Na canção do Rei, “além do horizonte, existe um lugar bonito e tranquilo pra se gente se amar”. Na vida nossa de cada dia, o que há além da internet? Que vida persiste? O que há de palpável e incontestável? Talvez, apenas a fome e a doença. Nada mais.
Pensar assim é reconhecer que a internet se apossou de nosso tempo, nossos corpos e sentidos. Que, sem ela, não mais viveríamos, nem existiríamos de forma completa. Sem a internet, viveríamos com precariedade e limitações. Pensar assim é também constatar uma revolução do tempo-espaço e da desmaterialização de informações, vivências e sentidos. O que não significa dizer inexistência. Na virtualidade, as coisas existem sem ocuparem espaço, mas abundantemente. Ao contrário do que reza o senso comum, o virtual existe como potência, em estado latente. E esta medida assumiu uma tal concretude que dispensa materialidade, peso, volume, cheiro e paladar.
Quando a internet for capaz de saciar os estômagos e tratar os corpos, migraremos em definitivo para uma outra dimensão da existência. Não sei se quero estar lá. Gosto desta vida ao rés-do-chão e acredito que ela seja insubstituível. Fico felicíssima quando vejo sujeitos e “sujeitas” que respeito e admiro e que não negam em absoluto a importância da velocidade das informações, do acesso democratizado a elas, da comunicação que aproxima distâncias, que desfaz o ermo e o remoto, que nos acorda e sacode ainda quando em sonhos, mas que olham sem grandes euforias para tudo isso. Falo em especial do escritor João Ubaldo Ribeiro. Vez ou outra, em seu espaço dominical no jornal “O Globo”, destila uma ironia inteligente, espetando os crédulos de primeira fila, aqueles que dizem amém sem levantar os olhos, aqueles que são arrastados pela ideia de que, sem a internet, nenhuma vida haverá ou que a morte nos cobrirá ainda vivos.
Ubaldo termina seu último artigo, “Vida antenada”, afirmando que, no futuro, só existirá a internet. O fato é que nesta antevisão do baiano há uma nostalgia crítica que desconfia de que assim seremos mais felizes. Outro dia eu o vi no boteco que frequenta com assiduidade no Leblon. Fiquei lá numa mesa um pouco atrás me deliciando em vê-lo feliz sem celular, iphones ou tablets, conversando com amigos, na varanda do bar, sem pressa alguma, porque o mundo não vai acabar amanhã.
Por isso é com ironia fina que comenta que “os meninos do futuro próximo receberão implantes de chips de celulares e terão seus cérebros conectados ao wi-fi municipal, serviço obrigatório para qualquer prefeitura”. Portanto, neste mundo, é normal que as pessoas se tornem apêndices de seus iphones, tablets, óculos Google e similares”. Viva, Ubaldo! Não são necessárias muitas palavras ao humor corrosivo. O tiro tem que ser certeiro.
A irreversibilidade do mundo interconectado e fetichizado por aparelhos eletrônicos roubará a centralidade da existência humana, seremos relegados à condição de apêndices em um mundo gerido por máquinas. Pode até parecer, mas não há nada de retrógrado em não glamourizar os aparelhos eletrônicos e suas potencialidades. O que se deve perguntar é para que e para quem a parafernália eletrônica é indispensável.
Quando, no entanto, nós a entronizamos e nos tornamos dela reféns, a vida vai se evanescendo em imagens sobretudo. Mas a imagem não é a coisa, é uma realidade simulacral a que conferimos um estatuto de verdade. E assim tudo passa a ser freneticamente documentado e compartilhado. Não basta, porém, apenas documentar, é preciso divulgar na rede, em especial nas redes sociais. Como diz Ubaldo, um “documentarismo peralta”. Voyeurismo tudo bem, mas exibicionismo e violação de privacidade são a face negra do mundo virtual.
Os palestinos acabam de ganhar uma autorização para o namoro on-line, porque os clérigos reconheceram, a partir do decreto número 357, promulgado pelo Conselho Nacional de fatwas da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que os sites de relacionamento e de encontros virtuais se tornaram uma necessidade indispensável, embora só possam ser usados com muitas restrições e de acordo com os padrões morais e regras da lei islâmica. Nada de fotos, voz lânguida, assuntos privados capazes de despertar desejos e atiçar instintos, sob pena de que as portas do mal se abram, pois as únicas que devem abrir-se são as da casa da interessada para que as tradições do cortejo e do casamento sejam mantidas, já que esta liberação visa tão-somente ao matrimônio. Até mesmo o Islã se curva à internet que fura tabus em culturas tão enrijecidas. Ora, neste sentido, é até libertador.
Entre o fetiche e a necessidade, entre a ditadura do on-line e o sopro de libertação de vozes e desejos, entre a escravidão e os deslocamentos, a internet vai-se impondo como vida mais que real e tornando seres de outro mundo aqueles que não têm celulares nem redes sociais (por exclusão ou opção). Ai destes, pois arderão no fogo do inferno! Ai de mim!
(Analice Martins)