Oh, intrépida amazona!

Nem formosa, nem intrépida. Tampouco amazona. Onde a mágica torrente de teu Paraíba? Oh, Campos, por que nos abandonaste?

Não é hora de complacência nem de saudosismos aristocráticos. Eis que, mais uma vez, é chegada a hora de muitos protestos, de muitos gritos de “basta”. Campos perdeu o bonde da história. Não há construção civil, prédios altaneiros, pontes novas, Porto do Açu, universidades sanguessugas (que chegam e se vão), redes potentes de supermercados e concessionárias de carros importados que indiquem algum real índice de crescimento. Não nos verticalizamos como as construções urbanísticas. Continuamos na mais absoluta horizontalidade, na mais cruel das platitudes, sem conseguir vislumbrar horizontes para todos.

No início dos anos 90, um amigo jornalista, carioca de verve ácida, de passagem pela nossa cidade, perguntou-me como é que eu havia voltado para uma cidade que tinha, em um dos pontos mais nobres à época, uma cabeça de boi no portal do restaurante, música ao vivo em todos os bares e nenhum restaurante japonês. Tentei lhe explicar, sem muita credulidade, a dinâmica de uma “cidade do interior”, provinciana, de tradição ruralista. Não colou nem para mim!

Para um olhar citadino e cosmopolita como o dele, foi difícil entender nossas temporalidades até hoje concomitantes: a carroça de burro, a bicicleta, os carros de passeio e as obscenas caminhonetes em nossas pobres ruelas. Sim, ruelas! Ninguém pode dizer que a avenida 28 de março possa sustentar tal designação. É ruela sim! E assassina!

Deixando de lado a provocação de meu amigo, com a qual tacitamente concordei, não podemos ser felizes convivendo com tantas barbáries. De fato, um verniz cosmopolita nos chegou. Hoje, temos restaurantes italianos, japoneses, chineses. Os árabes sempre existiram. Temos muitas lojas de departamentos (Renner, C&A, Leader, Casa e Vídeo, Lojas Americanas etc), franquias, Peugeot, Toyota, Honda, Hyundai, mas e daí? Continuamos órfãos, abandonados e carentes.

Afinal, quem há de não lamentar nossos anacronismos e retrocessos? Vivemos em uma cidade que, tendo perdido sua vocação agropecuária, não soube se realocar na nova ordem mundial. Uma cidade que é refém de uma prefeitura que tiraniza nossos direitos à saúde, à educação e à moradia, que os substitui por práticas assistencialistas. Uma cidade em que o sonho de consumo cidadão é ter um “bico” na prefeitura, não um emprego para o desempenho honrado de uma função social. Uma cidade sem livrarias, com bienais e shows de cifras exorbitantes, uma cidade cujos cinemas só funcionam em shoppings, só exibem filmes dublados e comerciais, em que os diretores das escolas municipais são indicações de políticos. Uma cidade com um imponente teatro – frágil presa de falsas moralidades. Um teatro-palco, não um teatro-instituição. Um teatro que coloca no “bolso” seu irmão menor.

Não me venham com argumentos de ilusórios progressos cidadãos: passagem a um real, bolsas família e escola, farmácia e restaurantes populares etc. Tenho absoluta consciência do quanto tal quadro de benefícios assiste a nossa carente população. Sei bem que, sem fome aplacada e sem saúde cuidada, não há esforços educacionais e culturais que possam vingar. Mas não concordo que seja por uma via clientelista que devamos construir condições de empregabilidade e autonomia de pensamento.

Quando, em minhas idas e vindas semanais, entre Rio e Campos, desde 1987, fui observando da janela do ônibus a cidade que crescia e se erguia, apontando para o céu (“Olha para o céu, Frederico”!), alimentava a expectativa de que esta verticalização, acompanhada da chegada de universidades como a UENF, da expansão de câmpus da UFF, pudesse se somar à trajetória já consolidada de instituições como a Faculdade de Filosofia e de Direito de Campos, hoje pertencentes ao UNIFLU, da Faculdade de Medicina e da antiga Escola Técnica, hoje IFF, e nos oxigenar. Vã expectativa.

Apesar deste crescimento, continuamos a chafurdar em nossos lamaçais. Ah, Campos formosa, em que espelho te miras? Ah, Campos intrépida, por que não acertas o passo de teu galope? Por que temos que nos deparar com atitudes tão empobrecedoras como esta que nos enxovalhou mais uma vez? Não bastassem os escândalos denunciados, em 2008, pelas operações “telhado de vidro”, temos ainda que ser dignos de nota, em cenário nacional, por episódio tão obscurantista e medieval como este do cancelamento da apresentação da peça “Bonitinha, mas ordinária” de Nelson Rodrigues?

Nessas horas, penso na doce advertência de minha mãe quando decidi retornar à planície goitacá: “O que você quer fazer por aqui?”. Anos mais tarde compreendi que não era uma atitude pouco amorosa, ao contrário, era prova do máximo desvelo de quem, campista que não era, nunca entendeu que houvesse uma rua, “a do homem em pé”, pela qual mulher não pudesse passar.

 (Analice Martins)

A rua e a multidão

Cenário das recentes e recorrentes manifestações populares no Brasil e em outros lugares do mundo, como a França e o Egito, a rua tem reunido multidões por razões variadas, mas todas com um clamor político, mesmo que não explicitamente partidário.

A rua e a praça são espaços públicos de trocas simbólicas. São uma experiência compulsória com a alteridade. Portanto, representam dinâmicas de constituição do sujeito. Sem a rua, vê-se a vida apenas pela janela ou pelas telas. A rua permite tanto uma atitude de desnudamento da privacidade quanto de anonimato. É este paradoxo que a torna fascinante dos pontos de vista sócio-antropológico e literário.

Para as relações sociais, a rua é o espaço dos serviços, do comércio, do trânsito, da diversão. A rua estabelece a contingência do encontro para a realização de alguma atividade. É um espaço privilegiado para vivenciar e entender o Outro que se avizinha casualmente. Para a literatura, a rua inaugura a modernidade de certa forma, ou mais especificamente, o modernismo. Desde o século XIX, entretanto, em certa expressão do Romantismo, modos, hábitos, comportamentos e cenários ganham os contornos públicos da rua, a partir dos primórdios da urbanização.

Nos dias atuais, a rua tem sido palco de reivindicações e confrontos. No Brasil, em especial, assistiu-se a uma singular organização desses movimentos. No espaço que é também o seu avesso – o privado -, ou seja, o dos computadores pessoais que, antes da web 2.0 e da explosão das redes sociais, eram um território que permitia a distância física e algum anonimato, orquestrou-se o maior movimento de rua, desde o “impeachment” do ex-presidente Collor, em 1992. O Brasil não é a França, país em que, pelo menos em Paris, assiste-se a um protesto por dia. O gigante sempre foi pouco dado às ruas, sempre se manteve meio adormecido.

Foi, então, das inquietudes e dos descontentamentos partilhados em redes, de uma tecnologia na palma da mão, que as ruas de muitas cidades brasileiras foram tomadas de assalto por multidões lideradas por jovens dispostos a fazerem valer seus pleitos. Apartidárias ou não, foram às ruas pessoas de idades, cores, credos e motivações distintas, mas com uma mesma palavra de ordem: BASTA!

Interessante este fenômeno de reversibilidade de fronteiras entre o público e o privado. Se os computadores domésticos e a internet, nos anos 90 do século XX, constituíram um processo de privatização de vontades, de distanciamento das ruas, de isolamento voluntário; a partir da popularização da internet e das redes sociais, tal fenômeno se complexificou, rompendo fronteiras e paradigmas.

A rede não é a rua, mas a simula de certa forma. A rede é uma rua sem odores, rumores e ruídos. A rede pode ter a mesma eletricidade da rua, mas ainda não permite o tato, o tangível, a corporeidade de seguir, como disse Drummond, de “mãos dadas”. A rede precisa da rua, assim como a rua talvez nunca mais seja a mesma depois da rede. A rua também é rede, não A REDE, mas espaço de interações onde podemos compartilhar nossas experiências mais íntimas e as coletivas.

A rua constitui uma instigante experiência de proximidade com o anônimo: o estranho que rejeitamos ou que, na maioria das vezes, queremos ser. Este anonimato, a fugacidade de um rosto na multidão, o desejo de segui-lo, de observá-lo, de se tornar íntimo do alheio na “flânerie”, em passos erráticos, de decifrar enigmas, tudo isso é matéria fértil para Edgar Allan Poe, no conto exemplar “O homem da multidão” ou para Baudelaire, em O pintor da vida moderna, ou em “Quadros parisienses” de As flores do mal.

A literatura brasileira do início do século XX também registra esta efervescência. Lima Barreto, João do Rio, Benjamin Costallat captaram mazelas, transformações urbanísticas, fizeram a crônica do efêmero, do transitório, do instante, do contingente, que são, segundo Baudelaire, a outra metade da arte moderna. Captar o momento fugidio e desconcertante, sua beleza – pois aí também reside o belo – era a tarefa dos pintores da vida moderna, veloz e urgente.

A rua de onde parte a literatura moderna e modernista não é o espaço das manifestações que presenciamos. Foi, entretanto, uma mola propulsora porque libertária, heterogênea, plural, íntima e anônima. Nela, reside a multiplicidade e o sentido caleidoscópico essenciais ao fazer literário: “Para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa e, contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir senão toscamente”, afirma Baudelaire.

(Analice Martins)

O futuro pelo retrovisor

É lamentável o desconhecimento de que goza a literatura brasileira contemporânea mesmo entre leitores assíduos. É estranho observar que são ilustres anônimos aqueles que estão desenhando nossos perfis literários nacionais. Ignorar o presente é também uma forma de alienação.

Mais paradoxal ainda é esta questão se pensarmos que se publica muito hoje em dia, até porque há muitas facilidades editoriais, iniciativas descentralizadas que não precisam passar por corporações. A tecnologia é forte aliada deste fenômeno e dos mecanismos de distribuição da imagem dos escritores. Sites, blogs, tumblrs, twitter, facebook funcionam como eficientes plataformas de divulgação dos autores e de suas obras. A leitura em outros suportes é de fato um agente democrático. A leitura pode estar ao alcance da mão e dos olhos de um público quantitativamente mais significativo. Mesmo em formatos mais convencionais, as mídias impressa e televisiva continuam funcionando como agências difusoras da cena contemporânea.

Portanto, tudo faria crer que somos leitores de nosso tempo. Pelo menos, que estamos expostos à produção literária contemporânea de forma mais voraz do que no século passado. Mas nada disso, infelizmente, tem assegurado uma comunidade de leitores para a literatura brasileira contemporânea. Que fique claro que, neste cenário, Paulo Coelho não tem assento.

Nos currículos escolares, é ainda nítida a exclusão do presente. Quando os alunos leem Clarice Lispector e Guimarães Rosa parece que estão lendo os últimos escritores de nossa literatura, que acaba morrendo aí. Tudo bem que seria uma morte gloriosa. Mas a literatura brasileira não morreu na década de 50 do século XX como os componentes curriculares fazem crer.

Daí surgem constatações doídas. É possível que um aluno, jovem leitor, não saiba perceber como literários registros de seu tempo nem atribuir valor estético a eles. Ora, isso não ocorre com a música! Por que então a literatura contemporânea, no Brasil, fica em lugar tão marginal e desconhecido? Para piorar, nos Cursos de Letras do país, via de regra, o que deveria ser um estudo sistemático é empurrado para disciplinas eletivas, optativas etc. Forma-se então um quadro perverso: professores não leitores da contemporaneidade.

Nada do que digo aqui deve ser confundido com o menosprezo pela tradição, pelo cânone, pelas altas literaturas. Nenhuma postura iconoclasta neste meu discurso. As vanguardas e seus brados futuristas de aniquilação do passado já cumpriram sua função histórica – fundamental, sem dúvida – e se foram. Vivemos outros tempos, com outras linguagens e preocupações. Devemos procurar entendê-los e fruí-los sem nariz empinado. Desconhecer o presente é tão grave quanto desconhecer o passado. Como muito bem disse Mario de Andrade, “o passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”.

Por estranho que pareça, uma forma de entender o presente é conhecer o passado e refletir sobre ele. Acredito que a literatura seja uma destas potentes formas reflexivas. Na linguagem literária, operam-se tensões, diálogos, apropriações, estilizações ou mesmo rupturas em relação ao passado. Logo, ler o contemporâneo é imprescindível e urgente.

O livro “O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea”, recém-lançado pelo Rocco e organizado pelas pesquisadoras Stefania Chiarelli, Giovanna Dealtry e Paloma Vidal, ocupa um lugar estratégico para tais reflexões. É um livro de crítica literária que quer levar a cabo a urgência da leitura e do entendimento da prosa contemporânea no Brasil, roubando, para isso, a imagem de Marshall McLuhan, expressa no título, como explicam as organizadoras: “A nossa aposta é que parte expressiva da atual literatura brasileira está caminhando neste momento para uma releitura das tradições da modernidade, saqueando ou revistando o passado (…) Em seu sentido original, a expressão dizia respeito a um olhar fixo sobre o passado, que tendia  recuperá-lo sempre da mesma maneira. Gostaríamos de retomá-lo aqui para tratar de uma relação com o passado que pode se dar de  múltiplas formas, de modo que não se estabeleça uma relação linear de causalidade entre passado, presente e  futuro”.

A pretensão deste livro é, portanto, por meio dos 17 ensaios feitos por pesquisadores de universidades distintas do país, verificar se os autores da prosa brasileira contemporânea “não estariam operando reapropriações de questões fundamentais dos séculos XIX e XX – no plano estético, ideológico, temático, formal etc. -, reelaboradas a partir do presente”.

Vamos lá! Não deixem que Adriana Lunardi, Adriana Lisboa, Bernardo Carvalho, Carola Saavedra, Chico Buarque, Daniel Galera, João Almino, João Gilberto Noll, Lourenço Mutarelli, Luiz Ruffato, Michel Laub, Milton Hatoum, Ricardo Lísias, Rodrigo Lacerda, Rubens Figueiredo, Sergio Sant’Anna, Valêncio Xavier lhes sejam ilustres desconhecidos.

 (Analice Martins)

Depois do pôr do sol

Em “Antes da meia-noite” (2013), o aguardado último filme da trilogia de Richard Linklater, há uma sequência em que Celine (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke), de férias na Grécia, assistem a um extasiante pôr do sol. Ele, emocionado e contrito. Ela, mais descontraída e bricalhona. A cena pode funcionar como uma espécie de mote ou epígrafe para o filme que dá sequência ao que o espectador ficou sem saber que aconteceu, nove anos antes, quando a narrativa de “Antes do pôr do sol” (2004) se encerra no apartamento de Celine em Paris, ao som de Nina Simone, depois de uma tarde de deambulações por Paris, onde Jesse se encontrava, não por acaso, para o lançamento de seu livro, espécie de autoficção a partir do encontro de dois jovens num trem para Viena e da noite que passaram juntos com juras de reencontro breve, enredo de “Antes do amanhecer” (1995), o primeiro da trilogia.

É uma trilogia sobre o amor, suas fases, seus encontros, desencontros, sua persistência, mas é também uma trilogia sobre as caminhadas, as perambulações pela cidade, sobre a arte de passar a vida a limpo enquanto se caminha, mote de muitas outras narrativas não necessariamente de amor. Não é uma trilogia sobre cidades propriamente. Ainda que, neste terceiro filme, a geografia e as paisagens ganhem mais corpo, não estão ali para uma ilustração barata. Fosse assim, as ruínas gregas, que o casal pretendia mostrar às filhas gêmeas, teriam aparecido, assim como a torre Eiffel, no segundo filme, seria um cenário necessário.

Nada de símbolos, pontos turísticos ostensivos, nem comportamentos caricatos, afinal, são personagens andarilhos, viajantes, de nacionalidades distintas que resolvem fazer valer, conscientemente, suas escolhas. São as delícias e as rusgas delas que o filme em cartaz, no Brasil, traz à tona, numa espécie de DR comum a qualquer casal.

“Antes do amanhecer”, “Antes do pôr do sol” e “Antes da meia-noite” são também as fases do amor: o encanto, a paixão e… O que vem depois da paixão? O que vem depois das escolhas? O que vem com o cotidiano? Há quem pense que o amor também tem suas fases épica, lírica e trágica: os grandes feitos, o transbordamento da emoção e os conflitos intransponíveis.

Não quero ficar aqui dando uma de Marta Medeiros, nem de Arnaldo Jabor. Sequer sou especialista em crítica cinematográfica, mas gosto muito de cinema e daquilo que a imagem grandiosa da tela às vezes esconde. A temática da trilogia não é tão óbvia quanto parece. Não há idealizações, nem previsibilidades. Depois do acaso do encontro de um jovem americano e de uma francesa em férias, tudo o mais é sartreanamente fruto de decisões. O destino é resultado dessas escolhas.

Quando se reencontram nove anos depois em Paris, Jesse é um escritor estreante e em ascensão, casado e já pai. Celine vai ao seu encontro na charmosíssima livraria Skakespeare em Paris, pois é também parte daquele romance autobiográfico. Não se desgrudam mais, andam apressados pelas ruas de Paris, no tempo livre de Jesse antes do embarque. Andam explodindo de desejo e gastando-se em palavras. Um filme-teatro. Toda ação está nos envolventes e sugestivos diálogos entre o casal. Todo o diálogo depende de suas caminhadas a esmo. Terminam no apartamento de Celine. Jesse aceita subir, seu voo parte em algumas pouquíssimas horas.

Na península do Peleponeso, fazem os mesmos deslocamentos. No carro, no caminho do aeroporto para casa; a pé, em direção ao hotel onde passariam a última noite na cidade. Novamente resolvem a vida andando, como na expressão latina “solvitur ambulando”. Esta erótica dos passos perdidos rende mais do que previsíveis cenas de sexo. Esta sim é a grande tônica amorosa da trilogia.

Em “Antes da meia-noite”, o espectador toma conhecimento do que ocorreu naquela noite em Paris. Fica sabendo que Jesse não embarcou, perdeu o voo e separou-se da mulher.  Seu segundo livro, como num jogo de espelhos, narra o encontro, a paixão tórrida, os dias de sexo à exaustão no apartamento em Paris. Seu terceiro livro, cujo título é enorme e chato, quase incompreensível, não escamoteia o amargo de qualquer rotina conjugal: do que se abre mão, o que se deixa para depois, quem faz o quê, como cada um investe na relação, como cada um lida com os desejos pessoais.

A percepção destas situações de ambas as partes empurra o filme para o que há de melhor nele: a vida como ela é, ora empolgante, ora tediosa, ora sedutora, ora desencantada, ora azul, ora cinza. Este saldo é posto na balança. Não há amor sem arranhões, sem desgastes. O amor não pode também ser apenas aquilo que sobreviveu à paixão. O amor nu e cru não é tão bonitinho nem tão feio.

Talvez, por isso, a cena final traga a possibilidade de reinvenção. A partir da leitura de uma carta fictícia, Jesse convida Celine a se deixar de novo seduzir pelas palavras, tecendo com elas novas partidas, novas caminhadas. 

 (Analice Martins)

Por pontos ou por nocaute?

O escritor argentino Julio Cortázar recorre a uma inusitada metáfora para explicar as diferentes experiências de leitura da narrativa de ficção. Diz ele, a partir das imagens de uma luta de boxe, que o romance vence o leitor por pontos, já o conto o vence por nocaute. Esta é, sem sombra de dúvidas, a mais eficiente teorização sobre o gênero épico-narrativo.

Em vez de se basear, tradicionalmente, nos procedimentos constitutivos deste gênero literário, ou seja, na presença e na posição do narrador, na relação tempo-espaço, nas personagens, na evolução do enredo, a distinção estabelecida entre o romance e o conto tampouco se apoia numa impossível contagem do número de páginas. Afinal, o que são números para dizer da essência do literário e o que são páginas em tempos virtuais?

Muito inteligentemente, para falar dos mecanismos de expansão e de concisão, neste gênero, Cortázar se vale da experiência da leitura, da reação do leitor, validando os redirecionamentos da crítica literária a partir dos anos 70 e suas preocupações com o lugar do leitor nos processos de significação e de interpretação.

Do ponto de vista clássico, o “desenrolar progressivo dos fatos” é um dos elementos estruturantes das narrativas. A expansão de fatos e circunstâncias bem como sua trama são responsáveis por uma espécie de “contínuo” da história. O leitor se deixa, portanto, arrastar por um rio caudaloso e exuberante, rico em acidentes geográficos e volteios. Tal constituição pode sustentar tanto os estudos da épica clássica com seus feitos heroicos e grandiosos quanto o romance do século XIX. O conto, embora pertencente ao gênero narrativo, é arte para poucos, pois, sem deixar de mobilizar todos os elementos que citei, deve fazê-lo de forma mais breve e concisa, sem gorduras, sem, às vezes, a salvação do próximo capítulo ou dos seguintes, que podem ampliar e contextualizar as situações inicialmente postas em ação. Já li e ouvi muitos comentários de romancistas experientes temerosos de se lançarem na seara do conto.

A metáfora de Cortázar traz para a semântica das interpretações literárias a imagem da luta, do corpo a corpo entre a obra e o leitor a quem ela se destina. Algo como um processo de captura ou abate. O leitor deve ser abatido, aprisionado, rendido e dar-se por vencido. O leitor deve ser desarmado com os golpes certeiros do texto literário. Não imaginemos, no entanto, que o mérito está apenas na luta vencida por nocaute, com o leitor na lona, tonto ou sem sentidos. O mérito está na vitória, seja ela por pontos ou por nocaute, afinal trata-se de uma luta.

Mas o que seria este golpe certeiro, de retirar o fôlego e os sentidos do leitor, tumultuando-o, perturbando-o, deslocando-o de seu centro de equilíbrio, arrebatando-o de uma só vez? Que golpe veloz é este que nos faria tremer as pernas e rodopiar a cabeça? Onde estaria este gatilho? No plano do conteúdo? No da forma? Em ambos? O nocaute seria a revelação de um mistério, de uma intriga ou a criação de seu suspense? A composição de um personagem, suas nuanças, seus matizes ou sua firme condução? Lembremos sempre que, na literatura, personagens, cenário e tempo são todos criações da arte da palavra, tudo depende da orquestração delas, sejam muitas ou bem poucas. O conteúdo na literatura, desculpem-me, é quase nada, não requer nenhuma originalidade nem exclusividade.

Lembremos também que não valem os golpes baixos, abaixo da linha da cintura, por exemplo, e outros tantos. A luta deve ser vencida no limite das regras estipuladas. Aliás, quaisquer luta ou jogo determinam suas regras. A literatura não é um “vale tudo”, não deveria sê-lo. Nela, tudo pode fazer valer. Isso é outra coisa bem diferente. Nela, tudo pode adquirir valor estético, o mais ordinário, o mais trivial dos fatos ou sentimentos em palavras.

Para mim, a formulação de Cortázar deveria constar de qualquer livro didático de ensino médio em vez das muitas baboseiras que nada dizem. Há dois contos que parecem ótimos exemplos de nocautes. São de dois ótimos pugilistas: Rubem Fonseca e Dalton Trevisan! São eles “Passeio Noturno – parte I” e “Apelo”.

O primeiro é desconcertante não apenas porque o narrador atropela e mata, com seu potente carro e sem explicação aparente, vítimas escolhidas aleatoriamente nos subúrbios cariocas. Um golpe seco, rápido, certeiro. As descrições iniciais do ritual de uma família pequeno-burguesa sugeririam, no máximo, o tédio nosso de cada dia, jamais a frieza assassina estampada em pouquíssimas palavras. “Homem ou mulher?” Esta oração que poderia dar alguma ambiguidade e orientação para o desfecho das ações se desmonta imediatamente na seguinte. Não se trata de sexo, mas de morte. O carro acelera o motor e atropela a vítima em segundos. Mal refeito do golpe, o leitor vai à lona por nocaute, quando o personagem chega a casa, sem sobressalto, cumprimenta a mulher e vai se deitar com placidez. “Touché”!

O de Dalton Trevisan, que não tem mais que vinte linhas, retrata a passagem de um mês da partida de uma mulher, cuja ausência é relatada na desarticulação do espaço físico da casa onde até o “canário ficou mudo” e “bocas raivosas mastigam” sem conversar. Cada imagem desta falta doída é como um golpe. Para mim, o nocaute vem quando o narrador constata: “O leite primeira vez coalhou”.

(Analice Martins)

Às voltas com o tempo

Durante esta última semana, reli, não por acaso, o ensaio “Se pudesses, deverias frequentar um outro mundo”, do livro “Banalogias”, de Francisco Bosco. É um texto sobre a passagem do tempo no luto, ou melhor, sobre sua imensidão, sua ausência de margens, sua bocarra. Quando o li, pela primeira vez, em 2006, esta imagem devoradora foi a que mais me prendeu, ao lado das referências a um conto de Caio Fernando Abreu de que gosto demais: “Sem Ana, blues”.

A tese de Bosco é de que, na vigência do amor, ou melhor, na presença do ser amado, o tempo é um animal doméstico. O afeto permanente cria uma espécie de rede protetora contra o tempo. Algo como dizer que o amor nos protege do tempo, porque o coloca em ordem, escalonando-o. O amor nos protege da queda, do precipício e do abismo. O amor nos suspende em seus braços e nos embala.

Já no luto, quando o ser amado se desfaz de sua materialidade e presença, o tempo é como um animal selvagem e voraz, interrompe qualquer fluxo contínuo, retira das prateleiras tudo que parecia docemente em ordem e nos lança em mar revolto, como discorre Bosco numa linda sequência de imagens: “No luto, o tempo faz eco, é oco, retorna, perde o rumo, some na distância ou morre a nossos pés. Sala enorme, deserto, mar oceano, qualquer cenário sem margens. No luto, o tempo é sem margens. Balança como um barco. E a gente se move sem ter onde segurar. Não tem corrimão. Nem cadeiras. Fica-se de pé o tempo todo. O tempo é todo, todo o tempo. O tempo enorme, impercorrível”. O tempo, no luto, é um transatlântico à deriva.

Se o ser amado pudesse voltar, as águas revoltas se acalmariam, e retornaríamos ao centro e à gravidade necessária para o restabelecimento de tudo que é vital. No amor desfeito, o luto nos exige uma realocação de nossos impulsos libidinais. É preciso que eles tenham uma nova direção e que preencham o vazio cavado em nossas vidas. Bosco explica, a partir de Freud, a nova economia temporal que se impõe no luto e a necessidade de ressignificar o mundo.

Na morte, o luto é igualmente o oco e o eco daquele que se foi. Mas a subtração é mais abrupta, a bocarra é mais assustadora. Por isso, na morte, a recordação é um alento, não é uma alfinetada. Na morte, a lembrança é apaziguadora, porque ela preenche de vida a matéria que se desfez. No amor desfeito, a recordação pode ser mais torturante, porque ela nos lembra o que poderia ter sido e não foi.

Na morte, então, a recordação faz parte da lógica temporal que nos reestrutura e nos redireciona as vontades. Recordar, etimologicamente, significa trazer de voltar ao coração, presentificar o passado, digamos assim. Recordar é interromper a cronologia, é embaralhar ponteiros, é descarrilar as horas, é pedir para descer numa outra estação. Recordar é enganar o império de Cronos. Recordar também faz viver, por que não?

O luto existe porque o amor não acaba com as partidas. O luto só existe porque o amor não acaba, necessariamente, quando o ser amado se vai. Por isso, a recordação é uma espécie de amortização do tempo. A recordação é a essência do gênero lírico, é o elemento que permite a fusão das temporalidades e o doce engodo de sua passagem.

São conhecidos os versos de Drummond, do poema “Memória”, que dizem que “as coisas findas,/ muito mais que lindas,/essas ficarão”. O poema se inicia com o desnorteamento da partida do ser amado: “Amar o perdido/deixa confundido/este coração”. E avança para o que me parece ser a função reguladora da memória: “Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não”.

A memória e a recordação revertem, de alguma forma, o que é finito. Esse prolongamento da vida na memória e nos corações é uma insurreição, uma rebeldia contra o que se diz finito e breve. No romance “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, há um momento em que o personagem André diz: “ o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje  e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? Que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? Limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória”.

É lá nos subterrâneos da memória que a vida se reinventa em pujança, é lá que as coisas permanecem “muito mais que lindas”, enganando o aviso das horas.

(Analice Martins)

Para sempre

“Por que Deus permite/ que as mães vão-se embora?/ Mãe não tem limite,/ é tempo sem hora,/luz que não apaga/ quando sopra o vento/ e chuva desaba,/ veludo escondido/ na pele enrugada,/ água pura, ar puro,/ puro pensamento./ Morrer acontece/ com o que é breve e passa/ sem deixar vestígio./ Mãe, na sua graça,/ é eternidade./ Por que Deus se lembra/ – mistério profundo-/ de tirá-la um dia?/ Fosse eu Rei do Mundo,/ baixava uma lei:/ Mãe não morre nunca,/mãe ficará para sempre/junto de seu filho/ e ele, velho embora,/será pequenino/ feito grão de milho.”

A primeira vez que ouvi os versos do poema “Para sempre”, de Drummond, foi dos lábios de minha mãe, Ruth Maria Chaves Martins. Não li com meus olhos, fui guiada pela voz dela. Voz que se calou na quinta passada. Minha mãe sempre fez da palavra uma semente fecundante. Aqueles que a conheceram ou dela ouviram falar não hão de me desmentir, bem sei.

Aprendi, muito cedo, que minha mãe não era só minha e de meus irmãos. Ela era também de muitos. Nunca me enciumei dessa partilha quase que compulsória. Pelo contrário, percebia que ela se multiplicava nos corações alheios, por meio de suas palavras que eram carne, fato, exemplo. Sim, nela, de alguma forma, o verbo se fazia carne, se me permitem a apropriação.

Como professora que foi, ergueu muitos mundos a partir do “reino das palavras”. Aproximava, com extrema naturalidade, palavras literárias tão distantes, de outros séculos ou mesmo milênios, como num passe de mágica. Era espantoso não só nos depararmos com o mundo de informações que carregava na memória, mas, sobretudo, sentir que tudo nos chegava sem nenhuma opressão do conhecimento. Éramos tocados doce e profundamente por suas lições que faziam as palavras dialogarem, corresponderem-se, duelarem, amasiarem-se. Minha mãe foi uma tecelã de textos. Sabia, com destreza, fio por fio, bordá-los diante de nossos olhos.

Em 2007, tive a oportunidade de lhe fazer uma homenagem pública num evento de letras e artes – o ENLETRARTE. Disse à época e reafirmo agora: Muitos a ouviram, deslumbrados e emudecidos, como se diante do narrador que compartilha com seus ouvintes o acúmulo das experiências e das leituras ou como se diante da sagacidade de Sherazade sempre a nos seduzir para a história do dia seguinte ou como se enfeitiçados pelo canto da sereia a nos levar às mais belas profundezas do mar. Foram e são muitos os mundos descortinados pela literatura com que nos presenteou. Foram muitas as veredas trilhadas com o auxílio de suas palavras.

Ouvi, certa vez, de uma colega um comentário feito por um jovem aluno de minha mãe a respeito de seu peculiar jeito de ensinar em meio a tantos apelos e artifícios tecnológicos: “Ah, dona Ruth, ela não precisa de nada não. Ela só precisa de uma caneta e de um leque!”. Somos profundamente gratos ao desenho desta caneta e ao en(canto) de suas histórias.

Poucos, talvez, tenham tido a oportunidade de conhecer a poeta que foi. Modestamente, por acreditar não ter dado a sequência necessária aos seus projetos literários, sequer comentava sobre esse assunto. Fui conhecer minha mãe-poeta já quase adulta, por intermédio dos que a leram e que admiravam sua verve poética. Só tarde fui ler seu “Roda, pião!”, livro publicado, em 1956, pelas edições “Jornal de Letras”, quando tinha apenas 22 anos. Este livro, ilustrado pelo meu pai, Oswaldo Martins, à época seu noivo, ganhou o importante prêmio Nestlé e os aplausos da crítica especializada: “Não se trata apenas de uma estilização de temas folclóricos, mas de uma aproximação à alma de nossa gente, um acordar de sua sensibilidade pela elevação da própria voz (…) Manejando com habilidade o metro popular da redondilha, dando preferência à popular quadra rimada, o verso dessa jovem poetisa revela um fino lavor artístico, pela expressão a um tempo simples e profunda, diáfana e musical. Não nos engane, porém, sua aparente facilidade, que fruto é não de uma despreocupação técnica, mas de uma luta com a palavra, de onde só saem vitoriosos os verdadeiros poetas”. Sentença que também lhe foi conferida por Manuel Bandeira, em crônica intitulada “Roda, pião!”: “Ruth é paraense, mas seria poeta até em Paris”.

Concordo com Bandeira e lhes ofereço alguns versos: “O pião entrou na roda/ entrou em mim, no meu dano,/ e rodando e bambeando/desenganou meu engano./ O pião rodou no tempo,/zuniu tão alto que ouvi;/ calou o aviso das horas/ que avisavam que perdi.” Seu pião suspendeu o tempo e as horas, seu pião zuniu alto em nossos corações, seu pião nos enredou, seu pião nos transportou.

Drummond tinha razão: morrer só acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, em sua graça, é eternidade.

 (Analice Martins)

(Des)limites da educação

De fato, a educação sozinha não pode, nunca pôde, resolver desigualdades socioeconômicas. Há exceções, claro! Vez ou outra, ouvimos, lemos ou presenciamos alguns casos. Nós, professores, sabemos que a escola não consegue nem tem que sanar a fome ou prover a saúde. É, entretanto, no espaço escolar, que todas essas demandas reprimidas ou explícitas gritam urgentemente.

Tampouco a educação restringe-se ao espaço da escola. A educação é um conceito, um conjunto de operações, a articulação de várias dimensões da vida. Já a escola é o espaço onde saberes e vivências devem articular-se para erguer conhecimentos e construir uma formação cidadã.

Qual seria a lógica e a expectativa, portanto, deste funcionamento? Entender que a escola, sendo o espaço promotor, por excelência, da formação integral do cidadão, seja também o laboratório que nos tornaria indivíduos com iguais condições de pensar, trabalhar e sonhar. É isso que se afirma quando se diz que a educação pode resolver nossas desigualdades socioeconômicas. Ou seja, a escola torna-se o espaço metonímico da educação.

Ouvi, na segunda-feira, do jornalista Alexandre Garcia, em suas crônicas matinais no “Bom dia”, uma defesa inconteste da educação pública e laica neste sentido da potência de resolução de desigualdades. Em seu relato, citou a própria experiência no “antigo primário”, em que estudou na mesma sala tanto com o filho de um carroceiro quanto com o filho do maior banqueiro da cidade, para concluir que, embora tivessem entrado em posições desiguais socialmente, saíram “nivelados” pela educação. Não é a primeira vez que o ouço defender enfaticamente a educação escolar pública e laica como o trampolim e o pulo do gato para uma vida digna.

Não é por outra razão que já o vi vociferar contra a indignidade dos salários dos professores, contra a falta de investimento e de qualidade nos cursos de formação para o magistério, contra cotas etc. Não penso que o faça por demagogia ou utopia, penso que creia, por experiência própria, que tais condições sejam uma espécie de divisor de águas entre o que pode ou não uma sociedade, um país. Afinal que país é este que ignora um caminho tão lógico para o desejado progresso mensurado em índices (IDEB, IDH)?

Sua posição de ressalva com relação às cotas fundamenta-se na crença de que uma educação de qualidade e para todos resolveria as enormes e incontestáveis discrepâncias criadas por um passado colonial e, sobretudo, escravocrata. Para ele, as cotas procuram equacionar as distorções fundadoras de nossa sociedade. Essa é uma questão realmente muito delicada. Vejamos: o ministro Joaquim Barbosa, baluarte da dignidade nacional, estudou em escola e universidade públicas sem cotas, mas as defende assim como o ator Lázaro Ramos. Para o cineasta Cacá Diegues, o conceito de raça, no Brasil, é um equívoco. Portanto, todas as políticas daí derivadas incorrem na mesma falácia. Apesar disso, não se coloca contra os sistemas de reserva de cotas na educação e nos editais de cultura.

A partir do momento que se perde de vista a expectativa de uma educação de qualidade para todos, é necessário até mesmo reservar vagas para alunos de escolas públicas, já que elas não têm, grosso modo, cumprido sua função. Penso que tal reserva anula o pressuposto que deveria nortear as organizações sociais. Mas como nos colocarmos contra se não vemos outras iniciativas que possam debelar, na raiz, tais diferenças de oportunidades?

Sou filha de uma escola e de uma universidade públicas ainda de excelência. Acredito ainda hoje nesta excelência. Luto por ela, diariamente, como professora e cidadã. Gostaria que todos tivessem esta experiência radical de convivência com as diferenças, tão-somente a partir das quais podemos construir nossas singularidades.

No meu curso de Letras na UFRJ, havia tanto a filha do diplomata que chegava em carro oficial todos os dias quanto os colegas que vinham de trem, barca, ônibus. Devia haver grupos e guetos. Para mim, só importava o trânsito. Poder estar com todos, escolher com quem estar, ouvir diferentes sotaques e aperceber-me de que o meu não era o mesmo dos meus colegas cariocas da gema. Existe mesmo essa “gema”?

A dimensão escolar pública, quando com igualdades de acesso, leva ao heterogêneo, ao diverso, a uma babel de referências. Não há nada mais salutar do que isso! Nenhum aprendizado democrático se faz sem a alteridade. Então, as conclusões são mais ou menos as seguintes: a escola, para cumprir sua função instrutiva e educadora, deveria ser um polo de investimentos e investigações, um caldeirão, um laboratório, uma escada, um conjunto de janelas, um trampolim para a vida! Nela, a educação deveria levar além e fazer atravessar limites.

(Analice Martins)

Significados possíveis

A aula inaugural da Licenciatura em Letras (Português-Literaturas) do Instituto Federal Fluminense foi ministrada, na última quinta, pelo professor e poeta Antonio Carlos Secchin. Aqueles que conhecem seu longo e feliz casamento com a poesia apenas se deliciaram, mais uma vez, com esta profícua parceria. Mas aqueles que nunca o leram, como crítico ou poeta, e nunca o ouviram falar tiveram uma extraordinária oportunidade de se deixarem seduzir pelos (en)cantos do gênero lírico.

Não vou aqui fazer um resumo de sua aula, intitulada “Professando a poesia”. Não correria este risco, até porque defendo a tese de que parafrasear poesia seja algo impossível, tarefa vã. Neste sentido, concordo com outro poeta, o Antonio Cicero, que diz que, embora queiramos aproximar, muitas vezes, filosofia e poesia, há algo que as distingue radicalmente. A primeira é passível de ser parafraseada. Por mais delicado que seja, podemos parafrasear o que Platão, Kant, Heidegger, Merleau-Ponty disseram. Conseguimos transportar, quando bem sucedidos, as ideias alheias para as nossas palavras, mantendo-lhes o sentido original. Já a segunda não se rende a este procedimento dialógico. A poesia não é redutível à paráfrase. Não podemos, ainda que ousemos, dizer o que o poeta disse, senão repetindo-lhe as palavras. Ou seja, na poesia, os sentidos e significados estão indissociavelmente ligados à estrutura dos versos e ao léxico em que se enunciam. Trocar palavras, alterar sua ordem, quebrar-lhes o ritmo, tudo isso fatalmente conduzirá a outros significados e imagens.

Mas, feita esta justificativa, autorizo-me a derivar algo do que foi professado (confessado, abraçado, ensinado, executado) na aula do professor. A irredutibilidade da palavra na sua forma poética foi um dos aspectos abordados por Secchin, na intenção de mostrar que os significados dos textos poéticos não estão em um espaço “além”, fora do texto, nem em um “aquém” precursor, isto é, naqueles referentes da realidade que podem ter motivado o poema. Seus significados possíveis são resultados das escolhas linguístico-estruturais que o poeta fez para dar forma a determinados tema, experiência ou sensação colhidos ao rés-do-chão. Tais escolhas permitem interpretações que podem se alargar ou se estreitar de acordo com as circunstâncias pessoais e contextuais da leitura, mas nunca extrapolar os seus domínios contextuais de produção e/ou leitura. Melhor dizendo: seja pela estetização das condições biográficas do poeta, seja por aquela do leitor empírico, os significados de um texto transitam entre estes polos, sem precisar ultrapassá-los.

Secchin recorreu a um exemplo claríssimo: A “Canção do exílio”, poema romântico da primeira metade do século XIX, autorizaria interpretações, ainda que forçosas, como a ultrapassagem da figura paterna (Portugal) na afirmação da autonomia filial (as terras brasileiras), a representação de uma “falta”, tônica constante da poesia romântica, mas nunca a leitura de que “marcianos visitaram a terra etc.”, uma vez que, neste último e exagerado exemplo, não haveria um significante que fosse que a respaldaria. Se os exemplos não foram exatamente esses, corrijam-me!

A questão interpretativa, como o professor bem assinalou, é sobretudo da ordem do ponto de vista que se elege para “olhar” o poema. A leitura produtora de significados requer um ponto de onde se avista e que deve ser sustentado com coerência. De antemão, todas as interpretações se sustentariam, desde que o leitor declarasse seus ângulos de visão e os conduzisse com lógica e clareza. Assim, as teorias críticas formalistas, estruturalistas, hermenêuticas, psicanalíticas ou sociológicas têm a sua contribuição a dar aos significados possíveis.

Na verdade, as considerações feitas até agora, grosso modo, valeriam para o quadro interpretativo de qualquer linguagem artística que não apenas a literatura. Mas lembremos: só a literatura é capaz de produzir outros signos além da palavra. O som e a imagem são também atributos da potência da palavra.

Um dos motes da aula que uso, à guisa de conclusão deste meu artigo, foi o amedrontamento que  a poesia pode causar num primeiro momento, já que, diante dela, o leitor não tem onde se amparar. Na poesia, não há personagens cristalizados, não há um enredo que se desenrole numa linha temporal, não há espaços delimitados, não há a condução de um narrador, mas tão-somente uma voz lírica que apresenta uma realidade transfigurada pela subjetividade deste “eu” que produz o canto. É por esta razão que Secchin assevera que, na sua longa experiência docente, sempre viu os alunos se bandeando para o lado da prosa – da narrativa de ficção – como se, ao identificarem as categorias que descrevi, tivessem dado um significado ao texto, o que de fato não ocorre. Esta leitura primeira, parafrástica, é apenas uma espécie de mapeamento das categorias narrativas, não é um significado possível.

Para lá chegar, é preciso que aprendamos com a lição professada por Carlos Durummond de Andrade em “Procura da poesia”: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxeste a chave?”

(Analice Martins)

Identidade e Multiculturalismo

Edgar Morin et Patrick Singaïny - La France une et multiculturelle - Lettres aux citoyens de France.

Caminhar pelas ruas, frequentar mercados e espaços públicos é a forma mais interessante para se dimensionar a dinâmica de um lugar, entender os espaços de trocas sociais, simbólicas e linguísticas. Do alto de um ônibus, num city tour, vê-se tudo à distância, por mediações dos guias turísticos e através de um trajeto previamente selecionado. Lá de cima ou de dentro desses veículos, não se sente o cheiro nem o paladar de nada. Não há rumores nem ruídos.

Quando viajo, evito-os ao máximo ou os deixo para o final, depois de tudo percorrido e visitado pelo meu próprio arbítrio, segundo as minhas escolhas ou minhas errâncias. Sei, por outro lado, que, para otimizar o tempo, evitar desvios ou chegar a lugares inalcançáveis por meios próprios, um city tour e visitas programadas são de grande utilidade. Por isso, podemos afirmar que nem todo viajante é um turista típico – aquele que quer permanecer na sua condição ex(ótica) -, assim como nem todo turista tem o desgarramento imprescindível aos verdadeiros viajantes. Há também muitos matizes entre essas duas categorias que não chegam a se excluir de todo.

Não se trata de esconder ou camuflar os pertencimentos originários: de onde somos, de onde viemos, por e para que estamos em determinado lugar. Trata-se de querer ver o outro em seus ambientes de alteridade e não apenas a nós mesmos em ambiente estrangeiro. Por mais que nossa perfomance na língua ou dialetos dos lugares visitados seja convincente e nossos comportamentos revelem a assimilação ao lugar, a condição estrangeira não tem razão para ser disfarçada. Ela é, antes de tudo, um potente ponto de vista sobre as culturas. Todo pensador da própria cultura deveria também se colocar em condição de estranhamento.

No artigo anterior, comentei minhas impressões sobre Marseille, no sul da França, que se repetiram em outras cidades visitadas da Provence. Em especial, em Avignon. Com os movimentos da globalização e do “cosmopolitismo do pobre” (conceito do crítico Silviano Santiago), a noção de uma origem ou pertencimento únicos cada vez mais se esfacela em proveito de identidades multiculturais.

Vi fisionomias chinesas, japonesas, sauditas, libanesas, marroquinas, tunisianas, argelinas, indianas falando francês, algumas (a maioria) com os acentos regionais de seus lugares de origem ou de seus pais, outras sem acento algum. Nessas horas, lembro sempre de Caetano Veloso proclamando: “Minha pátria, minha língua”! Por esta equação, ser de um lugar implica apossar-se do corpo de uma língua, por onde se dão as experiências sociais da comunicação e das trocas. Conforme eu ia mudando de cidade, com meu “francês parisiense colonizado”, eu ia acostumando meus ouvidos às diferenças regionais para poder entender. Experiência estranha e meio esquizofrênica: não ser do país e usar a língua oficial do colonizador diante de outros que são ou estão no lugar, mas que não escondem seus múltiplos pertencimentos.

Longe dos cities tours, fui entrando em livrarias, sebos, lojas e me deparei com dois livros que saciaram um pouco minhas inquietudes. Creio que nenhum dos dois esteja ainda traduzido no Brasil, mas imagino que não tardem. Foram publicados em 2012 e 2013.

Um deles apenas folheei por mais de uma vez. O outro comprei. O primeiro é a narrativa de cunho biográfico chamada “Je suis Tzigane et je le reste” (Eu sou cigana e permaneço). É o relato de uma jovem romena refugiada, Anina Ciuciu, sua trajetória de inserção na cultura francesa e sua chegada à Sorbonne. O segundo é organizado por Edgar Morin e Patrik Singaïny e se chama “La France une et multiculturelle” (A França una e multicultural).

Este livro se organiza a partir de um artigo de Morin de 1991, revisitado e ampliado, sobre a identidade francesa em suas “possíveis origens”, suas mutações por força da imigração e do artigo de Singaïny, que afirma que “ser cidadão, na França, não significa ser necessariamente francês”. Além dessas propostas centrais dos organizadores, há 11 cartas de intelectuais que participam dessa identidade cultural híbrida, de duplos pertencimentos. Seus nomes dão conta do que falo: Sabah Abouessalam, Marc Cheb Sun, Misako Nemoto, Yu Shuo- Bossière, Nelson Vallejo-Gomes, Manuel Valls, Nacira Guénif, entre outros.

É desta última, socióloga da universidade Paris-Nord-XIII, que traduzo, livremente, algumas linhas que resumem as ideias expressas no título deste meu artigo: “ ‘Ser’ de uma nacionalidade exprime não um estado (civil), mas um processo que conjuga, sem nunca reconciliá-las , as provas mantidas em tensão pelo tempo que passa e pelo contexto em que elas se desenvolvem: tornar-se de um país, identificar-se aos seus discursos, adotar suas narrações, habitar seus lugares, instalar-se em seus hábitos(…), distanciar-se das fronteiras, cruzá-las, se possível, relevar as memórias, atravessar os períodos, viver momentos que se agregam e fazem sentido. Nenhuma versão destas provas conjugadas equivale à outra nem pode se assemelhar a ela.”

(Analice Martins)