lugares de passagem, sem vínculos fixos, para se territorializarem, ou seja, para os povoarmos como se fossem também as nossas casas, os nossos espaços de eleição. Nesse caso, conferimos a eles um sentido não apenas utilitário, movido pelos contratos de compras e serviços, mas de cultura e diversão, atributos também necessários ao espaço público que, em essência, é para todos, como por exemplo, a rua, a praça, a praia.

O antropólogo francês Marc Augé traz importantes contribuições a tal reflexão em seu livro Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Para ele, o conceito de “não-lugar” não está atrelado à não existência, ao que não existe, mas aos espaços com os quais não se estabelecem vínculos identitários ou de pertencimento, pois são apenas espaços de trânsito, de passagem, sem laços. Rodoviárias, aeroportos, hotéis, shoppings seriam exemplos de “não-lugares” em oposição aos “lugares antropológicos” como a casa e seus duplos (o bairro, a cidade).

Nada disso, no entanto, pode ser entendido sem uma perspectiva relativista que introduz questões que subvertem essas categorias. Por exemplo, em um mundo globalizado e veloz, de trânsitos nervosos e urgentes, a “casa”, como representação das raízes e das pertenças primeiras, acaba por ser apagada em proveito de outras estadas em que o anonimato e a despersonalização das relações são novas e desejáveis fórmulas de vínculo.

Para entender as dinâmicas sociais, é conveniente que, além dos nossos sentimentos de rejeição, estranhamento, preconceito ou mesmo repulsa, olhemos para além de nossos umbigos. A esfera pública pressupõe um convívio democratizado, aberto às diferenças e às múltiplas vozes. A esfera privada, voltada para o público – o que me parecem ser os shoppings -, não pode se furtar a tal exercício, sob pena de oficializarmos uma política segregacionista e enterrarmos de vez nosso já questionável mito fundacional da cordialidade.

Portanto, em época de rolezinhos – que não são arrastões –, devemos erguer nossos estados de consciência e não necessariamente muros policialescos. Quebra-quebra, furtos, depredação, algazarra, nada disso se justifica, sem dúvida. Mas é hora de entendermos que a democracia é um processo de territorialização, otimizado, agora, pelo poder das redes sociais.

O que nos soa invasivo e estranho, nada mais é do que o resultado das nossas territorializações. Ao entendermos o shopping como casa, ao desejarmos viver resguardados por suas paredes e tetos de vidro, não queremos aceitar que ele pode ser o trânsito de todos ou de qualquer um. Ao introduzirmos nele nossas sagradas horas de descanso, lazer e ócio, territorializando-o como a nossa casa, esquecemos que ele é para o público que não precisa de carteirinha para aí entrar. Para alguns, quem sabe, esta seja uma boa solução: fazer dos shoppings clubes de diversão e privacidade.

Vale lembrar, por último, que, talvez, o problema não esteja nos shoppings, na privacidade, na segurança ou na mobilidade das periferias, mas no que efetivamente entendemos por território.

(Analice Martins)

O amor está no ar (II)

Todos pretendemos conceber o amor como uma invariável universal cujas manifestações recorrentes atravessam séculos e espaços. Que seja! Mas isso não o deixa isento de subordinações culturais em que interditos e concessões são variáveis. “Além da fronteira” (2012), de Michael Mayer, é um “Romeu e Julieta” étnico e homoafetivo. Como no clássico shakespereano, a paixão é proibida. Neste caso, sobretudo por conflitos políticos e religiosos. O amor entre um palestino e um israelense, se literalmente atravessa fronteiras e cercas de arame farpado, não o faz impunemente.

O filme de Mayer tem pretensões politicamente corretas. Talvez isso o torne enquadrado e pouco impactante. “Além da fronteira” fica aquém como narrativa fílmica, ao tentar expor de forma didática todas as tensões envolvidas em uma relação em que o território é a identidade cultural maior que se carrega sem que se possa ocultá-la. Nimr (Nicholas Jacob) é um estudante de psicologia palestino, dividido entre o amor à família arraigada a valores religiosos e culturais e a sexualidade só vivenciada clandestinamente. A primeira cena do filme é real e simbólica ao mesmo tempo. A travessia escondida de uma cerca divisória dos territórios palestino e israelense, para ir a uma boate gay em Tel Aviv, demonstra a dura realidade política que também se ergue entre Nimr e Roy (Michael Aloni), o advogado israelense por quem Nimr se apaixona à primeira vista.

Se a relação amorosa entre os dois flui naturalmente e sem engasgos, com sexo afinado e trocas intelectuais, o entorno é bem mais assimétrico. Roy é abastado, mora sozinho e tem pais cultos e cúmplices. Ambiente familiar totalmente diverso do de Nimr. Aliás, a revelação de sua condição homossexual é bastante doída. A rejeição da mãe, até então amável e doce, é implacável. A obediência cega a valores religiosos e culturais não confere nenhum abrigo ao filho. Sua expulsão de casa é mais um elemento que reforça tabus e interditos.

Nem o passe livre para entrar em Israel, com a vaga conseguida na universidade de Tel Aviv, consegue reverter a situação. Se, por um tempo, o amor encontra um espaço mais acolhedor na casa de Roy e mesmo numa cidade mais cosmopolita, não tardam as sombras políticas que fazem com que Nimr seja investigado e vigiado como possível ameaça terrorista. Só o que resta neste cenário de opressão é a fuga, a tentativa desesperada de entrar na França e aguardar a chegada de Roy, que, enfim, depois de todos os esforços jurídicos para conseguir o amparo legal para a situação de ambos, concorda em deixar tudo para trás. Mas, como no clássico de Shakespeare, a felicidade é interdita. É, antes, apenas uma quimera.

“Tatuagem”, de Hilton Lacerda, melhor filme do Festival de Gramado em 2013, é, como disse o crítico de cinema Carlos Alberto Mattos, “talvez, o filme brasileiro mais hedonista e transgressor dos últimos tempos”. O crítico atribui este fato ao recuo cronológico. A opressão da ditadura militar em 1978 não conseguiu impedir a efervescência cultural e comportamental daquele momento. Sendo profundamente lírico e intimista, “Tatuagem” é também político ao extremo, mas não de forma esquemática como “Além da fronteira”. A ousadia e a consciência transgressora se refletem na vida comunitária do grupo teatral pernambucano “Chão de estrelas” que apresenta, em um cabaré da periferia, toda a efervescência da resistência à opressão, com números burlescos, provocantes, sensuais com direito ao escracho e ao deboche inteligentes.

Outras são as formas de viver e de se relacionar. Estão lá a maconha, o álcool, a literatura, o teatro, as discussões mais corriqueiras e as intelectualizadas, o amor, a solidão, o sexo, a dor e a alegria. Clécio (o formidável Irandhir Santos) é o líder deste grupo, seu guru intelectual, o mestre-sala das apresentações, homossexual assumido, pai zeloso de um adolescente, com cuja mãe convive em harmonia. Até a chegada de Fininha (o não menos competente Jesuíta Barbosa), Clécio se relacionava com Paulete (Rodrigo Garcia), o travesti que é uma das estrelas do grupo. Arlindo, o Fininha, vem de um ambiente totalmente oposto à postura hedonista do grupo. Vive no quartel, serve ao exército e é incomodado por insinuações sobre sua possível homossexualidade. Filho de uma família pobre e castradora, namora a irmã de Paulete, que só vem a conhecer quando vai entregar-lhe uma carta da irmã. Lá se deslumbra com a atmosfera libertária do grupo e se encanta por Clécio. Encanto mútuo.

São lindas as cenas em que Clécio canta “Esse cara”, de Caetano Veloso, e o faz olhando nos olhos de Fininha. Talvez se fosse outro ator que não Irandhir Santos e outro diretor, a cena poderia até parecer piegas, mas é catalisadora e sedutora. Como a outra em que dançam juntos no primeiro contato de seus corpos ao som na vitrola, de “A noite do meu bem”, de Dolores Duran.

Também aqui não há final feliz para a história de amor entre Clécio e Fininha, embora o amor permaneça no ar, na atmosfera, nas cartas enviadas depois por Fininha. Concordo com Carlos Alberto Mattos mais uma vez: “ ‘Tatuagem’ tem o sabor das coisas vividas e sentidas até o osso”.

(Analice Martins)

O amor está no ar (I)

O amor que agora ousa dizer seu nome está mais do que no ar. Está onipresente nas telas de cinema. Não se trata mais de filmes de nicho ou de gueto, mas de uma estética universalizada e com muita visibilidade. Digamos: do armário para a sala sem restrições de público.

Seja lá por que interesse for (antropológico, sociológico, estético ou voyeurista), as produções cinematográficas com temática homoafetiva têm gozado de um status glamourizado e sem fronteiras, com direito a palmas de ouro e quiçá o tapete vermelho do Oscar. Refiro-me a quatro filmes em especial: “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, “Um estranho no lago”, de Alain Guiraudie, “Além da fronteira”, de Michael Mayer, e “Azul é a cor mais quente”, de Abdellatif Kechiche. Todos estruturados a partir do sexo desreprimido e visto como força vital das relações afetivas. Sem medo de ser feliz.

Há aproximações e distâncias entre os filmes em questão: os mais líricos, os mais engajados, os que soam panfletários, os com preocupações estéticas e não apenas temáticas, os com câmera na mão, os com ângulos fechados. Destaque sem dúvida para a produção brasileira, sem exageros ou nacionalismos, mas porque é obra que consegue reunir o pessoal e o político, o privado e o público, o dentro e o fora, sem esforço e sem esquematismos. Mas este e “Além da fronteira” ficam para o artigo da próxima semana.

“Um estranho no lago” talvez seja, para os reféns das americanas produções pasteurizadas, aquelas cuja previsibilidade dá sono e bilheteria, realmente estranhíssimo. Primeiro pelo cenário único: o lago e a sua vegetação adjacente. Diria até claustrofóbico, embora isso possa parecer paradoxal, tendo em vista a imensidão do lago que serve de encontro exclusivo para homens em busca de sexo com outros homens. O despojamento do cenário, com marcações de palco teatral, e dos corpos completamente nus, serve aos poucos personagens cujos perfis vão-se delineando em cenas repetidas de idas e vindas, durante poucos dias suficientes para o desenrolar de uma trama que envolve sedução, erotismo, muito sexo – a linguagem daqueles encontros fortuitos-, companheirismo, traição e mortes. Se a primeira parte do filme parece um tanto quanto monótona do ponto de vista do enredo, a segunda, depois do assassinato de um dos frequentadores do lago, ganha o ritmo de um “thriller” policial muito refinado. A relação entre Franck, que testemunha a morte do amante do sedutor Michel, seu algoz, vai bem além das questões que possam ser restritas ao âmbito das relações homossexuais. Questões de qualquer relacionamento: desejo, entrega, (des)confiança, ambiguidades, ética. Neste sentido, “Um estranho no lago” consegue um grande tento. Parte de um contexto aparentemente fechado, do “closet”, para a universalidade das relações e de seus sentimentos. O que mais perturba, talvez, seja tal opção narrativa: investir no particularíssimo para derrubar seus tabus, suas fronteiras, para mostrar o ordinário e o comezinho das relações. Não é filme de gueto: nem bibas, nem bofes; nem bichas, nem barbudos. Homens apenas, eretos em seus desejos. Ainda assim há de parecer, aos olhos virgens, muito estranho.

“Azul é a cor mais quente”, o mais badalado dos quatro citados, vencedor do Festival de Cannes em 2013, elogiado por Jeanne Moreau, um filme pós-Sarkozy, sem dúvida, são as sinceras confissões de uma adolescente, Adèle, a bela Adèle Exarchopoulos. Inquieta em seus desejos, entediada em sua rotina, insatisfeita em suas relações até então heterossexuais, vê seu mundo se colorir de sensações a partir do real e simbólico cabelo azul de Emma, a não menos bela Lea Seydoux, a jovem artista plástica por quem Adèle se apaixona. Vale registrar, de antemão, que há um travo amargo e bem realista nessas confissões, o que não deixa o filme cair na esparrela dos deste gênero. É com um azul exuberante que Adèle se veste no final do filme para ir a “vernissage” de Emma, para quem também foi modelo vivo e de que já está separada há três anos. O filme é gay, mas não é rosa. O azul é uma cor mais quente sem dúvida.

Alvo de polêmicas, seja pelas longas cenas de sexo, com suor, rubor, exaustão, além de gemidos audíveis e críveis, seja pelas declarações de Lea Seydou sobre os métodos de filmagem de Kechiche, o filme é sucesso de público. Fui a uma sessão às 15h30min, em pleno domingo ensolarado do verão carioca, e não havia lugar sobrando. E são três horas de filme.

Se “Azul é a cor mais quente”, adaptação livre da “graphic novel”, de Julie Maroh, não traz nenhuma estranheza no roteiro, ou seja, trata-se do cotidiano de uma jovem secundarista da periferia parisiense, estudante de literatura e professora primária por desejo, cujos pais não têm grandes vislumbres intelectuais, nem por isso perde a força dramática. Suas atrizes são convincentes, seguem à risca uma estética de direção que privilegia o espontâneo, algum improviso, quer dizer, a fabricação da naturalidade cênica: pele e respiração sem maquiagens.

Em quase tudo, as referências de Emma são distintas das de Adèle, no que lê, no que conhece, no que come. Mas o sexo cria entre elas uma linguagem poderosa, quente, porém incapaz de sustentar a relação pelas contradições ou mesmo pela pouca maturidade de ambas. O fato é que a perda torna-se mais amarga quando a linguagem do sexo ainda continua a falar nos corpos que se separam.

“Um estranho no lago” e “Azul é a cor mais quente”, embora partam de roteiros aparentemente bem distintos, trazem, para tela, não apenas a nudez dos corpos de seus personagens, mas sobretudo a nudez das relações.

 (Analice Martins) 

Feito gente grande

Este é o título, em português, do filme francês “Du vent dans mes mollets”, versão do romance homônimo da escritora Raphaëlle Moussafir, que possui também uma adaptação em quadrinhos. “Feito gente grande” é um título que cria uma relação direta e denotativa com a trama desta comédia bem ao gosto francês, ou seja, aquela em que a comicidade é mais um modo de olhar a vida e de narrá-la do que um efeito das situações em si mesmas. Assim, desfilam pela ótica do olhar infantil, estratégia narrativa inteligentemente “gauche”, temas da vida nossa de cada dia: relações familiares, carências, traumas, sexo, alegrias e morte. Sim, a “indesejada das gentes” lá está como rito de passagem para um universo adulto mais veemente do que parece ser o significante metafórico – “Osvitch” – com que Rachel (Juliette Gombert) se refere ao holocausto em Auschwitz, cicatriz existencial do pai.

Neste sentido, o título em francês guarda com a versão cinematográfica uma relação mais alusiva e conotativa, embora não menos reveladora das intenções do enredo. “O vento que corre nas panturrilhas” de Rachel, quando pedala a bicicleta em direção à casa de Valèrie (Anna Lemarchand), ao saber de sua morte, é o incômodo de perceber que a morte, roubando de nós os afetos, impõe-nos ainda assim sua presença cruel na continuidade das coisas à nossa volta. A menina diz que o pior não foi se deparar com a ausência da amiguinha, mas notar que a vida continuaria sem ela, como o vento nas panturrilhas. Nesta cena, já quase ao final, o vento realiza o rito de passagem da inocência infantil ao império da lucidez do mundo adulto.

A cena de abertura suspende uma confissão só revelada ao final. Aliás, nada, no desenrolar da trama, leva o espectador mais absorto a desconfiar que Valèrie, portadora de uma doença cardíaca, um coração hipertrofiado, mas absolutamente saudável em suas traquinagens e alegria, selaria esta amizade infantil com a partida prematura. Na cena inicial, Rachel hesita diante de uma linda máquina de escrever, herdada de Valèrie, fato só sabido ao final, para escrever à psicóloga, como fora incentivada, seus medos e angústias. A pergunta crucial da carta, só referida também ao final do filme, sugere que a morte, ao esconder dos olhos a presença física de alguém, não por isso decreta sua inexistência para nós.

De forma mais linear, “Feito gente grande” focaliza a infância de Rachel, uma menina de nove anos, cujos pais se encontram em fase desinteressada do casamento, naufragados em seus cotidianos de trabalho e em seus cansaços. Soma-se a esse núcleo a avó materna, mulher que sempre manteve com a filha uma relação fria e dominadora. Rachel vê seus anseios e percepções se alargarem com a nova amizade estabelecida com Valèrie que, por sua vez, compõe o outro núcleo de personagens da história. Valèrie é desinibida, criativa, arguta. Oriunda de uma família menos arraigada a convenções, vive com a mãe desquitada e um irmão adolescente em uma casa mais livre e arejada. A cumplicidade de Valèrie com Rachel empresta a esta última novo olhar sobre suas inquietações: a professora loura que parece não lhe dar atenção, a colega de sala, linda, nobre e órfã, o clube da barbie, a opressão da escola.

Talvez fosse melhor dizer que Valèrie é o próprio rito de passagem de Rachel, o elemento que descortina um certo processo iniciático na vida da menina tímida e amedrontada. A psicóloga à qual a mãe Collete (Agnès Jaoui) leva Rachel também contribui para tal passagem. Interpretada por Isabella Rosselini, a personagem é procurada inicialmente para liberar Rachel do hábito de dormir com a mala do colégio já nas costas, atitude reveladora de seu mundo neurotizado. É para a psicóloga que Raquel depois escreve para dividir suas angústias novamente: a realidade algoz da morte da amiguinha.

A fantasia e o ludismo, característicos do espírito infantil, são os responsáveis pelo olhar divertido e provocativo com que várias situações, em especial as ligadas às experiências sexuais da professora, dos pais e do irmão de Valèrie, são encaradas e recontadas. A troca do significante “pica” por “bica” é mais do que um trocadilho inocente com certeza.

Mas não apenas à comicidade fantasia e imaginação emprestam seus disfarces. O filme se passa nos anos 80 do século XX. O pai Michel (Denis Podalydès), um homem quarentão, teve a infância devastada pela miséria imposta pela guerra. Para justificar a austeridade paterna e suas idiossincrasias, Rachel tudo atribui a “Osvitch”. Neste caso, a ignorância infantil protege a menina a partir de um significante fantasmagórico, cuja decodificação é impensada naquele momento.

Não é só a pequena Rachel, entretanto, que vê sua vida transformada pela presença de Valèrie, mas toda sua família. O contato com a família da amiga, sua mãe solitária e sedutora e seu irmão irreverente, permite à família de Rachel sair da rotina engessada e oxigenar as relações. É no contato com a experiência da morte e da perda que a ingenuidade do universo infantil é borrada, que o cristal se quebra.

“Feito gente grande” é um filme para ser visto por todas as idades. A perspectiva do olhar infantil sobre a realidade que nos circunda é um ótimo ponto de vista para reflexão.

(Analice Martins)

On the road

A classificação de um filme como pertencente à estética “on the road” remete obviamente ao livro de Jack Kerouak, publicado em 1957, e um clássico no sentido de que inaugura um paradigma sempre reconvocado e relido por escritores e cineastas de nacionalidades e culturas distintas em décadas sucessivas. Portanto, é um livro que faz eco, uma espécie de “inaugurador de discursividades”, como diria o filósofo Michel Foucault em outra situação.

A expressão “on the road” também representa, em uma contexto mais específico, os anseios de certa geração americana dos anos 40, desejosa de experiências libertadoras, fossem pelo sexo ou pela alma, representativa de uma oposição à sociedade industrial e militarizada.

Mais do que um livro, a expressão “on the road” designa também uma estética literária e cinematográfica em que a estrada percorrida a esmo, aleatoriamente, sem mapas ou cartografias prévias, corresponderia a uma espécie de “educação sentimental” às avessas. A experiência errática seria mais profícua porque promoveria, pelo deslocamento, um encontro consigo mesmo, a partir do outro, do estranho, do não familiar, para relembrar as maravilhosas contribuições freudianas neste sentido da formação psíquica e sociológica do indivíduo.

O estranho e a estrada funcionariam como elementos construtores do “self”, seja pelo desligamento temporário ou definitivo das raízes, seja pelo reencontro com elas. Nesta lógica, o aleatório é uma promessa de futuro, antes inviável. Estas sucintas considerações podem servir como apresentação crítica do filme, em cartaz nos cinemas cariocas, ”Ela vai” (“Elle s’en va”, de Emmanuelle Bercot), estrelado por Catherine Deneuve. Um filme solar como a própria diretora o descreve.

A admiração da diretora por Deneuve, um dos ícones do cinema francês, impulsiona um filme em que, além de ser a protagonista, a magnitude cênica de Deneuve se impõe, numa espécie de retrospectiva da trajetória de sua beleza “solar” e dionisíaca. A atriz interpreta Bettie, uma ex-miss da Bretanha, dona de um restaurante numa cidadezinha francesa perdida no tempo, ou melhor, fora do tempo e de certa contemporaneidade, o que torna o filme uma homenagem não só à própria atriz como a uma França literariamente perdida em nossos imaginários.

Bettie, após uma desilusão amorosa, a traição do amante que a abandona para viver com uma mulher de 25 anos, desorienta-se, perde o prumo, não se reconhece em seu cotidiano, entra no carro e cai na estrada, num desligamento temporário da ordem cotidiana das coisas.

No caminho sem percursos, em que pequenas estradas vão-se delineando ao sabor do acaso ou das necessidades, Bettie permite-se conviver com o diferente, ser tocada por ele, ver a si mesma como outra. Neste intervalo, é surpreendida pelo pedido da filha – com a qual mantinha uma relação distante e conflituosa – para que pegasse o neto e o levasse até o avô paterno, para que ela pudesse fazer uma entrevista de trabalho.

A estrada, neste momento, ganha não só novo rumo como também nova significação. O reencontro com o neto, de início arredio, é uma redescoberta do afeto esquecido. E é ele, sem o saber, quem a reconduz ao amor no contato com o avô solitário e infenso à vida. Nas estradas encruzilhadas às quais Bettie chega inicialmente por impulso, a vida volta a pulsar, relações desgastadas e abandonadas ganham uma nova direção (com a filha, o neto e a mãe), outras surgem a partir deste impulso de desgarramento que provoca reordenações e aprendizagens.

Vale destacar o despojamento de Deneuve ao aceitar o desafio de contracenar com não-atores. Deste improviso, surgem atuações comoventes, espontâneas e críveis. As participações de Nemo Schiffman, como o neto, e de Claude Gensac, como a mãe da protagonista, são impagáveis. Vale ainda uma vez destacar, para os fãs de carteirinha, o encanto da eterna “belle de jour”, além da sedução desta França interiorana e deslumbrante marcada de cores e sabores.

Fica a dica do filme e o desejo de que 2014 possa guardar, para todos nós, um pouco do espírito “on the road.

(Analice Martins)

Cartão de Natal

Desde que li, pela primeira vez, o poema de João Cabral de Melo Neto que se intitula “Cartão de Natal”, deposito nele, a quem eu o enderece, a expressão de meus votos natalinos. Portanto, repito-lhe os versos ano após ano, como uma espécie de mantra, capaz de guardar uma força que aponte para a vida com entusiasmo, no sentido etimológico que a palavra guarda: ter um Deus dentro de si.

Cabral, poeta que se dizia ateu, não se furtou, mesmo que de forma desconfiada, a desejar que, nesta data, boas novas pudessem renascer, inaugurando “o novo em cada amanhecer”. Peço licença ao poeta para, mais uma vez, transcrever seus versos e me apropriar de seus sentidos insinuados, acrescentando-lhes outros das minhas intenções de leitura. Ei-lo:

“Pois que reinaugurando essa criança

pensam os homens

reinaugurar a sua vida

e começar novo caderno,

fresco como o pão do dia;

pois que nestes dias a aventura

parece em ponto de voo, e parece

que vão enfim poder

explodir suas sementes:

 

que desta vez não perca esse caderno

sua atração núbil para o dente;

que o entusiasmo conserve vivas

suas molas,

e possa enfim o ferro

comer a ferrugem,

o sim comer o não”.

 

A subjetividade do poema é velada, camuflada no desejo da humanidade. Talvez, apenas entrevista, de fato, nos seguintes versos: “que desta vez (…)o entusiasmo conserve vivas/ suas molas/e possa enfim o ferro/comer a ferrugem,/ o sim comer o não”. Só da engenharia cabralina sairia uma inversão tão contundente traduzindo esta assertividade de que precisamos para redirecionar a vida, reorientar desejos, inibir a corrosão do “não” e imaginar que são imprescindíveis as molas do entusiasmo para alavancar a esperança que constrói o “sim”.

Em seu auto de natal pernambucano, “Morte e vida severina”, diante da morte que grassa no sertão (“só a morte vejo ativa”), Severino, que queria “saltar numa noite, fora da ponte e da vida”, ouve de José, mestre carpina, a dura lição: “ a vida de cada dia/cada dia hei de comprá-la”. Em seguida, Severino assiste ao nascimento do filho de José que “saltara para dentro da vida”.

Severino ouve vizinhos, amigos e pessoas que vieram visitar o menino dizerem de sua formosura às avessas, pois, apesar de “ser criança pálida e franzina” é “tão belo com um sim/ numa sala negativa”, “E belo porque com o novo/todo velho contagia./Belo porque corrompe/ com sangue novo a anemia./Infecciona a miséria/com vida nova e sadia./Com oásis, o deserto,/com ventos a calmaria”.

Sim, é “difícil defender/só com palavras, a vida”, sobretudo esta severina, que continua avançando com outras máscaras, como bem descreveu, em seu artigo do domingo passado, Aldir Blanc falando do mesmo nordeste brasileiro. Este que parece não acabar, este arrombado pela ausência de postos de saúde, de escolas dignas, de bibliotecas, de centros culturais e de lazer, faminto até de arroz, feijão e macarrão, destroçado pelo crack, sejam as vítimas homens, mulheres, adolescentes ou velhos. Ironia ferina o “feliz natal” desejado ao final do artigo.

Difícil mesmo defender só com palavras a vida. Ainda assim desejo a todos os meus leitores O FERRO QUE POSSA COMER A FERRUGEM E O SIM QUE POSSA COMER O NÃO.

(Analice Martins)

Experimentação e criação

Vivemos encurralados pela ameaça constante de que não está longe o dia em que nossos conhecimentos serão definitivamente substituídos por algum tipo de inteligência artificial capaz de pensar e criar. Ou seja, que a máquina não será mais um acessório ou ferramenta conduzida pela inteligência humana, mas agirá de forma autônoma e independente. Se esse dia nos chegar, estaremos diante de uma alteração paradigmática irreversível que relegará a existência humana a uma condição periférica.

A máquina, qualquer que seja ela, desvinculada da subordinação à inteligência humana, esvaziará de vez nossa condição de sujeitos criadores. Seremos algum reflexo distorcido de um princípio maquínico vital. Há quem pense que já estamos nesse estágio ou que não poderemos evitá-lo. Há talvez os que anseiem por tal realidade imaginando que nela estarão livres do fardo da humanidade: esta condição que nos faz pensar e, portanto, parafraseando Descartes, existir.

Tais reflexões têm uma razão de ser nem tão relevante assim, porque já experimentada no início do século XX com os movimentos vanguardistas, os famosos ISMOS que trouxerem para o primeiro plano da representação os bastidores da criação, a materialidade dos artefatos artísticos e que fraturaram a crença ainda persistente de que a arte possa copiar a vida. Futurismo, Dadaísmo, Cubismo, Impressionismo, Surrealismo, Expressionismo nos ensinaram que a palavra e a cor não são a coisa em si representada. Um cachimbo pintado não é um cachimbo palpável, mas tão-somente um truque, uma mágica, um engodo orquestrados por uma subjetividade criadora. Em outras palavras, por uma cognoscência, um individuo pensante e atravessado por muitas outras vozes pensantes.

Para criar, para dar existência, é necessária uma subjetividade pensante. No fundo, as experiências vanguardistas só reforçaram tal estatuto. Ao realizarem experiências com as palavras e a língua, como no Dadaísmo, fazendo crer que uma ordem aleatória para as palavras pudesse ser um discurso, experimentaram a elasticidade da língua, esgarçaram-na para que, liberta da linearidade previsível, pudesse significar longe dos arbítrios discursivos.

As experiências foram muito válidas, tanto que ficaram conhecidas como vanguardas históricas. Contribuíram para estremecer, arejar e dilatar sentidos e nos legaram a certeza de que a desconstrução e a fragmentação são operações que exigem uma “engenharia” intelectual e autoral. Quando os dadaístas propuseram que a fórmula de criação poética se realizaria com palavras recortadas de jornais, colocadas em um saco, retiradas aleatoriamente e copiadas em um papel, anteciparam princípio semelhante ao aplicativo “What would I say?” que, como um programa-robô, lê o histórico das postagens dos perfis do Facebook e as reordena aleatoriamente. Ora, se não há uma subjetividade construtora, a criação poética seria fruto do acaso, esta sombra indesejada para uma certa linhagem de poetas?

Sem dúvida, são os modos de ler que também legitimam o que é literário ou não, mas, neste caso, o leitor é movido por sua subjetividade pensante e passível de ser criadora. Em nossos tempos simulacrais e preguiçosos, por que não experimentar? Em tempos de escritores instantâneos (postou, criou!), a moda pode pegar. E aí, dada a quantidade de aficionados pelo Facebook, poderíamos ter um “boom” de novos poetas?

Tristes tempos esses em que brincadeiras autômatas e programas-robôs preenchem o vazio de nossas subjetividades, em que um mundo de não-leitores ou de leitores umbigueiros, aqueles que só leem postagens imbecilizantes, podem ser catapultados à condição de escritores e, quem sabe,  pertencerem a alguma antologia dos tempos maquínicos.

Pensar para quê? Ler para quê? Há programas-robôs que o fazem por nós e que agora também criariam por nós. A etimologia da palavra “criar” remete à ideia de erguer, produzir, tirar do nada, colocar de pé. Logo, não me parece que a criação artística possa ser atributo de máquinas e programas desprovidos de singularidades marcadas por atravessamentos psíquico-sociais.

É inegável a importância do experimentalismo como mola propulsora da criação artística. De fato, é preciso rasgar, costurar, encaixar, montar, ousar, reinventar. É preciso mexer, sacudir para, depois, (re)ordenar a partir de um ponto de vista escolhido por um indivíduo, ainda que caoticamente pensante. O caos também é condição de criação.

Já a supressão das subjetividades só pode nos conduzir a uma condição objetal e marginalizada onde permaneceremos em um limbo asfixiante.

(Analice Martins) 

 

Coisas sujas e invisíveis

Barco com imigrantes chega à Lampedusa; naufrágio de outra embarcação deixou 15 mortos e 130 desaparecidos

Em outubro deste ano de 2013, naufragou, perto da ilha de Lampedusa na Itália ultramarina, mais um navio com cerca de 450 imigrantes ilegais, em sua maioria somalis e eritreus, que tendo partido do litoral da Líbia, na costa africana, pretendia alcançar a Europa Mediterrânea. Um drama europeu muito mais do que italiano.

Em abril de 2005, as labaredas que tingiram o céu parisiense, no maior incêndio das duas últimas décadas naquela capital, segundo informações da Cruz Vermelha, fizeram não apenas vinte mortos aproximadamente, mas também expuseram, na aparente indistinção dos corpos inertes entre cinzas e escombros, raízes e particularidades outras que aquele espaço urbano abriga.

A cartografia do nono distrito da capital parisiense dispunha, em espaços contíguos, o pequeno hotel Paris-Opéra, com uma única escada de emergência, e a multinacional Galeria Lafayette, que serviu de posto para os primeiros socorros dos feridos. O espaço globalizado e imperioso do capital abrigou durante algumas horas os feridos pobres de nacionalidades distintas.

Para além da morte trágica de crianças e adultos, aqueles escombros pareciam sinalizar uma outra dinâmica imobilizada pelo fogo: o fluxo migratório de africanos, portugueses, ucranianos. Segundo dados oficias, o hotel, com capacidade para setenta e seis hóspedes, localizado na Rue de Provence, 76, atrás da luxuosa galeria, fazia parte das políticas públicas da prefeitura parisiense no sentido de acomodar imigrantes africanos pobres.

O incêndio tornou visível a dinâmica deste “cosmopolitismo do pobre” nas metrópoles do mundo pós-industrial, tomando emprestada a expressão cunhada por Silviano Santiago, em livro homônimo, para expressar o que caracterizou como segunda investida do multiculturalismo: “Uma nova e segunda forma de multiculturalismo pretende dar conta do influxo de migrantes pobres, na maioria ex-camponeses, nas megalópoles pós-modernas, constituindo seus legítimos e clandestinos moradores, e resgatar, de permeio, grupos étnicos e sociais, economicamente desfavorecidos no processo assinalado do multiculturalismo a serviço do estado-nação”.

O incêndio também tornou visível o sujo da pobreza, decorrente do apelo do capital transnacional, sedento de mão-de-obra barata, que faz migrar, como afirma Santiago, “a pé, a nado, de trem, navio ou avião os desprivilegiados do mundo que estejam dispostos a fazer os chamados serviços do lar e de limpeza e aceitam transgredir as leis nacionais estabelecidas pelos serviços de migração”

Evocar, neste artigo, certos  naufrágios dos últimos anos e o incêndio ocorrido no hotel Paris-Opéra é pensar em que medida as imposições do capital transnacional fazem eclodir um fluxo migratório desejavelmente clandestino, malgrado os esforços de políticas públicas habitacionais. É pensar ainda em que medida este deslocamento compulsório seria estratégia de inclusão, por conferir aos desempregados do mundo a perversidade da inclusão pela empregabilidade barata e clandestina. Ou se continuamos a falar tão-somente de uma mesma lógica operacional já identificada no multiculturalismo antigo, de que fala Santiago, ao se referir ao império do homem branco, europeu, ocidentalizando o mundo, só que agora convocando para o seu território, num fluxo centrípeto, os povos anteriormente colonizados e subjugados no além-mar.

Nesse sentido, Coisas belas e sujas, do diretor britânico Stephen Frears, lançado no Brasil em 2003, traz para a cena cultural cinematográfica o trânsito nervoso do cosmopolitismo de africanos, espanhóis, turcos, coreanos, na babel londrina, já que é, em Paris, Londres, Roma, Nova Iorque e São Paulo, que, segundo o crítico referido, unem-se os desempregados do mundo.

Londres é palco de uma “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau. O filme de Frears apresenta a Londres excludente (ou perversamente includente) do capital, a Londres africana, turca, chinesa, dos que, como responde o médico argelino/dublê de recepcionista de hotel e motorista de táxi, a um inglês, são “invisíveis”: “Nós somos as pessoas que vocês não vêem. Somos nós que limpamos suas latrinas, dirigimos seus carros, chupamos seus paus”.

O hotel londrino, não-lugar na acepção  antropológica de Marc Augé, é por excelência a possibilidade de identificações provisórias, em trânsito, não relacionais. É lá, microcosmo babélico da Londres pós-moderna, que a “estrangeiridade das línguas” e corpos transforma aquelas singularidades em mão-de-obra barata, incluindo o gerente espanhol do hotel (Juan/Sneaky), imigrante pobre legalizado, que mantém sob estreita vigília os que, sem passaporte e sem visto de permanência, trabalham na clandestinidade como camareiros, ascensoristas, recepcionistas.

 

 (Analice Martins)