E aí, biblioteca pra quê?

Em setembro, fui surpreendida por um convite do João Doescher do SESC Interlagos (SP) para participar de um evento assim intitulado: E aí, biblioteca pra quê? De forma direta, o João se apresentou como responsável pela programação cultural da instituição e me sondou a respeito do interesse em mediar uma mesa neste encontro que se realizará, agora, nos dias 8 e 9.

Confesso que estranhei inicialmente o convite. Afinal, ele não fazia qualquer referência à forma como chegaram a mim, uma mulher sem face, nem twitter, porém na rede como todos de certa forma. Como era um convite de outra cidade de um outro estado e não fora feito por intermédio do currículo Lattes, nosso facebook acadêmico, nem fazia alusão  a terceiros que tivessem mediado esta indicação, quis saber primeiro como haviam me “localizado”. E a resposta veio da rede: um artigo apresentado no congresso da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), publicado nos anais do evento disponibilizados na net. O artigo se chama “Literatura para quê?”.

Faço esta breve narrativa não por cabotinagem ou para confirmar que quem cai na rede é peixe, mas para dizer que fiquei encantada com a iniciativa e a já conhecida seriedade e organização das unidades do SESC. Aliás, bem mais do que isso: seu trabalho com a comunidade.

A programação do evento pode ser encontrada em www.sescsp.org.br. Haverá mesas com especialistas como Zoara Failla, gerente de projetos do Instituto Pró-Livro, Ana Dourado, assessora técnica do Ministério da Cultura, além de exposição de trabalhos de bibliotecas móveis, itinerantes, bem como de projetos de leitura. A abertura do evento será feita pelo diretor de cultura do SESC SP, o campista Danilo Santos de Miranda, de quem o professor Aristides Soffiati também falou em sua última coluna de domingo.

Importa é que a leitura estará lá como discussão prioritária da cesta básica de nossa formação subjetiva e social, de nossa condição de existência humana. Muito especialmente a leitura literária. Quem quiser ter uma ideia, basta acessar o link com as respostas a esta questão (biblioteca para quê?), colhidas previamente de especialistas e promotores da leitura, a título de apresentação e de divulgação do seminário.

Importa também pensar que bibliotecas não são espaços apenas guardiães de um patrimônio cultural. Devem ser espaços físicos ou virtuais, fixos ou móveis, públicos ou privados, pessoais ou comunitários, onde a leitura possa dar vida aos livros ali recolhidos e ser o processo dinamizador do conhecimento, da descoberta dos mundos suspensos no “reino das palavras”, da ludicidade e da estética necessárias ao homem. Portanto, o que está em jogo é a representação que temos destes espaços, como os vemos, como os frequentamos, como temos acesso a eles, o que esperamos deles, que utilidade a eles atribuímos e, sobretudo, como desejamos estar neles. Ora, para um país de não-leitores, em que a educação não é para todos, em que professores recebem salários indignos e não têm planos de carreira justos, em que professores, mesmo os de Letras, não são leitores, urge redimensionar os espaços de leitura e torná-los acessíveis, acolhedores, eficientes.

A manutenção do acervo, sua organização, sua estrutura espacial, as políticas de planejamento voltadas para uma dinâmica cotidiana de mediação da leitura, a atenção à diversidade do público, seus interesses, suas dificuldades são ações cruciais para democratização das informações e da experiência estética.

Desconfio, no entanto, que a pouca procura pelas bibliotecas, no Brasil, não se deva apenas à sua escassez, sua distribuição desigual pelos municípios, seu precário estado de funcionamento, quando físicas, mas a um fator prévio e desestruturante: a incredulidade no poder transformador da leitura, nessa espécie de ascese que ela pode promover, ainda que não sejam poucas as experiências conhecidas. É este descrédito que nos marginaliza e que inviabiliza os esforços feitos no sentido de promoção da leitura. Parece que é preciso provar, diariamente, as habilidades cognitivas que a leitura traz: associar, comparar, inferir, derivar, memorizar etc. As competências adquiridas (informações, conteúdos) são mais visíveis, mas não são suficientes para provar a necessidade de ler.

Em uma realidade cujos signos vão muito além da palavra escrita ou oral, parece óbvio que ler deve ser uma prática sociocultural mais abrangente que a decodificação de palavras. Esta constatação semiótica só reforça a urgência da compreensão da importância dos processos de leitura para a cognição e a imaginação. Aquele que não é capaz de imaginar permanecerá refém de uma realidade empírica por vezes idiotizante.

Deve-se ler para conhecer, para transformar, para purgar, para evadir, para entreter-se, para, enfim, permanecer e postergar a morte, como nos lembra Sherazade. Por isso, é preciso entender que bibliotecas não guardam apenas livros, guardam a vida mesma e que guardar uma coisa é, como diz o poeta e filósofo Antonio Cícero, “olhá-la, fitá-la, mirá-la por /admirá-la, isto é, iluminá-la e ser por ela iluminado”.

(Analice Martins)

O consumo do privado

(Michael Wolf)

Não vou entrar aqui na polêmica sobre a prévia autorização de biografias por parte dos biografados, embora pense que, havendo sanções previstas em lei e aplicáveis com celeridade sobre crimes de calúnia e difamação, os interesses de biógrafos deveriam pautar-se por critérios mais relevantes do que apenas o consumo frenético da fofoca.

Biografias são um gênero textual que já foi marginalizado pelas “altas literaturas”, mas que goza hoje de prestígio acadêmico e de um envolvimento definitivo com a cultura de massa. Se vivemos em uma sociedade cujas fronteiras entre o público e o privado se diluíram, é urgente também olhar, por um ponto de vista sociológico, o lugar ocupado por biografias, autobiografias, autoficções, talk shows.

Os americanos são um público leitor (ou seria consumidor?) voraz deste gênero. Biografias são altamente rentáveis para o mercado editorial americano. Em uma sociedade do espetáculo, a exposição do privado é artigo indispensável para a satisfação de espectadores. Tudo se dá como encenação grandiosa da intimidade alheia.

Nem toda situação íntima, porém, é necessariamente privada. Decidir sobre o que deve ser tornado público diz muito dos perfis comportamentais de cada sociedade. O íntimo pode tanto ser esclarecedor, revelador, quanto pode também ser absolutamente dispensável, matéria apenas de entretenimento. Quando o íntimo pode ajudar a desfazer enganos e a compreender uma época, a partir de atitudes pessoais, talvez, torne-se urgente e necessário torná-lo público, ainda que contrariando silêncios de toda uma vida.

As narrativas digitais das redes sociais, como o facebook, fazem tudo parecer digno de nota e registro. Acopladas a artefatos portáteis, como celulares e tablets, colocam o mundo na palma de nossas mãos, ao alcance de nossos sentidos hipertrofiados. É fácil perceber isso em situações como uma viagem sem fotos compartilhadas. Se o íntimo não é exposto, parece que não existiu. Concordo que a existência dependa de narrativas: de si, do outro, de muitos. Mas duvido que tenham que se tornar públicas para que sejam críveis.

Uma vida off line não parece ser uma vida que interesse. Por esta lógica perversa, consumir o alheio (o íntimo do outro) é o outro lado da mesma moeda das narrativas de si. Fora de uma dimensão pública, não haveria existência. Ou por outra, tal existência não importaria. O segredo tem que cair na rede. Isto até pode ser catártico e terapêutico, mas não deveria ser um critério de valor e opressão, uma espécie de ditadura.

Quando Roberto Carlos diz que não impediu a publicação da biografia Roberto Carlos em detalhes, feita pelo jornalista Paulo César de Araújo, por conta da narrativa sobre o acidente de que foi vítima, a amputação de sua perna e uso de uma prótese, pode até ter razão, mas, quando afirma, como na entrevista veiculada no programa “Fantástico” da TV Globo no domingo passado, que ninguém melhor do que ele poderia falar sobre este fato e suas implicações, parte de um pressuposto de univocidade lamentável. A voz do outro, amparada em pesquisas, depoimentos, entrevistas e documentos, pode ser mais esclarecedora do que uma autobiografia. Não somos detentores de nossa própria imagem, ainda mais em situações públicas. Dependemos do olhar e da voz do outro para existirmos enquanto subjetividade e discurso. Isso, no entanto, não justifica a espetacularização da privacidade. Fica bastante difícil, erguer muralhas em torno de si em uma sociedade que pede, a toda hora, que “botemos a bunda exposta na janela” para que passem a mão nela.

(Analice Martins)

Os poderes da ficção

Nem seria necessário algum tipo de comprovação científica para que percebêssemos os efeitos da ficção literária sobre os leitores. Efeitos sensórios, lúdicos, catárticos, pragmáticos e cognitivos. As artes poéticas clássicas já os haviam apontado. Os estudos críticos sobretudo do século XX também distinguiram as várias funções da leitura literária. Entretanto, para um mundo tão científico-tecnológico como o nosso, talvez, fosse indispensável mesmo uma pesquisa que os afirmasse.

Interessante observar que funções não são efeitos. Uma função é mais facilmente perceptível e mensurável. Já efeitos, em especial os de ordem cognitiva, parecem invisíveis e intangíveis, carecem de uma prova científica. Pois então, ei-la. A revista Science (migre.me/gkK9J) acaba de publicar uma matéria intitulada “Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind” (ler ficção literária melhora a teoria da mente). Cheguei a esta pesquisa a partir da leitura do artigo “Qual romance você está lendo?” do psicanalista e ficcionista Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo de 17/10. Vale a pena conferir a pesquisa e o texto de Calligaris.

A teoria da Literatura já havia, de certa forma, afirmado tais efeitos quando discutiu o critério de “desautomatização” da língua em seu uso literário. Tal conceito, proposto pelos formalistas russos no início do século XX, também ficou conhecido como “estranhamento”. Acho-o extremamente relevante e producente para compreensão do que seja literatura. Trocando em miúdos seria o mesmo que reconhecer que, no contexto de uso literário da língua, qualquer que ela seja, o leitor é obrigado a sair de sua zona de conforto de uma percepção linear e automatizada, para compreender, com sobressaltos e esforços, a mensagem veiculada por determinado código linguístico. Eis aí a questão: é no processo de estranhamento da informação transmitida que o leitor “ganha” cognitivamente. Ao correr atrás da decodificação da informação, o leitor se exercita, como diz Calligaris: “Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação”. Dito assim, pode parecer não valer a pena, já que a palavra de ordem e de opressão de nossa sociedade é otimizar o tempo, diminuindo esforços e percalços. Mas vale e muito! Os iniciados que o digam!

A pergunta que Calligaris diz ser a ideal para entrevistas – “Qual romance você está lendo?” – sempre me acompanha quando estou, como examinadora (ó céus!) em processos seletivos. Se não a faço diretamente, vou pela tangente. Quando não estou nesta posição, a que o ofício me obriga, mas, na rua, em praças, em ônibus, metrôs, aviões ou praias, vou me esgueirando até que consiga ver a capa do livro que o sujeito empunha e ler-lhe o título. Como se, ao ler o título, meus olhos disparassem uma radiografia cognitiva do sujeito perto de mim. Terrível, confesso! Mas não consigo me libertar deste vício, quase uma sanha antropológica.

Portanto, concordo com os resultados da pesquisa. Aliás, eles nem me seriam necessários para reconhecer que, ao ler, por exemplo, uma oração como “Diadorim é minha neblina” de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, toda a tortuosa delícia dos sentimentos de Riobaldo se revele extraordinariamente. Há quem possa alegar que as metáforas não são exclusividade de textos literários. De fato, não são. Portanto, quando empregadas, em qualquer outro contexto, implicam um exercício mental em busca do sentido representado pelo objeto escolhido como alvo da similitude.

Na poesia, creio que tais poderes se avolumem, pois o caráter de concisão imagética encurrala o leitor em seus processos cognitivos. Não quero dizer, em absoluto, que tais esforços cognitivos estejam atrelados a quaisquer dificuldades lexicais ou sintáticas constantes no texto. Não mesmo! No miniconto de Antonio Carlos Secchin, intitulado “Fim de papo”, não há nenhuma das dificuldades mencionadas, no entanto, por força da criatividade do autor, o leitor é obrigado a uma pequena ginástica para ser brindado com o entendimento: “Na milésima segunda noite,/ Sherazade degolou o sultão.” Fantástico, não?

Uma antologia poética pode ser uma biografia para lá de autorizada, como “Mar” (editora Caminho), de Sophia de Mello Breyner Andresen, uma das maiores vozes da poesia portuguesa do século XX. Recolho das vagas de seu mar poético, alguns versos do poema “No alto mar” que, penso, provocam efeitos sensórios e cognitivos, porque capazes de nos deslocarem do comodismo de nossas percepções automatizadas e nos lançarem no mar revolto do conhecimento: “No alto mar/ A luz escorre/ Lisa sobre a água./ Planície infinita/Que ninguém habita./O Sol brilha enorme/ Sem que ninguém forme/Gestos na sua luz./Livre e verde a água ondula/Graça que não modula/O sonho de ninguém/São claros e vastos os espaços/Onde baloiça o vento/E ninguém nunca de delícia ou de tormento/Abriu neles os seus braços.”

 (Analice Martins)

Espelho, espelho meu!

Por que, afinal de contas, o discurso do escritor Luiz Ruffato causou tanta polêmica na cerimônia oficial de abertura da Feira do Livro de Frankfurt na terça-feira anterior? Para quem conhece sua relação com a literatura, seus romances e contos, não houve ruídos nem inadequação. Para os que não conhecem sua produção literária nem tampouco a literatura brasileira, lá representada por uma delegação de setenta escritores, foram muitos os rumores que criou a verve político-literária do premiado escritor, cujas obras já foram publicadas em países como Itália, França, Alemanha, Argentina.

Nesta cerimônia falaram, além dele, a escritora Ana Maria Machado, presidente da ABL, e o vice-presidente do Brasil, Michel Temer. A Ruffato coube a palavra inaugural, como escolhido entre os escritores brasileiros, para tal missão. Que Ziraldo não tenha se sentido representado, que Nélida Piñon tenha feito ressalvas à aparente depreciação retratada na fala do autor de Eles eram muitos cavalos (2001), nada disso deve embotar a crua e dura realidade do que foi dito. Seu discurso não foi ufanista, nem hiperbólico. A condição de país homenageado pedia uma apresentação, e ele o fez ao seu modo engajado e crédulo, de quem entende a utopia como um lugar a ser alcançado e não como uma quimera.

Ao expor nossos paradoxos socioeconômicos, com estatísticas e números cirúrgicos, apenas pretendeu, creio, colocar o dedo em nossa ferida. Narcísica, registre-se. Ao lançar a reflexão sobre o lugar do escritor em país ainda periférico nesta fase do capitalismo tardio e defender a literatura como compromisso, não obliterou a diversidade das tendências em nossa literatura contemporânea, mas tão-somente assinalou seu projeto político-literário ainda mais notório nos cinco volumes de Inferno provisório. A pena de Ruffato sempre expôs nossas vísceras com a consciência de que a forma escolhida para representá-las não flerta com um realismo documental convencional. A fotografia fragmentada e em ruínas de nossa condição à margem colore sua obra com o sombrio da falta de perspectivas para que são empurrados os personagens, por exemplo, de Eles eram muitos cavalos. Não à toa o romance termina com uma tela preta, espelho de nossas misérias. Ao abrir mão da palavra nesta página última, Ruffato quis mostrar que, frequentemente, o trauma é indizível. É um fato maior que a palavra.

Ao enfatizar, ainda uma vez, sua trajetória de inclusão social, por meio da educação e da leitura – do acesso ao verbo-, ao não escamotear suas origens (filho de um pipoqueiro semianalfabeto e de uma lavadeira analfabeta), sua condição de trabalhador desde cedo (balconista, caixa de botequim, operário têxtil, torneiro mecânico, jornalista), Luiz Ruffato deixou claro que todo escritor deve saber o lugar de onde fala, em nível pessoal ou coletivo. Tal engajamento não macula em nada os imaginários criados pela literatura. Ruffato sabe que a literatura não é documento, tanto assim que implode a estrutura ilusionista do realismo histórico, chamando a atenção do leitor para a palavra que cria a realidade verossímil que se descortina diante de seus olhos. Por isso, não hesita em dizer que escreve para afetar o leitor, porque acredita que a palavra tenha esse poder transformador e libertário.

Ora, mencionar nossas feridas (o genocídio dos índios, a escravidão de três séculos, a hipocrisia, o machismo, o analfabetismo) não significa depreciação, nem “falar mal de”, mas ter a coragem de se olhar no espelho e entender a rasurada identidade brasileira. Hipocrisia é não falar disso. Hipocrisia seria declarar que somos a sétima economia do planeta, sem dizer que ocupamos, entretanto, o terceiro lugar entre os mais desiguais. Hipocrisia é dizer que a seleção dos setenta escritores foi racista porque nela só havia um negro – Paulo Lins, autor de Cidade de Deus. Isso não parece a lógica decorrente de três séculos de escravidão e da consequente marginalização do negro? Em um país de não-leitores, como bem disseram Ruffato e Ana Maria Machado, não causa espanto que, talvez, noventa por cento dos escritores desta lista sejam ilustres desconhecidos para a maioria dos brasileiros. Espelho, espelho meu, não somos um país de leitores!

Qualquer lista é seletiva. Toda seleção implica exclusão. Toda exclusão é lícita desde que os critérios sejam explícitos e válidos. Como país homenageado, adotaram-se critérios de representatividade. A condição racial é apenas uma das variantes da identidade cultural da nação. Não pode ser analisada por si só. Por outro lado, também não é verdade que critérios literários ignorem as variantes de etnia, gênero, escolaridade etc.

Hipocrisia é não querer ver que a estratégia argumentativa utilizada por Ruffato, iniciando seu discurso pelas ressalvas e adversidades que nos constituem, põe em relevo o que disse por último, ou seja: “eu acredito no papel transformador da literatura”. Triste é saber que a desistência de Paulo Coelho, uma semana antes da feira, só diz do narcisismo que nos acomete. Ser um entre os setenta, e não o escolhido para ser o orador oficial, feriu a vaidade do mago, que, apenas nessa hora, lembrou que é brasileiro.

Viva Ruffato, este sim um mago das palavras!

(Analice Martins)

Flashes de viagem

A LÍNGUA

Estou em Portugal pela segunda vez.  Como é bom sentir-se docemente estrangeiro na própria língua, estranhar-se entre sons e palavras. Os deslocamentos territoriais impõem à língua outros fluxos e inflexões. Com o mundo cada vez mais globalizado e interligado pelas tecnologias da comunicação, de fato, não é preciso deslocar-se fisicamente para viajar, mas o corpo empresta à língua uma densidade única. É desejável que ele também goze da experiência desta viagem.

Caetano Veloso sempre teve razão ao cantar que sua pátria era sua língua, mas a língua fora do território da pátria ou mesmo de alguns estados está sempre a roçar em nossos lábios e sentidos, é sempre uma pátria um tanto quanto estrangeira. Nisso, Caetano também tem razão quando canta que gosta de ver a sua língua roçar a de Luís de Camões.

OS LIVROS

Livros e viagens são bons companheiros. Nenhum tipo de viagem é incompatível com tal companhia. Nas minhas, de certa forma, eles são a própria viagem. Estão antes delas, são os seus pontos de partida. Seguem em minhas malas e descortinam-se nas prateleiras dos hotéis, pousadas, hostels, B&B. Estão lá sempre a me acenarem. E derramam-se em cascatas por livrarias e bibliotecas. As cidades também deveriam ser conhecidas pelas livrarias e bibliotecas que têm (ou, infelizmente, que não têm): “Diga-me que livros guarda, e eu lhe direi quem é”.

Assim, não foi com surpresa que me encontrei com Machado de Assis, Jorge Amado e Clarice Lispector. A literatura brasileira fora do Brasil talvez seja sobretudo eles. Paulo Coelho não conta, não tem pátria, mora nos pireneus entre walkírias e alquimistas. Foi com alegria que encontrei, entre as prateleiras de uma livraria de Óbidos, nossos bravos autores contemporâneos: Bernardo Carvalho, Daniel Galera, Rubens Figueiredo, Chico Buarque e até Adriana Calcanhoto e sua saga lusa “renegada”. Percorrer livrarias é também percorrer cidades ou esquecê-las nos mapas de nossas memórias. Tristes as cidades que enterram suas livrarias! Serão sepultadas como indigentes!

Em Coimbra, a Biblioteca Joanina é uma joia do barroco. É espaço de visitação como qualquer monumento que é parte do patrimônio cultural e histórico da cidade. Debruça-se sobre o Mondego. Lá, por entre os livros, avistam-se o rio e as viagens.

OS RIOS

Os rios oferecem uma espécie de identidade aos lugares. Fernando Pessoa já cantara o rio de sua aldeia. Portugal é também o Tejo e o Mondego. É preciso percorrê-los para sentir a alma lusitana, é preciso admirá-los e entender sua geografia para conhecer as cidades e suas gentes.

OS ESTUDANTES E A UNIVERSIDADE

Levei algumas boas horas caminhando por Coimbra no domingo de minha chegada à cidade. As ruas em silêncio deixavam que toda a arquitetura se desenhasse diante de meus olhos. Prédios, igrejas, chafarizes, monumentos, palácios se erguiam de forma abrupta, quase pulando do chão à espera de um olhar atento. As ruas da cidade antiga sobem e descem sinuosas, esgueirando-se em ladeiras. A cidade estava em silêncio até a chegada de seus estudantes. De volta do fim de semana nas casas dos pais, vinham descendo coloridos e ruidosos dos trens, na estação ferroviária A, ao lado do rio Mondego, arrastando malas e mochilas, carregando livros, dirigindo-se às repúblicas.

É comovente perceber o espetáculo do movimento promovido por eles. Coimbra é conhecida por ser uma cidade universitária. Sua alma também está aí. Em uma Europa ainda em crise, com índices crônicos de desemprego, em um país sempre considerado periférico na união europeia, é comovente, sim, ver a força utópica do conhecimento, representado pelo ensino e pela pesquisa universitária. É comovente perceber que “the dream isn’t over”, que é preciso, qual Fênix, renascer das cinzas. “Navegar é preciso”!

(Analice Martins)

Circuitos literários

A relativização da escala de valores para se pensar a literatura e o descentramento da crítica literária especializada pode ser considerada uma espécie de novidade ou mudança paradigmática acarretada pela “web” (world wide web) e pelas novas tecnologias. Assim, em nosso cenário atual,  a função destas críticas como legitimadoras das produções literárias vem sendo constantemente revista.

A experiência de sites especializados, revistas eletrônicas, redes sociais, fóruns de debate pela internet, como foi o fórum virtual “o que é literatura?”, deflagrador do seminário “Literatura sem papel”, realizado em 2006 e 2008, na UFRJ, e resenhas de livros apenas de circulação pela internet promoveram, além de vaidades exacerbadas, uma espécie de dança das cadeiras e de livre expressão de juízos estéticos.

Essas contribuições, trazidas pela “web”, estão, de certa forma, determinando uma espécie de reconstrução da vida literária nacional, a partir da fragilização da importância de mediadores como editores e críticos. Os próprios escritores executam, com frequência, os papéis tanto do editor quanto do crítico. Dessa maneira, ocorre um descentramento das relações de força com uma aproximação mais direta, quer na relação entre escritor e leitor, quer na relação do escritor com a crítica literária.

Se os suplementos literários já haviam empurrado a crítica institucionalizada pela academia para um certo obscurantismo, agora, a “web” diminui e suprime o espaço reservado a tais suplementos nos jornais. Se os jornais americanos suprimiram ou reduziram seus suplementos literários na primeira década do século XXI, a atual vida literária brasileira também acompanhou, paralelamente, o aparecimento de novos espaços, talvez mais democratizados, porém passíveis de questionamentos sobre sua autoridade para atribuição de juízos estéticos.

Em um movimento semelhante ao ocorrido com o antagonismo entre os críticos “scholars” e os de rodapé, a possível democratização trazida pela pulverização de opiniões, a partir da “web”, fez com que o crítico de cinema da revista “Time”, Richard Schikel, escrevesse na página de opinião do jornal “Los Angeles Times” que “nem todo mundo é um crítico”, e que o trabalho de resenhar livros não é uma atividade democrática, promovendo, com tais declarações, reações acaloradas nas quais os jornais criticaram o amadorismo dos blogs, e os blogs denunciaram o partidarismo dos jornais.

Assim como, em um primeiro momento, o espaço assegurado ao livro literário impresso pareceu ameaçado de extinção, com a ameaça trazida pela “web” ao espaço da crítica literária nos suplementos literários, o escritor Salman Rushdie afirmou, em evento promovido pelo Círculo Nacional de Críticos de Livros (NBCC, na sigla em inglês), que “é um erro tratar os novos meios como uma ameaça à crítica de jornais”. Jornais e blogs se complementam.

Mais importante, talvez, do que dimensionar a procedência e a legitimidade das críticas realizadas nesses blogs e sites é avaliar o que a pesquisadora e ensaísta Heloisa Buarque de Hollanda identifica como “simultaneidade geracional entre autor e leitor”: “O novo escritor sempre falou com o velho crítico ou o velho escritor. Hoje, o escritor já fala de imediato com sua geração. Isso produz uma troca muito importante”.

Outra alteração paradigmática que se observa nas reconfigurações promovidas pelas novas tecnologias é a mobilidade dos lugares ocupados por escritores, críticos e leitores, em uma nítida acumulação de funções. O mesmo que escreve lê seus pares e é por eles lido. O que apenas lia, opina publicamente. De certa forma, escreve, interfere.

Fronteiras e muros delimitadores de territórios impenetráveis são atravessados, no século XXI, acirrando o que, anteriormente, em outro contexto, Karl Marx identificara, como a solidez que se desmancha no ar. Constatação que, de certa forma, Zygmunt Bauman, sociólogo expulso do Partido Comunista em 1968, retoma com o tema da liquidez, explorado, em livros como “Modernidade líquida”, “Tempos líquidos”, “Amor líquido”, “Vida líquida” e “Medo líquido”, para identificar a precariedade, a vulnerabilidade, a instabilidade e a incerteza dos vínculos dos indivíduos entre si e nos mais variados âmbitos da vida social no atual estágio da modernidade avançada.

Em um mundo, portanto, em que há uma liquefação nas relações entre os indivíduos e uma espécie de desengajamento social, tal diapasão para pensar a contemporaneidade envolve, sem dúvida, as manifestações culturais. A literatura, ainda que constituída de obras que atravessam, na sua condição de clássico, os tempos e as fronteiras geográficas, permaneceria infensa a tal contingência de liquidez? O que se escreve na “web” é feito para se desmanchar no ar? Só a publicação impressa asseguraria uma sobrevida e uma espécie de resistência temporal à obra literária?

(Analice Martins)

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Este texto é parte do artigo “Modos de produção e circulação na web: algumas notícias da atual literatura brasileira”, de minha autoria, publicado no número 179 (out.- dez.), da Revista Tempo Brasileiro, em 2009.

Um lugar para a literatura

Este artigo é uma tentativa de repensar o lugar que deve ser ocupado pela literatura nos vários exercícios da cultura. Mordi a isca plantada por meu colega de espaço, Sérgio Arruda, em suas reflexões da última sexta-feira, no jornal Folha da Manhã. Entendi que sua advertência para que não deixássemos a literatura sumir dos currículos escolares e das academias de letras era um convite para que discutíssemos, a partir da triste constatação de seu enxugamento, a importância que tem, enquanto prática cultural, na formação crítica dos sujeitos.

Há, sem dúvida, princípios conceituais que devem ser esclarecidos de antemão a fim de que esta reflexão possa chegar a algum lugar. Para facilitar, descartarei a ideia de entretenimento que tanto a literatura quanto a cultura em geral podem carregar sem culpas. Ou melhor, ficarei sobretudo com uma de suas acepções no dicionário Aurélio. Entreter é deter-se, demorar-se, delongar-se. Deixarei de lado as ideias, embora não contraditórias, de divertir-se e recrear-se. Entreter também pode ser iludir ou enganar. Eis aí o perigo, quando a única intenção de práticas literárias e eventos culturais – o atual atoleiro da planície goitacá – é tão somente esta: enganar os sentidos, distrair a percepção e o julgamento.

Dizer que a literatura é uma prática cultural implica, para que não resvalemos em beletrismos, dimensionar a cultura como um conjunto de modos, usos, costumes, crenças, cultivados e transmitidos, por uma comunidade, cidade ou nação. Cultura, portanto, não é apenas o acúmulo de informações que a memória pode reter sobre quaisquer áreas do conhecimento. Esta é uma visão elitista e ignara. Do ponto de vista antropológico, cultura é um modo de intervenção na natureza, na geografia, no território, na língua, nas expressões artísticas.

É interessante observar que, mesmo que tal apreensão do conceito de cultura esteja disseminada em materiais escolares mais oxigenados, parece não vingar, pois esbarra em posições cristalizadas, redutoras e excludentes que a circunscrevem com adjetivos: alta, baixa, erudita, popular, massificada etc. Escola e professores debatem-se naquilo que pode ser entendido, por exemplo, como um uso linguístico cotidiano de uma comunidade ou território, e se tal manifestação pode adentrar a cena escolar. Ora, a escola é feita “de, para e com” alunos. Portanto, blindá-la contra as manifestações cotidianas da música, da tv, dos HQs é um tiro no pé. Ou a escola toma para si a função precípua de fazer pensar e discernir acerca do que nos rodeia ou permanecerá inoperante diante da realidade.

Neste sentido, concordo com meu amigo Sérgio Arruda que, aliás, por várias vezes, já discorreu com muita propriedade sobre as noções de cultura. Concordo que, ao alijar de seus domínios a literatura, a escola contribuirá para a “morte” de uma vigorosa forma de nos tornar sujeitos de nossos modos de falar, pensar, criar. Na literatura, viajamos sem sair do lugar, nela podemos nos conhecer por intermédio do outro, de outras vozes, outros cenários, outros usos da linguagem, outros registros. Nela podemos nos fantasiar, nos espelhar, nos metamorfosear. Não penso que a literatura tenha, obrigatoriamente, funções messiânicas, penso mesmo que possa não servir para nada objetivamente que não sejam a fruição estética e a diversão. Mas não podemos nos esquecer de que ela é uma senhora poderosa, que nos acompanha há muitos milênios e que não carece de instrumentos que não sejam as palavras oral e escrita. A literatura não precisa do pigmento da cor para pintar o céu de azul ou até de verde, nem do som para nos embalar, nem da tecnologia para criar uma imagem. A palavra lhe basta em princípio, porque, no princípio, sempre foi o verbo. O que mais se agregar a ela pode até ser bem-vindo, mas não será indispensável. Por isso, ela é poderosa, tem potencial explosivo e revolucionário, mas, se como sujeitos ou instituições, não a entendermos desta forma, vamos jogá-la para baixo do tapete até nas academias de letras onde deveria ter assento privilegiado.

A salutar exigência de diálogos entre disciplinas e entre linguagens pode ter contribuído para o abandono a que está relegada a literatura nas instituições de ensino, desprezando o auxílio que pode oferecer à formação crítica de milhões de jovens. Como vivemos sob o império do audiovisual, a literatura pode parecer a crianças e adolescentes algo anacrônico, fora do tempo, quando, na realidade, é a própria diacronia, fonte de estudo de fenômenos linguísticos e questões histórico-culturais na travessia do tempo.

É difícil não resistir à tentação de assistir a filmes, ouvir canções ou colecionar imagens em vez de ler os livros que deveriam entreter-nos, fazer-nos demorar, reter, fixar, já que carregam as culturas de nossa gente e de outras gentes, carregam seus modos de ver, fazer e usar, seus costumes, suas práticas. Mais difícil ainda tem sido perceber que, embora descentrada na cultura contemporânea, sem primazia alguma, é a ela que devemos retornar, como matriz das articulações exigidas pelas orientações curriculares da Educação Básica, sobretudo do Ensino Médio, para entender suas especificidades e poder fruí-la sem engasgos.

 (Analice Martins)

A queda do paraíso

“Tudo desmorona, tudo cai hoje”, assim reage Sonja, dona de uma loja de lingerie numa galeria decadente do centro de Buenos Aires, quando o proprietário de uma papelaria, seu vizinho há vinte anos e amante fortuito do passado, decide vendê-la.

É a ilusão perdida, são as ruínas do sonho europeu, sequer entrevisto na fotografia, que o filme O abraço partido (2004), de Daniel Burman, retrata. Nenhuma visão pujante, nenhum cenário europeizado, apenas o desejo da cidadania europeia, representado pela busca do passaporte polonês. O encontro com as raízes ignoradas sinaliza, simultaneamente, uma porta de saída e uma de entrada para o jovem Ariel Makaroff, que carrega, no siso e na tristeza, a narrativa do abandono pela figura paterna. O passaporte lhe conferiria a possibilidade de ir, de pertencer a outras culturas, libertando-o e lhe acenando algum futuro, ainda que ilusório.

Ariel, cujos avós maternos chegam à Argentina refugiados do comunismo polonês e cujo pai judeu parte de Buenos Aires para lutar na guerra do Yom Kippur, percorre a pé, mas sempre retornando para o bairro e para a galeria comercial da loja de sua família, uma Buenos Aires sombria, partida, desiludida, pós-crise financeira, na bancarrota em que pequenos comerciantes apenas lutam para sobreviver.

Enquanto a avó materna quer queimar seu passaporte para esquecer o horror e a perseguição sofridos em Varsóvia, Ariel vê nele a possível saída para sua vida pessoal, encurralada pela ausência paterna e pela decadência financeira da capital argentina.

Mas aquele que ser quer europeu ignora tudo o que diga respeito às raízes polonesas. Nos trâmites legais para a conquista do passaporte, mal esconde seu desinteresse por essa história. É cômica a cena em que se esforça para pronunciar o nome do ex-presidente Lech Walesa, do papa João Paulo II (Karol Wojtyla) e do cineasta Roman Polanski.

Ariel não quer ser polonês, embora diga que precise sê-lo urgentemente, bem como não revela maior intimidade com a cultura judaica. Ariel desconhece a própria história: encarcerado na dor da ausência paterna, sente-se preterido; inseguro no amor, abandona a namorada e mantém um caso com uma mulher casada – Rita; indeciso profissionalmente, desenha com desenvoltura, mas não consegue concluir o curso de arquitetura que diz querer fazer na Europa, contando para isso com o seguro-desemprego que a cidadania lhe ofereceria. Refém de sua história de desajustes e desacertos, percorre as ruas do seu bairro na capital argentina, sempre afoito, entrando e saindo da galeria, deslocando sem fixar-se. A cidadania almejada é muito mais refúgio para essa encruzilhada pessoal do que identidade pretendida como forma de aquisição/recuperação de outras pertenças.

Talvez seja menos nos conflitos de Ariel que se situem as tensões do terceiro mundismo argentino tão bem retratado pelo cinema dos anos 2000. Talvez seja muito mais no olhar que ele empresta a essa realidade que cruamente o circunda, sem fetiches europeus, que se perceba a dura constatação da “queda do paraíso”, como afirma em tom bem mais contundente e desesperado o irmão mais velho, Joseph, que abdica do sonho de ser rabino e se torna comerciante: “Ver tudo cair em volta é difícil”.

É no desespero do irmão que se expõe a crise da Argentina, cujo cinema tem, por uma opção estético-político “do dentro”, traduzido algumas tensões periféricas das cidades latino-americanas. Joseph percebe que importar “não dá mais” e deseja investir em outras atividades, como a criação de abelhas, o que rende uma bela e irônica metáfora ao filme com a inadequação da abelha-rainha trazida pelo pai aos ares argentinos. As atitudes de Joseph opõem-se ao espírito blasé de Ariel, que brinca com a tradição judaica, ao afirmar que “… talvez o Talmude explique a desvalorização na Argentina”.

O diretor Daniel Burman vale-se de uma sutileza narrativa: captura pelo olhar de Ariel, por suas andanças, por seu incessante trânsito, toda a “guerra de relatos”, na feliz expressão de Michel de Certeau, que estilhaça a estabilidade de uma identidade fixa e que rouba de Buenos Aires a pretensão ao paraíso, como também (ou tão bem) revela o filme Conversando com mamãe, de Santiago Carlos Olves, lançado no mesmo ano, e que expõe, no âmbito familiar, uma história também partida tal qual a da Argentina. Com o desemprego, Jaime vê-se obrigado a se reencontrar com seu passado e consigo mesmo. Ao procurar a mãe, uma octogenária, para convencê-la a sair do apartamento em que mora porque precisa vendê-lo, dá-se conta de que, para além da crise financeira que atravessa com o desemprego e a venda dos bens, sua própria situação de cidadão comum (classe média, marido e pai de família pacato) rui. Neste filme, como no de Daniel Burman, é no abraço refeito que se atenua, pela perspectiva “do dentro”, o impacto do fora: da crise político-econômica.

As tensões identitárias das minorias étnico-religiosas, somadas aos muitos trânsitos provocados pela globalização, emprestam à percepção de Michel de Certeau sobre a cidade, como “teatro de uma guerra”, um relato a mais, ácido e cortante.

 (Analice Martins)

Pronto! Falei!

A 30ª Bienal do Livro do Rio terminou no domingo com um público estimado de seiscentos mil visitantes, dois milhões e meio de exemplares vendidos e R$ 58 milhões de faturamento, segundo dados apresentados, na coluna do último sábado da economista Míriam Leitão, no jornal “O Globo”. Para ela, há, portanto, motivos para comemoração.

Custei a entender o que o artigo “A festa do livro” estava fazendo, numa seção de economia, e o que a senhora Leitão tinha a dizer sobre uma Bienal. Ingenuidade minha! Eram comentários baseados, sobretudo, em estatísticas e percentuais da Comissão Organizadora do evento e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Vista pelo prisma comercial, a Bienal é um negócio da China!

Com exceção do depoimento brincalhão de Rui Campos, o dono da rede Travessa, que disse que recorreria a um traficante caso os livros acabassem, discordo frontalmente de quase todas as impressões entusiasmadas de Leitão sobre a observação do movimento do público entre estandes e auditórios. Minhas resistências a esse formato de evento só se avolumaram nesta minha ida ao Riocentro, depois de muitos anos sem pisar lá. Troquei há muito a Bienal pela Primavera dos Livros, atualmente sediada no Museu da República no Catete. Não só pela razão óbvia da distância, mas pelas ambições mais salutares da Primavera.

O negócio do livro é o tom do texto de Leitão. Um negócio que poderia até nos honrar se traduzisse números reais ou aproximados de leitores efetivos. Um consumidor de livros em Bienais é ou será um leitor constante? É apenas um leitor episódico? Que estratégias podem ser empregadas para capturá-lo? Parece-me que quase toda forma de fazer ler valeria a pena se o livro escolhido carregasse informações, reflexões, estórias e versos não descartáveis, com alguma durabilidade em nossas memórias e impacto em nossas vidas.

Uma grande amiga sempre me dizia que lia a coleção “Sabrina” para dormir. Eu achava engraçado este indutor de sono. Livros soníferos, feitos para dormir de imediato. Para a mais valia de sua leitura, “Sabrina” era literatura descartável, que nem coçava, nem entretinha verdadeiramente e que não a deixava em estado de alerta nem de sobressalto.

Na segunda-feira em que fui à Bienal, todas as sacolinhas que vi crianças e adolescentes carregando guardavam coisas estranhíssimas. Quando percebi que naquele dia não haveria nenhuma programação no “Café Literário” e desisti de me colocar como leitora à procura de títulos interessantes com preços convidativos, porque não sei folhear nada em meio a multidões, passei a me comportar como detetive ou cão de caça farejando o que aqueles jovens carregavam em suas sacolinhas. Colei-me neles, segui-os sem que percebessem, atravessei as rodinhas que formavam no chão, cansados dos percursos entre estandes. Quase cometi a indiscrição de pedir que abrissem os pacotes e me mostrassem “seus documentos”. Montei uma blitz mesmo, uma patrulha. Que horror! Mas eu precisava saber o que, via de regra, procura este público. Ah, que desolação quando os via exibindo orgulhosos o último livro da série Assassin’s Creeds, de Oliver Bowden. Mais orgulhosos ainda exibiam nos celulares a foto tirada com o boneco gigante do herói vingador, plantado na porta do estande da livraria. Vi de tudo, até álbum das Chiquititas.

Não se trata do fim do livro, mas com certeza do fim dos tempos. Pronto! Falei! Podem me chamar de alienada, elitista ou qualquer coisa parecida.  É alentador saber que, seja em suporte digital, seja em suporte impresso, o livro sobreviverá. Mas que estórias carregará ou reinventará? Que contribuições poderá trazer à nossa formação e mesmo ao nosso entretenimento?

O Riocentro é enorme, mas poucos eram os espaços para a leitura. Lamento dizer que nada lá convidava à leitura. Ainda que as gerações mais jovens tenham a capacidade de realizar muitas tarefas simultaneamente, para ler, seja lá o que for, algum silêncio é necessário. Uma Bienal é território ruidoso, alvoroçado, nervoso. Atualmente com muitos flashes e filas. Leitão achou graça na “criançada correndo atrás dos ídolos”: Thalita Rebouças, Fábio Porchat. Não deveriam estar correndo atrás dos livros?

A semântica do artigo de Leitão é sofrível: festa, negócio, ídolos. Gostaria de festejar outras coisas: aumento do número de leitores, de bibliotecas públicas, de professores que leem, de pessoas que acreditam que ler pode fazer a diferença. Não são números de vendas que carimbarão nosso passaporte rumo à festa da cidadania.

Vale lembrar que o autor da mais recente tragédia brasileira, o adolescente Marcelo Pesseghini de apenas 13 anos, que matou os pais, a avó e uma tia em São Paulo, suicidando-se depois, era fã do game Assassin’s Creeds. Fim dos sonhos, fim dos tempos.

 (Analice Martins)

Duas ou três coisas que sei sobre elas

Glória Pires, Juliette Binoche, Jeanne Moreau, Barbara Sukowa. Lota de Macedo, Camile Claudel, Frida, Hannah Arendt. “Flores Raras”, “Camile Claudel, 1915”, “Uma dama em Paris”, “Hannah Arendt”. Três desses filmes são cinebiografias romanceadas, um é ficção. Todos altamente recomendáveis. Em todos, são fantásticas as atrizes e suas personagens.

Qualquer manifestação artística deve ser analisada a partir de seu tema e da linguagem que o constrói. Fora desta confluência desejável, não é difícil incorrer em truísmos e lugares comuns. Vou, no entanto, deixar de lado minhas preocupações analíticas. As linhas deste artigo são curtas para tal fôlego. Falo despretensiosamente apenas como mulher que, com a licença poética de Adélia Prado, carrega bandeira e é desdobrável. Acalmem-se! Não farei um discurso feminista com queima de sutiã em espaço público, mas apenas um registro breve da condição feminina retratada nos recentes filmes ainda em cartaz nas salas de cinema cariocas.

Em todas essas produções, as personagens são mulheres maduras. Nenhuma ninfeta. Nenhuma romântica indomável. Todas elas marcadas pelo ardor da paixão às causas e à vida, ainda que tais pulsões lhes tenham trazido o amargo da solidão e da incompreensão. Com exceção do filme “Uma dama em Paris”, protagonizado por Jeanne Moreau, ícone do cinema francês, os demais se baseiam em personalidades históricas, reconhecidas na arquitetura, na escultura e na filosofia. Suas histórias de vida são interpretadas por atrizes que souberam conviver com a passagem do tempo, despudoradas, portanto, em suas rugas iniciais ou definitivas. Atrizes que se libertaram do feitiço do espelho e do mito da eterna juventude física, que souberam vitalizar as marcas do tempo implacável, que, como nos adverte Tomás Antônio Gonzaga, “rouba do corpo as forças e do semblante a graça”.

Nesse sentido, loas a Glória Pires que, como algumas outras poucas atrizes brasileiras, não se rendeu às padronizações estéticas de nossa terra tupiniquim. Já o cinema europeu sempre tirou partido dos cabelos brancos e das rugas de suas antológicas atrizes. É bonito ver que a beleza e a graça não precisam se esgotar cruelmente na maturidade. Por isso, Jeanne Moreau pode interpretar uma personagem octogenária, como ela, e deixar resplandecer o viço que as linhas do tempo podem carregar. Interpreta uma imigrante estoniana em Paris, à frente dos preconceitos de sua época, e para quem a memória física do amor é ainda uma constante, como na linda cena em que apalpa o corpo do ex-amante, seguramente, trinta anos mais novo. Para ser verossímil, a tarefa só poderia ser realizada por uma atriz que reconhece que, na sua idade, não existem mais medos. Uma atriz atenta ao seu tempo, antenada, inclusive, como declarou ao jornal “O Globo”, com as manifestações das ruas brasileiras e capaz de compreender a importância da premiação do filme “A vida de Adele”, no último festival de Cannes, ainda inédito no Brasil.

Em um país moldado no bom-mocismo (até que nem tanto mais assim) de suas telenovelas, é libertador observar uma atriz como Glória Pires não recear interpretar, em “Flores raras”, uma personagem homossexual, Lota de Macedo, e sua história de amor com a poeta norte-amerciana Elizabeth Bishop com quem viveu por mais de uma década. A telenovela e o “jeito Globo de ser” não prostituíram a atriz, não a aprisionaram a tipos, caras, bocas, botox e silicone. É belo ver seu vigor em cena, na pele de uma personagem não menos dionisíaca. É belo ver que seu rosto e seu corpo não se amortalharam em um falso e histérico frescor adolescente.

A Camille Claudel da francesa Juliette Binoche, de “A liberdade é azul”, “O paciente inglês”, “Caché”, é comovente no desamparo da incompreensão a que é abandonada. O filme retrata, de forma concisa e lacônica, o período de sua internação em um sanatório nos arredores de Avignon, na França. As escolhas do diretor Bruno Dumont só conferem realismo à performance de Binoche que contracena com não-atores, internos reais. No cenário pétreo e descolorido desta região francesa, não há necessidade da evocação direta das esculturas de Claudel. Binoche, a atriz, esculpe e modela, com intensidade e rigor, o cruel preço das transgressões para uma mulher do início do século XX. O confinamento foi a paga para o que escapou à razão.

E é pela obstinada tentativa de compreender e pensar que a filósofa judia Hannah Arendt, discípula e ex-amante de Martin Heidegger, enfrenta o desprezo de todas as partes quando sugere que os equívocos das lideranças judaicas podem ter contribuído para a sanha nazista. A atriz alemã Barbara Sukowa se entrega com fervor à personagem por querer também, como declarou em entrevistas, mergulhar na compreensão do ser humano.

É difícil não estabelecer comparações com a estética hollywoodiana na qual imperam o plástico e o descartável. É impossível, diante de filmes assim, com personagens interpretadas por atrizes tão desassombradas e desafiadoras do tempo, não achar louvável que uma arte tão abrangente como o cinema empunhe a bandeira da transgressão, mesmo que pelo viés da dor e da solidão femininas.

Logo, não pude resistir a roubar e adaptar o título deste artigo daquele com que o crítico literário Italo Moriconi apresenta a obra de uma outra mulher “avant-la-garde”: a escritora Ana Cristina Cesar.

 (Analice Martins)