Pronto! Falei!

A 30ª Bienal do Livro do Rio terminou no domingo com um público estimado de seiscentos mil visitantes, dois milhões e meio de exemplares vendidos e R$ 58 milhões de faturamento, segundo dados apresentados, na coluna do último sábado da economista Míriam Leitão, no jornal “O Globo”. Para ela, há, portanto, motivos para comemoração.

Custei a entender o que o artigo “A festa do livro” estava fazendo, numa seção de economia, e o que a senhora Leitão tinha a dizer sobre uma Bienal. Ingenuidade minha! Eram comentários baseados, sobretudo, em estatísticas e percentuais da Comissão Organizadora do evento e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Vista pelo prisma comercial, a Bienal é um negócio da China!

Com exceção do depoimento brincalhão de Rui Campos, o dono da rede Travessa, que disse que recorreria a um traficante caso os livros acabassem, discordo frontalmente de quase todas as impressões entusiasmadas de Leitão sobre a observação do movimento do público entre estandes e auditórios. Minhas resistências a esse formato de evento só se avolumaram nesta minha ida ao Riocentro, depois de muitos anos sem pisar lá. Troquei há muito a Bienal pela Primavera dos Livros, atualmente sediada no Museu da República no Catete. Não só pela razão óbvia da distância, mas pelas ambições mais salutares da Primavera.

O negócio do livro é o tom do texto de Leitão. Um negócio que poderia até nos honrar se traduzisse números reais ou aproximados de leitores efetivos. Um consumidor de livros em Bienais é ou será um leitor constante? É apenas um leitor episódico? Que estratégias podem ser empregadas para capturá-lo? Parece-me que quase toda forma de fazer ler valeria a pena se o livro escolhido carregasse informações, reflexões, estórias e versos não descartáveis, com alguma durabilidade em nossas memórias e impacto em nossas vidas.

Uma grande amiga sempre me dizia que lia a coleção “Sabrina” para dormir. Eu achava engraçado este indutor de sono. Livros soníferos, feitos para dormir de imediato. Para a mais valia de sua leitura, “Sabrina” era literatura descartável, que nem coçava, nem entretinha verdadeiramente e que não a deixava em estado de alerta nem de sobressalto.

Na segunda-feira em que fui à Bienal, todas as sacolinhas que vi crianças e adolescentes carregando guardavam coisas estranhíssimas. Quando percebi que naquele dia não haveria nenhuma programação no “Café Literário” e desisti de me colocar como leitora à procura de títulos interessantes com preços convidativos, porque não sei folhear nada em meio a multidões, passei a me comportar como detetive ou cão de caça farejando o que aqueles jovens carregavam em suas sacolinhas. Colei-me neles, segui-os sem que percebessem, atravessei as rodinhas que formavam no chão, cansados dos percursos entre estandes. Quase cometi a indiscrição de pedir que abrissem os pacotes e me mostrassem “seus documentos”. Montei uma blitz mesmo, uma patrulha. Que horror! Mas eu precisava saber o que, via de regra, procura este público. Ah, que desolação quando os via exibindo orgulhosos o último livro da série Assassin’s Creeds, de Oliver Bowden. Mais orgulhosos ainda exibiam nos celulares a foto tirada com o boneco gigante do herói vingador, plantado na porta do estande da livraria. Vi de tudo, até álbum das Chiquititas.

Não se trata do fim do livro, mas com certeza do fim dos tempos. Pronto! Falei! Podem me chamar de alienada, elitista ou qualquer coisa parecida.  É alentador saber que, seja em suporte digital, seja em suporte impresso, o livro sobreviverá. Mas que estórias carregará ou reinventará? Que contribuições poderá trazer à nossa formação e mesmo ao nosso entretenimento?

O Riocentro é enorme, mas poucos eram os espaços para a leitura. Lamento dizer que nada lá convidava à leitura. Ainda que as gerações mais jovens tenham a capacidade de realizar muitas tarefas simultaneamente, para ler, seja lá o que for, algum silêncio é necessário. Uma Bienal é território ruidoso, alvoroçado, nervoso. Atualmente com muitos flashes e filas. Leitão achou graça na “criançada correndo atrás dos ídolos”: Thalita Rebouças, Fábio Porchat. Não deveriam estar correndo atrás dos livros?

A semântica do artigo de Leitão é sofrível: festa, negócio, ídolos. Gostaria de festejar outras coisas: aumento do número de leitores, de bibliotecas públicas, de professores que leem, de pessoas que acreditam que ler pode fazer a diferença. Não são números de vendas que carimbarão nosso passaporte rumo à festa da cidadania.

Vale lembrar que o autor da mais recente tragédia brasileira, o adolescente Marcelo Pesseghini de apenas 13 anos, que matou os pais, a avó e uma tia em São Paulo, suicidando-se depois, era fã do game Assassin’s Creeds. Fim dos sonhos, fim dos tempos.

 (Analice Martins)

Duas ou três coisas que sei sobre elas

Glória Pires, Juliette Binoche, Jeanne Moreau, Barbara Sukowa. Lota de Macedo, Camile Claudel, Frida, Hannah Arendt. “Flores Raras”, “Camile Claudel, 1915”, “Uma dama em Paris”, “Hannah Arendt”. Três desses filmes são cinebiografias romanceadas, um é ficção. Todos altamente recomendáveis. Em todos, são fantásticas as atrizes e suas personagens.

Qualquer manifestação artística deve ser analisada a partir de seu tema e da linguagem que o constrói. Fora desta confluência desejável, não é difícil incorrer em truísmos e lugares comuns. Vou, no entanto, deixar de lado minhas preocupações analíticas. As linhas deste artigo são curtas para tal fôlego. Falo despretensiosamente apenas como mulher que, com a licença poética de Adélia Prado, carrega bandeira e é desdobrável. Acalmem-se! Não farei um discurso feminista com queima de sutiã em espaço público, mas apenas um registro breve da condição feminina retratada nos recentes filmes ainda em cartaz nas salas de cinema cariocas.

Em todas essas produções, as personagens são mulheres maduras. Nenhuma ninfeta. Nenhuma romântica indomável. Todas elas marcadas pelo ardor da paixão às causas e à vida, ainda que tais pulsões lhes tenham trazido o amargo da solidão e da incompreensão. Com exceção do filme “Uma dama em Paris”, protagonizado por Jeanne Moreau, ícone do cinema francês, os demais se baseiam em personalidades históricas, reconhecidas na arquitetura, na escultura e na filosofia. Suas histórias de vida são interpretadas por atrizes que souberam conviver com a passagem do tempo, despudoradas, portanto, em suas rugas iniciais ou definitivas. Atrizes que se libertaram do feitiço do espelho e do mito da eterna juventude física, que souberam vitalizar as marcas do tempo implacável, que, como nos adverte Tomás Antônio Gonzaga, “rouba do corpo as forças e do semblante a graça”.

Nesse sentido, loas a Glória Pires que, como algumas outras poucas atrizes brasileiras, não se rendeu às padronizações estéticas de nossa terra tupiniquim. Já o cinema europeu sempre tirou partido dos cabelos brancos e das rugas de suas antológicas atrizes. É bonito ver que a beleza e a graça não precisam se esgotar cruelmente na maturidade. Por isso, Jeanne Moreau pode interpretar uma personagem octogenária, como ela, e deixar resplandecer o viço que as linhas do tempo podem carregar. Interpreta uma imigrante estoniana em Paris, à frente dos preconceitos de sua época, e para quem a memória física do amor é ainda uma constante, como na linda cena em que apalpa o corpo do ex-amante, seguramente, trinta anos mais novo. Para ser verossímil, a tarefa só poderia ser realizada por uma atriz que reconhece que, na sua idade, não existem mais medos. Uma atriz atenta ao seu tempo, antenada, inclusive, como declarou ao jornal “O Globo”, com as manifestações das ruas brasileiras e capaz de compreender a importância da premiação do filme “A vida de Adele”, no último festival de Cannes, ainda inédito no Brasil.

Em um país moldado no bom-mocismo (até que nem tanto mais assim) de suas telenovelas, é libertador observar uma atriz como Glória Pires não recear interpretar, em “Flores raras”, uma personagem homossexual, Lota de Macedo, e sua história de amor com a poeta norte-amerciana Elizabeth Bishop com quem viveu por mais de uma década. A telenovela e o “jeito Globo de ser” não prostituíram a atriz, não a aprisionaram a tipos, caras, bocas, botox e silicone. É belo ver seu vigor em cena, na pele de uma personagem não menos dionisíaca. É belo ver que seu rosto e seu corpo não se amortalharam em um falso e histérico frescor adolescente.

A Camille Claudel da francesa Juliette Binoche, de “A liberdade é azul”, “O paciente inglês”, “Caché”, é comovente no desamparo da incompreensão a que é abandonada. O filme retrata, de forma concisa e lacônica, o período de sua internação em um sanatório nos arredores de Avignon, na França. As escolhas do diretor Bruno Dumont só conferem realismo à performance de Binoche que contracena com não-atores, internos reais. No cenário pétreo e descolorido desta região francesa, não há necessidade da evocação direta das esculturas de Claudel. Binoche, a atriz, esculpe e modela, com intensidade e rigor, o cruel preço das transgressões para uma mulher do início do século XX. O confinamento foi a paga para o que escapou à razão.

E é pela obstinada tentativa de compreender e pensar que a filósofa judia Hannah Arendt, discípula e ex-amante de Martin Heidegger, enfrenta o desprezo de todas as partes quando sugere que os equívocos das lideranças judaicas podem ter contribuído para a sanha nazista. A atriz alemã Barbara Sukowa se entrega com fervor à personagem por querer também, como declarou em entrevistas, mergulhar na compreensão do ser humano.

É difícil não estabelecer comparações com a estética hollywoodiana na qual imperam o plástico e o descartável. É impossível, diante de filmes assim, com personagens interpretadas por atrizes tão desassombradas e desafiadoras do tempo, não achar louvável que uma arte tão abrangente como o cinema empunhe a bandeira da transgressão, mesmo que pelo viés da dor e da solidão femininas.

Logo, não pude resistir a roubar e adaptar o título deste artigo daquele com que o crítico literário Italo Moriconi apresenta a obra de uma outra mulher “avant-la-garde”: a escritora Ana Cristina Cesar.

 (Analice Martins)

Sereia de um outro mar

Texto lido por mim em homenagem a Ruth Maria Chaves Martins, minha mãe, na Academia Campista de Letras, em 26/08/2013.

Faço coro com a bela imagem que minha irmã, Luciana, recolheu para descrever nossa mãe.  No desassossego da saudade primeira, em texto feito dias depois de sua partida, disse então: “Lembro-me de que, aos sete anos, em uma viagem a Belém do Pará, sua terra natal, presenciei extasiada, no mercado Ver-o-Peso, um rio que só o norte possui e cujas margens não se veem. Notei assustada que minha mãe chorava. Viver e conviver com ela era nunca enxergar a outra margem. Quem já teve a oportunidade de ir ao Norte, lembrará que a essência de sua alma só poderia ser paraense: imensa floresta, rios volumosos sem margens à vista, imensidão… Viver e conviver com ela sempre foi um longo e profundo mergulho”.

Nada em nossa mãe foi pequeno, tudo foi vasto e volumoso: seu talento literário, suas leituras, sua memória, sua inteligência, sua competência profissional, sua dedicação ao magistério. Maiores ainda, sei que hão de concordar, foram sua generosidade cristã, seu espírito maternal, sua simplicidade e sua modéstia que, talvez, nem nos permitisse, em vida, homenagem deste porte. Se a fazemos, agora, é porque queremos aplacar nossas saudades e louvar ainda outra vez suas virtudes. Nossa mãe foi uma bem-aventurada, porque pura de coração. E estes verão a face de Deus.

Grandes foram suas perdas, maiores, entretanto, suas atitudes de superação e de abnegação. Como mãe, sempre foi o abrigo acolhedor de nossos medos, inseguranças e tropeços e o trampolim de nossos esforços.

Nenhuma palavra dirá o bastante de sua vida, nenhum depoimento reunirá as histórias e as confidências de cada um, nenhuma louvação ou elegia será parelha ao que nos legou, a nós seus filhos, amigos e aprendizes. Ruth Maria Chaves Martins fez da vida poesia em seu sentido stricto, do grego “poiésis”: criação, agir criativo e essencial. Logo, foi poeta em tempo integral. Permanecerá nos corações e nas memórias de todos que aqui estão e de muitos outros, porque seu “agir criativo”, em qualquer dimensão da vida, foi essencial. Não será por adjetivos que a relembraremos, mas pelo que, na vida, é substantivo, como sugere a etimologia do nome Ruth(do hebraico): companheirismo, lealdade, beleza plena.

Melhor então que suas próprias palavras digam do que foi, como no poema “À mesa”, de inspiração cabralina, em que podemos ler o compromisso com a vida:

O pão é fresco e triste

e me interpela a voz de quem

ao lado não ocupa tua ausência.

 

O vinho é forte e triste,

justo cristal no copo

como a memória em mim.

 

Alto e triste é o relógio.

A morte diz nas horas:

– tempo que vai, não vem.

 

Talhares se descruzam

como destinos.

 

O guardanapo limpa

o silêncio dos lábios.

 

Mas é-me um compromisso

com a vida,

no prato raso como a esperança,

esta intacta maçã

queimando-se em doçura.

A propósito dos versos de Roda, Pião!, diz Marly de Oliveira, poeta e amiga de toda uma vida, na orelha do livro: “não nos engane, porém, sua aparente facilidade, que fruto não é de uma despreocupação técnica, mas de uma luta com a palavra, de onde só saem vitoriosos os verdadeiros poetas.” Como já bem reconhecera Bandeira e outros tantos poetas e escritores com os quais conviveu: Cecília Meireles, Walmir Ayala, Mauro Mota, Augusto Frederico Schimidt, Afonso Félix de Souza, Carlos Drummond de Andrade.

Entre seus autores preferidos, estava Guimarães Rosa, que lamentou não ter conhecido pessoalmente, mas que a lera e a distinguira como poeta, conforme me segredou encabuladamente. Guimarães Rosa a elogiara, segundo o jornalista e crítico literário maranhense Franklin de Oliveira, amigo comum e que publicara no extinto jornal Correio da Manhã seu poema “Sereia”, este que leio agora como homenagem ao seu decantado talento e como canto de despedida:

Marujos das altas noites,

já não vos posso encantar!

Sou, entre o eterno e o minuto,

Sereia de um outro mar.

 

Que triste em meus olhos bruxos!

Que mistério em meu penar!

 Acabrunhada sereia,

 encantei-me em meu cantar.

 

 Teci no amor meus cabelos

 para melhor quebrantar,

 e agora os alongo longos

 a fim de me amortalhar.

 

O alto céu crespo de estrelas

 precipito em meu olhar

 e me achego à própria sombra

 ante mim, ninguém e o mar.

 

 Marujos, não vos encanto

 se, reclinada ao luar,

 meus lívidos lábios tremem

 como se fossem chorar.

  

Que morro ante o vosso encanto

e apresso-me em descansar

nos vagos corais do sono,

no fundo de um outro mar.

Mãe querida, receba neste “outro mar” para onde levou seus cantos e encantos”, a saudade e a gratidão dos que ficaram sem o alento de sua presença.

(Analice Martins)

O texto nosso de cada dia

Quando o cronista engasga na matéria a ser escolhida, quando nada vem em seu socorro, quando fatos, notícias, ideias fixas, temas prediletos não lhe suscitam uma percepção pessoal, um ponto de vista instigante, é para o exercício da própria escrita que se volta, é em seus livros de cabeceira ou em seus novos companheiros que encontra pouso e de onde tudo recomeça como barro maleável, dócil ao desenho que as mãos lhe darão.

A poesia de Armando Freitas Filho não me é uma leitura nova, feita pela primeira vez, embora toda leitura, quando intensa, convide sempre a outras vezes, porque não se lê para esgotar assunto ou forma, lê-se para reinventá-los. Por isso, o poeta acerta quando confessa, em “Há meio século”, poema do recém-lançado Dever (2013): “Componho para além do fôlego/da folha, para fora do papel./Não é como escrever firmando/ no tampo da mesa, na página/do livro, no tempo da areia/sujeita ao mar, sequer. Componho/para frente, onde o leitor se forma/no espaço e lê, e leva o que possuiu”.

Armando Freitas Filho está lá no experimentalismo e nas inquietações da Poesia Marginal dos anos 70, mas também está além, nesses 50 anos de produção literária, entregue à “luta vã com as palavras”, como já dissera Drummond, referência maior em sua trajetória e a quem dedica, neste Dever, o belo poema “O nome de um pai”, para quem “a morte incorrigível/já tinha chegado, há tempo.”

Recorrendo a Borges e a Mallarmé, revisita o tema sempre necessário das teorias poéticas da composição e da leitura. Colhe, em “A biblioteca de Babel”, o conto borgeano que constitui um lugar teórico de reflexão sobre a escrita e a leitura, o mote para dizer que “Cada livro é um capítulo/vindo de dentro de outro livro/ e assim sucessivamente”, para concluir, a contrapelo, “não tenho o gênio/o engenho para dizer/ que tudo vai acabar num livro.”/ Só sei que tudo não acabará/ num livro, que tudo/ vai acabar comigo”.

Neste poema “Livros”, o poeta afirma que só Borges leu todos os livros, sabendo dos que precisava, porque pressionado pela cegueira, mas que ele, “poeta cego desde sempre” não tinha tal urgência. Portanto, os livros “transbordam pelas estantes” sem que ele consiga arrumá-los, pois “se os arrumasse/ os arrumaria como na morte”.

A biblioteca do poeta, então, tem que ser duvidosa para que lhe permita “ler, reler, interromper, não ler, esquecer, perder.” Neste poema intitulado “Biblioteca duvidosa”, agarrei minha lavra desta semana, não como desculpa para a urgência e a preguiça de considerar arrumar meu próprio escritório, mas como defesa de que uma ordem catalográfica em nada talvez ajude o gênio criador. Como indaga o poeta, não é melhor tê-los “estourados/pelo tempo da traça e da leitura/pelas estantes que os regurgitam/ou que os engolem, crus, sem abrir” a “arrumá-los metro a metro, bibliotecária-/mente, com todas as lombadas certas/por assunto, sabor e peripécia/desfazendo as pilhas de autores sortidos/ o retrato do que vai por dentro/do escritório e do escritor/não seria vazio, de mentira, findo?”

Não se iludam apressados os que concluírem que esta imagem corresponda à falta de método. Ao contrário, ela é o próprio método que permite o “lance de dados” mallarmaico. Nesta aparente desordem, esgueiram-se “os entrelivros invisíveis”. Assim como cada livro é um capítulo vindo de outro livro, uma biblioteca de verdade deve nos abastecer a sanha, deve guardar invisíveis nossas associações livres ou arbitrárias, nossos desejos e descobertas para que, não tendo tempo para ler todos os seus livros, vivamos deste incômodo.

Em “Edições de Mallarmé”, Armando dá a senha para aqueles que não estão sempre ao alcance da mão, mas que se alojam na imaginação: “Entre os livros há os entrelivros/invisíveis quando estão perfilados/ que quase se esquecem de ser./ Magros, mais perto da imaginação/do que da mão, ocupam na estante/o lugar nenhum, no entanto são deles/os primeiros dados, ainda trêmulos/no meio do lançamento e da aterrissagem”.

Por isso, ainda que sem a “visita instigante da inspiração”, é melhor se entregar ao dever de escrever, porque, como reconhece o poeta, escrita é também uma “série de exercícios de repetição”. Em poema de 2007, Armando Freitas Filho justifica seus cinquenta anos de luta diária com as palavras: “Evito não escrever, mesmo se não há/ convite ou visita instigante da inspiração./Escrita é treino, ginástica, rascunhografia/momentos vários de dias em um dia único, indiviso./Série de exercícios de repetição, a fim de alcançar/não menos, mas mais segundos para a mão./O tempo todo, sofrescrevo, só, preso/na oração torturada pelo predicado do sujeito/intransitivo, em transe hermético, trancado/no escritório automático do quarto, na cabeça/ ou ao ar livre, sem suporte, cheio de gralhas./ No final sem fim, subscrevo, não subverto – ecoo.”

(Analice Martins)

Desconfianças da tecnologia

Pode até parecer ranzinza a posição que vou defender aqui, porém quanto mais me aproximo da tecnologia direcionada à educação, menos a acho indispensável para a construção reflexiva do conhecimento. Talvez, por ser uma imigrante digital e pouco dada a grandes mudanças, para quase tudo que é alardeado como avanço, tenho alguma ressalva. Este artigo é uma lista incompleta e falha de exemplos, destinada, talvez, a virar piada entre especialistas.

Que fique claro também que falo de um país com economia pujante, índices melhorados de crescimento, mas ainda com sérias desigualdades sociais e educacionais. Em países como o nosso, a tecnologia pode até mesmo aumentar as distâncias e tornar intransponíveis determinadas fronteiras. Ou seja, o tiro pode sair pela culatra.

Sou do tempo em que os computadores não eram domésticos, muito menos portáteis, um disquete era uma bolacha de plástico de 8 polegadas, as impressoras eram matriciais e tinham rolos de folhas contínuas, e-mails não existiam, não havia educação à distância, nem celulares, e todo este mundo tecnológico que nos parece imprescindível hoje era uma miragem, um filme de ficção científica. Por isso, embora não apocalíptica, não sou uma entusiasta de primeira fila. Tenho mesmo o pé atrás.

Acompanho com atenção as discussões de especialistas sobre modos de leitura em suportes diferenciados, leitura verticalizada ou fragmentária, leitura focada ou simultânea. Por isso, fico muito recompensada quando vejo opiniões como a de Jorge Wagensberg, físico espanhol que criou e dirigiu o Museu de Ciência de Barcelona, e está no Rio de Janeiro para a 23ª conferência do ICOM, o Conselho Internacional de Museus. Para ele, segundo matéria do jornal O Globo, de sábado passado, a tecnologia vem sendo usada de forma “um tanto histérica e fetichizada”, como se estivesse nela a dinamização do que deveria ser contemplado, absorvido e maturado em um museu, até porque, além de caducar, ela pode se esgotar em si mesma. Um museu é onde o que está guardado se prolonga para além de muros e redomas, saindo de sua condição objetal para uma dimensão existencial. Concordo plenamente com a afirmação de Wagensberg: “Um visitante tem que sair do museu com ‘fome’, ou seja, com mais perguntas ao sair do que tinha ao entrar”.

Portanto, a tecnologia na educação, além do inestimável benefício aos portadores de necessidades especiais e da concretude conferida ao abstrato de fórmulas matemáticas, físicas e químicas, tem que sair de sua imobilidade pleonástica. Por que, em alguns ambientes educacionais, ficou absolutamente démodé falar sem a utilização de slides em power point, ainda que este recurso ali esteja apenas para pontuar os tópicos de uma exposição oral, sem nenhum acréscimo substantivo de informação? Há quem, sem slides preparados, nem entre em sala. Logo, há alunos que não querem se predispor a ouvir ou mesmo copiar de próprio punho qualquer informação ou exercício que se coloque sobre as lousas. Quando a imagem e o som são condição sine qua non para argumentação, vá lá, mas quando são mero exibicionismo de recursos, sem promover o conhecimento e a reflexão, que fiquem guardados.

Digo isso, pois acredito que as máquinas carecem da inteligente mediação humana. Sempre digo aos meus alunos que desconfiem dos corretores ortográficos e, sobretudo, sintáticos, pois a intenção e a performatividade de nossos discursos podem extrapolar aquilo que foi programado como regra. Uma máquina ou mesmo um software não pensam por si mesmos, não dão conta da criatividade de nossas falas. São, no entanto, fundamentais para coibir erros de grafia ou displicências de nossas digitações, são uma fonte de consulta às regras sintáticas de concordância, regência, crase ali dispostas. Mas insuficientes. No dia em que houver um programa ou software que possa prever nossas intenções semânticas e dar conta delas, estaremos diante de uma revolução. Por experiência própria, como professora, pouco vejo os alunos usuários do word se dando ao trabalho de um simples comado de revisão. A urgência e a celeridade não consideram as marcações feitas em sublinhados vermelhos ou verdes. Nesse sentido, o uso do editor de texto em nada difere daquele da máquina datilográfica, objeto de saudosismo de alguns poucos.

O e-reader, por exemplo, é uma maquininha que permite o armazenamento de milhares de livros e sua portabilidade. Isso é tão fantástico quanto saber que uma célula invisível a olho nu pode carregar um mundo de informações. Revolucionário, entretanto, seria poder constatar, daqui a alguns anos, que a leitura, processo sensório-cognitivo de descoberta de linguagens e mundos, pudesse corresponder ao quantitativo de armazenamento de uma máquina de módicos 300 gramas. Será que um leitor de livros, com recursos para grifos, destaques, notas, comentários e, às vezes, acesso a internet, produz vontade de ler, aprofundamento de informações e reflexões? Um e-reader com tais recursos é capaz de gerar “a fome” de que fala o físico espanhol? É capaz de construir perguntas, já que a capacidade crítico-reflexiva não está na formulação de respostas e soluções apenas, mas sobretudo na curiosidade, na dúvida e na imaginação?

(Analice Martins)

Um escritor de seu tempo

Em 1873, Machado de Assis, em artigo intitulado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, reivindicou para si a condição de escritor de seu tempo, imerso na realidade histórico-social brasileira da segunda metade do século XIX. Poderia parecer desnecessária tal preocupação com seu lugar de reflexão, enquanto artista de sua época, mas, para um Brasil que havia recém-abolido a escravidão – que durara três séculos – e recém- ingressado no regime republicano, ou seja, que mal saíra da condição de colônia, entender e fruir a prosa machadiana talvez não fosse tarefa fácil. Aliás, ainda hoje não parece sê-lo.

Embora tenha tido, em vida, as honrarias de maior escritor do país, sendo o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, sua prosa ficcional era vista com ares e temáticas universais, estas que, seja a época, seja a cultura em que se manifestem, sempre serão atuais e bem-vindas: o amor, o ciúme, a traição, a hipocrisia, a memória, o humor. É óbvio que nada disso lhe pode ser negado e que, por isso mesmo, seja ele nosso escritor mais influente. Não por outra razão, o igualmente influente crítico literário nacional Antonio Candido afirma, no artigo “Literatura e Subdesenvolvimento”, do livro A educação pela noite e outros ensaios (1987), que, se Machado não tivesse sido refém da pouquíssima penetração da língua portuguesa e da projeção do Brasil no século XIX, ele teria sido o que o argentino Jorge Luís Borges foi para a Europa: um modelo, uma influência internacional, um escritor capaz de, na periferia do cânone literário europeu, ser uma matriz ficcional original.

Este lamento de Candido só corrobora a importância da obra machadiana para além das fronteiras nacionais. O que me parece ainda pouco explorada, para não dizer preterida, pelo menos nos estudos escolares do Ensino Médio, é a percepção de Machado de Assis como um “intérprete do Brasil”, ou seja, aquele cuja obra de ficção não esteve longe das tensões sociais da segunda metade do século XIX, mas, ao contrário, sem ter necessidade de explorar os ícones de nossa nacionalidade, como o bem fez José de Alencar nos planos temático e estrutural, incorporando a natureza e o índio heroificado como símbolos de nossa brasilidade, além de um vocabulário de origem tupi-guarani, conseguiu dar conta do Brasil de um modo não epidérmico. Conseguiu retratar as mazelas do Brasil sem mencionar explicitamente as contradições de um país que começava a comungar ideias liberais e republicanas tendo que lidar com uma sociedade pós-escravocrata.

São pouquíssimos os estudos críticos que identificam ou reconhecem na obra machadiana esta dimensão sociológica de interpretação do Brasil. Sim, porque a ficção é também uma forma de interpretar não só o psiquismo dos indivíduos como também a história político-cultural de uma comunidade, de uma região ou mesmo de um país. Os mais importantes estudos acadêmicos se preocupam em enaltecer a universalidade dos temas machadianos, mas não conseguem alcançar o fato de que sua universalidade não se dissociou da refinada análise de seu tempo. Seu maior mérito foi transportar para o plano estrutural da obra os resquícios da opressão senhor-escravo reinantes no Brasil nos três séculos anteriores. Esta atmosfera que nos relegava a uma posição atrasada, enquanto nação independente foi, inteligentemente, erguida na construção de um narrador, segundo o crítico Roberto Schwarz, sem credibilidade, repleto de desfaçatez e opressor: “Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote”. É assim que, abusadamente, o narrador faz gato-sapato do leitor a quem, com ironia, qualifica de “fino”, mas incapaz de compreendê-lo.

Roberto Schwarz é, neste sentido, o maior crítico da obra machadiana, porque não hesitou em perseguir as chaves de entendimento que o próprio Machado já anunciara em “Instinto de nacionalidade”: “Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam nossos escritores a essa só fonte de inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de estudo” (…) O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e de seu país ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”.

Ora, é este “sentimento íntimo” que Schwarz disseca, em Ao vencedor as batatas (1977) e Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo (1990), estudos capitais para se entender como não se pode dizer, em hipótese alguma, que o maior mérito machadiano está no universalismo de suas temáticas. Estas não podem ser analisadas sem a estrutura narrativa que as coloca de pé e de forma singular.

Ser, portanto, um “escritor de seu tempo” implica encontrar uma fórmula pessoal para, nos planos do conteúdo e da forma, ter como norte do projeto literário um “sentimento íntimo” de percepção da realidade pessoal e histórica que o circunda, fazer dele matéria literária e, com isso, não ter que ser refém de fórmulas estereotipadas, modismos ou tendências.

(Analice Martins)                                          

É TUDO VERDADE!

É o cinema que dá à imagem movimento. Por isso, o teórico Christian Metz diz, em A significação no cinema (1972), que, entre as artes, é esta que cria, para o espectador, a mais convincente impressão de realidade. A imagem em movimento revoluciona os modos de percepção de forma assustadora.

Para ele, o teatro ficaria numa escala abaixo de acordo com este critério, pois quaisquer tosse, espirro, tropeção fora do roteiro poderiam comprometer ou mesmo romper a ilusão de que estamos diante da realidade em si mesma. Já no cinema nos enredamos nesta teia com muito mais facilidade, a tal ponto que um filme de época – que retrate fatos bem pretéritos – pode nos sugerir uma sensação de atualidade como se estivesse ocorrendo naquele momento ou como se fôssemos transportados para aquela época. A tela se dilui, não separa o concreto da projeção da imagem, que ganha uma vida autônoma capaz de nos produzir o desejo de querer fazer parte dela ou tocá-la, atravessando a tela.

Todas as formas de expressão artística têm poderes ilusórios. A arte é um engodo legítimo. Sua força de credibilidade não está atrelada à realidade concreta, mas sim aos dispositivos que nos fazem crer e sentir como possível o que vemos, mesmo que jamais tenhamos passado por experiência parecida. Isso a torna potente e deliciosamente perigosa.

O som é também elemento fundamental para a criação dos mecanismos encantatórios que envolvem o espectador. O cinema reúne em uma mesma imagem estes dois quesitos. Considero a argumentação de Metz bastante procedente, concordo com o escalonamento que ele fez, a partir do quesito “movimento”, para analisar manifestações artísticas como a pintura, a escultura, o teatro, a fotografia, o cinema.

Mas no último sábado assisti, pela primeira vez, ao trabalho da Companhia Contadores de Estórias, criada por Marcos e Rachel Ribas, e sediada em Paraty (RJ) desde 1981. O casal que há 40 anos realiza espetáculos em vários países, tendo passado da encenação de rua para o teatro de câmara, tem a valiosa colaboração criativa de Inez Petri desde a década de 90. Os espetáculos que já misturaram diversos elementos (música, dança, bonecos de até quatro metros), hoje, concentram-se no minimalismo de pequenos bonecos, que, entretanto, parecem-nos grandes e pulsantes como a vida.

Já havia assistido a espetáculos dessa natureza, mas nada como “Em Concerto”, exibido às quartas e aos sábados no Espaço Teatro em Paraty e aclamado pelo público e pela crítica especializada nacional e internacional. Saí de lá emudecida com o espetáculo desprovido de qualquer palavra, na linguagem universal dos gestos. Saí de lá pensando ser falha a teorização de Metz. O teatro, mesmo com as possibilidades de intervenção do real, já que encenado ao vivo, é passível de igual ilusão de realidade. A imagem em movimento não é atributo exclusivo do cinema. O teatro de bonecos de Paraty está imantado de movimento. Aqueles bonecos inacreditavelmente confeccionados e manipulados têm poros e vida!

Uma rápida consulta ao site www.ecparaty.org.br nos dá a medida da recepção crítica do trabalho realizado pela companhia: “Bonecos que emocionam, um primor de lirismo e arte cênica” (Carlos Eduardo Godoy, Isto é); “É uma alquimia espetacular. É poesia cênica sem palavras, com muito sentimento (Tânia Brandão – O Globo); “O público fica chocado”(Michel Cournot – Le Monde).

O lirismo vem, sem dúvida, da concisão cênica, do minimalismo dos bonecos e de sua manipulação cirúrgica. Por que ficamos chocados como diz o crítico do Le Monde? Porque os bonecos têm uma leveza de movimentos e expressões que traduzem sentimentos universais como erotismo, alegria, dor, solidão, morte. Porque parecem reais, porque se tornam grandes, porque, sem deixarem a condição de bonecos confeccionados, ganham alma com o movimento delicado da manipulação. No palco, não vemos bonecos, vemos pessoas, vemos a nós mesmos, embora saibamos que são bonecos. Aí está o fascínio da arte: deixamo-nos iludir. E, quando a luz se acende, vamos embora crédulos, esperando que a mágica não se desfaça de nossas memórias.

O espetáculo “Em concerto” se divide em episódios curtos, dos quais destaco Valsa, Primavera, Índia e Concepção. A tecnologia hoje nos permite qualquer acesso sem deslocamentos físicos. Há vídeos no Youtube, há fotos, entrevistas, depoimentos, há dvds. Mas, diante do palco, quando o espetáculo termina e a ilusão se desfaz, só ficam os manipuladores vestidos de preto, sorrindo diante da mágica operada. Guardam os bonecos que gostaríamos de abraçar e com os quais conversaríamos sem dúvida, como disse Stephen Holden do New York Times: “Ao final da apresentação sem palavras, fica a extraordinária sensação de que as figuras em miniatura são mais reais que os humanos”.

(Analice Martins)

Os efeitos de real

Na tela “Menino Morto”, de Candido Portinari, as lágrimas que escorrem do rosto da menina são desproporcionais ao tamanho de seu rosto. Lágrimas enormes, grandes como a miséria nordestina. A irrealidade destas lágrimas não perturba a percepção estética da tela. Ao contrário, traz-lhe um efeito de veracidade mais forte do que em certas fotografias jornalísticas.

No mês passado, assisti à exposição “Gênesis”, de Sebastião Salgado, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Presenciei uma cena muito curiosa. Uma senhora, acompanhada de amigos, exclamou diante da foto dos xamãs da tribo camaiurá do Alto Xingu:“Não, isso não é real! Isso não existe. É hiper-realismo”. Parei, voltei os olhos para observar mais uma vez a fotografia imensa, quase uma tela, disposta como outras entre as palmeiras imperiais. Cheguei a me aproximar para comprovar o que ela dizia. Acabei despertando minhas antigas resistências ao trabalho do célebre fotógrafo, críticas como a estetização da miséria, o sensacionalismo da pobreza, presentes em suas fotografias desde as exposições “Trabalhadores” e “Êxodos”. Relembrei comentários que lhe negavam o engajamento político comum à atividade fotojornalística.

O fato é que, até então distraída, passei a olhar a longa exposição com muita desconfiança. Para piorar minhas inquietações, via pessoas que já tinham tudo percorrido, carregando o enorme, pesadíssimo e caro livro-catálogo da exposição. A elas, provavelmente, não incomodou a impressão de excesso de realidade das fotos, algo que acabava descambando para o questionamento de seu estatuto de verdade, mesmo sendo a fotografia a mais mimética das artes.

De início, pensei na técnica da contraluz, utilizada por Salgado. Aquela em que a luz vem da frente do fotógrafo, embaçando a cena. Depois, criei uma segunda explicação para a implicância da senhora, que voltava a ser também minha. As fotos que estavam ao ar livre, fora dos salões do Museu do Meio Ambiente, deveriam ter sido impressas em um material especial para resistir à chuva e ao sol. Portanto, era essa a razão da impressão de falsidade, somada, no caso da foto referida, a uma espécie de “fundo falso”, um espaço escurecido e diluído. Apenas os índios em primeiro plano e nada mais. Fundo negro e fictício.

No mesmo fim de semana, fui a uma outra exposição de fotografias: “A vida em movimento”, do francês Jacques Lartigue. Ambas em preto e branco, com um século de distância, além das técnicas distintas. Como o próprio título da exposição já diz, as fotos selecionadas de Lartigue insistiam em capturar o instante, a velocidade, o salto, uma energia invisível. E conseguiam. Simulavam perfeitamente o real.Tanto assim que, colocadas em sequência, são uma forma de cinema.

Com o avanço da técnica e da tecnologia, a fotografia parece ter mudado suas intenções. Se, antes, seu intuito era evocar o real e capturá-lo. Hoje, tudo indica que sua razão de ser é ir além da realidade, atravessá-la e instaurar uma outra ordem. O fotoshop fez com que ela perdesse a credibilidade do real e se tornasse uma possibilidade de invenção. Nenhum problema haveria se ela não carregasse, na maioria das vezes, o ranço do cheiro da realidade, dos seus vestígios. Na hiper-realidade, os resíduos e vestígios que atestariam seus elos com o “acontecido” desparecem.

Por que, então, aquelas lágrimas expressionistas de Portinari são capazes de fazer chorar o desamparo, a dor e o abandono nordestinos? Por que, sendo parte de uma experiência vanguardista de representação artística, aquelas lágrimas “mentirosas” fazem “chorar” a verdade da terra que arde qual fogueira de São João?

Por que, na tela de Portinari como nas artes em geral, o falseamento da realidade pode não impedir seus efeitos de credibilidade? Por que a ficção pode, mesmo que torcendo o real, produzir sensações tão palpáveis? E por que as tecnologias contemporâneas de captura do real parecem esfumaçá-lo, fazendo com que perca sua tangibilidade?

Explicações para esta potência de realidade foram erguidas desde a Antiguidade Clássica. Platão e Aristóteles procuraram entender, ainda que de formas distintas, isso que chamamos de verossimilhança: a possibilidade de ser verdade, de parecer verdade.  Para Platão, em sua alegoria da caverna, a realidade se esconde atrás das imagens. Para Aristóteles, a realidade pode estar na própria imagem.

Tal constatação aristotélica libertou a arte do tributo de realidade que lhe é cobrado. Aristóteles conferiu à representação autonomia estética. Aristóteles entendeu que, por intermédio da verossimilhança, a arte pode nos parecer mais real do que a própria vida. O problema existe quando o que se apresenta como a mais inquestionável das realidades, aquela capturada por um dispositivo mimético como a fotografia, provoca-nos um efeito contrário de distanciamento, como na reação da esperta senhora por quem passei.

Por isso, a arte nos é tão essencial, porque, sem ter a pretensão de fotografar a vida como ela é, pode, no entanto, trazer-nos os mais legítimos sentimentos e reações, fazendo-nos acreditar, conscientemente, que é ali que a vida pulsa e arde.

 (Analice Martins)

Oh, intrépida amazona!

Nem formosa, nem intrépida. Tampouco amazona. Onde a mágica torrente de teu Paraíba? Oh, Campos, por que nos abandonaste?

Não é hora de complacência nem de saudosismos aristocráticos. Eis que, mais uma vez, é chegada a hora de muitos protestos, de muitos gritos de “basta”. Campos perdeu o bonde da história. Não há construção civil, prédios altaneiros, pontes novas, Porto do Açu, universidades sanguessugas (que chegam e se vão), redes potentes de supermercados e concessionárias de carros importados que indiquem algum real índice de crescimento. Não nos verticalizamos como as construções urbanísticas. Continuamos na mais absoluta horizontalidade, na mais cruel das platitudes, sem conseguir vislumbrar horizontes para todos.

No início dos anos 90, um amigo jornalista, carioca de verve ácida, de passagem pela nossa cidade, perguntou-me como é que eu havia voltado para uma cidade que tinha, em um dos pontos mais nobres à época, uma cabeça de boi no portal do restaurante, música ao vivo em todos os bares e nenhum restaurante japonês. Tentei lhe explicar, sem muita credulidade, a dinâmica de uma “cidade do interior”, provinciana, de tradição ruralista. Não colou nem para mim!

Para um olhar citadino e cosmopolita como o dele, foi difícil entender nossas temporalidades até hoje concomitantes: a carroça de burro, a bicicleta, os carros de passeio e as obscenas caminhonetes em nossas pobres ruelas. Sim, ruelas! Ninguém pode dizer que a avenida 28 de março possa sustentar tal designação. É ruela sim! E assassina!

Deixando de lado a provocação de meu amigo, com a qual tacitamente concordei, não podemos ser felizes convivendo com tantas barbáries. De fato, um verniz cosmopolita nos chegou. Hoje, temos restaurantes italianos, japoneses, chineses. Os árabes sempre existiram. Temos muitas lojas de departamentos (Renner, C&A, Leader, Casa e Vídeo, Lojas Americanas etc), franquias, Peugeot, Toyota, Honda, Hyundai, mas e daí? Continuamos órfãos, abandonados e carentes.

Afinal, quem há de não lamentar nossos anacronismos e retrocessos? Vivemos em uma cidade que, tendo perdido sua vocação agropecuária, não soube se realocar na nova ordem mundial. Uma cidade que é refém de uma prefeitura que tiraniza nossos direitos à saúde, à educação e à moradia, que os substitui por práticas assistencialistas. Uma cidade em que o sonho de consumo cidadão é ter um “bico” na prefeitura, não um emprego para o desempenho honrado de uma função social. Uma cidade sem livrarias, com bienais e shows de cifras exorbitantes, uma cidade cujos cinemas só funcionam em shoppings, só exibem filmes dublados e comerciais, em que os diretores das escolas municipais são indicações de políticos. Uma cidade com um imponente teatro – frágil presa de falsas moralidades. Um teatro-palco, não um teatro-instituição. Um teatro que coloca no “bolso” seu irmão menor.

Não me venham com argumentos de ilusórios progressos cidadãos: passagem a um real, bolsas família e escola, farmácia e restaurantes populares etc. Tenho absoluta consciência do quanto tal quadro de benefícios assiste a nossa carente população. Sei bem que, sem fome aplacada e sem saúde cuidada, não há esforços educacionais e culturais que possam vingar. Mas não concordo que seja por uma via clientelista que devamos construir condições de empregabilidade e autonomia de pensamento.

Quando, em minhas idas e vindas semanais, entre Rio e Campos, desde 1987, fui observando da janela do ônibus a cidade que crescia e se erguia, apontando para o céu (“Olha para o céu, Frederico”!), alimentava a expectativa de que esta verticalização, acompanhada da chegada de universidades como a UENF, da expansão de câmpus da UFF, pudesse se somar à trajetória já consolidada de instituições como a Faculdade de Filosofia e de Direito de Campos, hoje pertencentes ao UNIFLU, da Faculdade de Medicina e da antiga Escola Técnica, hoje IFF, e nos oxigenar. Vã expectativa.

Apesar deste crescimento, continuamos a chafurdar em nossos lamaçais. Ah, Campos formosa, em que espelho te miras? Ah, Campos intrépida, por que não acertas o passo de teu galope? Por que temos que nos deparar com atitudes tão empobrecedoras como esta que nos enxovalhou mais uma vez? Não bastassem os escândalos denunciados, em 2008, pelas operações “telhado de vidro”, temos ainda que ser dignos de nota, em cenário nacional, por episódio tão obscurantista e medieval como este do cancelamento da apresentação da peça “Bonitinha, mas ordinária” de Nelson Rodrigues?

Nessas horas, penso na doce advertência de minha mãe quando decidi retornar à planície goitacá: “O que você quer fazer por aqui?”. Anos mais tarde compreendi que não era uma atitude pouco amorosa, ao contrário, era prova do máximo desvelo de quem, campista que não era, nunca entendeu que houvesse uma rua, “a do homem em pé”, pela qual mulher não pudesse passar.

 (Analice Martins)

A rua e a multidão

Cenário das recentes e recorrentes manifestações populares no Brasil e em outros lugares do mundo, como a França e o Egito, a rua tem reunido multidões por razões variadas, mas todas com um clamor político, mesmo que não explicitamente partidário.

A rua e a praça são espaços públicos de trocas simbólicas. São uma experiência compulsória com a alteridade. Portanto, representam dinâmicas de constituição do sujeito. Sem a rua, vê-se a vida apenas pela janela ou pelas telas. A rua permite tanto uma atitude de desnudamento da privacidade quanto de anonimato. É este paradoxo que a torna fascinante dos pontos de vista sócio-antropológico e literário.

Para as relações sociais, a rua é o espaço dos serviços, do comércio, do trânsito, da diversão. A rua estabelece a contingência do encontro para a realização de alguma atividade. É um espaço privilegiado para vivenciar e entender o Outro que se avizinha casualmente. Para a literatura, a rua inaugura a modernidade de certa forma, ou mais especificamente, o modernismo. Desde o século XIX, entretanto, em certa expressão do Romantismo, modos, hábitos, comportamentos e cenários ganham os contornos públicos da rua, a partir dos primórdios da urbanização.

Nos dias atuais, a rua tem sido palco de reivindicações e confrontos. No Brasil, em especial, assistiu-se a uma singular organização desses movimentos. No espaço que é também o seu avesso – o privado -, ou seja, o dos computadores pessoais que, antes da web 2.0 e da explosão das redes sociais, eram um território que permitia a distância física e algum anonimato, orquestrou-se o maior movimento de rua, desde o “impeachment” do ex-presidente Collor, em 1992. O Brasil não é a França, país em que, pelo menos em Paris, assiste-se a um protesto por dia. O gigante sempre foi pouco dado às ruas, sempre se manteve meio adormecido.

Foi, então, das inquietudes e dos descontentamentos partilhados em redes, de uma tecnologia na palma da mão, que as ruas de muitas cidades brasileiras foram tomadas de assalto por multidões lideradas por jovens dispostos a fazerem valer seus pleitos. Apartidárias ou não, foram às ruas pessoas de idades, cores, credos e motivações distintas, mas com uma mesma palavra de ordem: BASTA!

Interessante este fenômeno de reversibilidade de fronteiras entre o público e o privado. Se os computadores domésticos e a internet, nos anos 90 do século XX, constituíram um processo de privatização de vontades, de distanciamento das ruas, de isolamento voluntário; a partir da popularização da internet e das redes sociais, tal fenômeno se complexificou, rompendo fronteiras e paradigmas.

A rede não é a rua, mas a simula de certa forma. A rede é uma rua sem odores, rumores e ruídos. A rede pode ter a mesma eletricidade da rua, mas ainda não permite o tato, o tangível, a corporeidade de seguir, como disse Drummond, de “mãos dadas”. A rede precisa da rua, assim como a rua talvez nunca mais seja a mesma depois da rede. A rua também é rede, não A REDE, mas espaço de interações onde podemos compartilhar nossas experiências mais íntimas e as coletivas.

A rua constitui uma instigante experiência de proximidade com o anônimo: o estranho que rejeitamos ou que, na maioria das vezes, queremos ser. Este anonimato, a fugacidade de um rosto na multidão, o desejo de segui-lo, de observá-lo, de se tornar íntimo do alheio na “flânerie”, em passos erráticos, de decifrar enigmas, tudo isso é matéria fértil para Edgar Allan Poe, no conto exemplar “O homem da multidão” ou para Baudelaire, em O pintor da vida moderna, ou em “Quadros parisienses” de As flores do mal.

A literatura brasileira do início do século XX também registra esta efervescência. Lima Barreto, João do Rio, Benjamin Costallat captaram mazelas, transformações urbanísticas, fizeram a crônica do efêmero, do transitório, do instante, do contingente, que são, segundo Baudelaire, a outra metade da arte moderna. Captar o momento fugidio e desconcertante, sua beleza – pois aí também reside o belo – era a tarefa dos pintores da vida moderna, veloz e urgente.

A rua de onde parte a literatura moderna e modernista não é o espaço das manifestações que presenciamos. Foi, entretanto, uma mola propulsora porque libertária, heterogênea, plural, íntima e anônima. Nela, reside a multiplicidade e o sentido caleidoscópico essenciais ao fazer literário: “Para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente”, afirma Baudelaire.

(Analice Martins)