Por pontos ou por nocaute?

O escritor argentino Julio Cortázar recorre a uma inusitada metáfora para explicar as diferentes experiências de leitura da narrativa de ficção. Diz ele, a partir das imagens de uma luta de boxe, que o romance vence o leitor por pontos, já o conto o vence por nocaute. Esta é, sem sombra de dúvidas, a mais eficiente teorização sobre o gênero épico-narrativo.

Em vez de se basear, tradicionalmente, nos procedimentos constitutivos deste gênero literário, ou seja, na presença e na posição do narrador, na relação tempo-espaço, nas personagens, na evolução do enredo, a distinção estabelecida entre o romance e o conto tampouco se apoia numa impossível contagem do número de páginas. Afinal, o que são números para dizer da essência do literário e o que são páginas em tempos virtuais?

Muito inteligentemente, para falar dos mecanismos de expansão e de concisão, neste gênero, Cortázar se vale da experiência da leitura, da reação do leitor, validando os redirecionamentos da crítica literária a partir dos anos 70 e suas preocupações com o lugar do leitor nos processos de significação e de interpretação.

Do ponto de vista clássico, o “desenrolar progressivo dos fatos” é um dos elementos estruturantes das narrativas. A expansão de fatos e circunstâncias bem como sua trama são responsáveis por uma espécie de “contínuo” da história. O leitor se deixa, portanto, arrastar por um rio caudaloso e exuberante, rico em acidentes geográficos e volteios. Tal constituição pode sustentar tanto os estudos da épica clássica com seus feitos heroicos e grandiosos quanto o romance do século XIX. O conto, embora pertencente ao gênero narrativo, é arte para poucos, pois, sem deixar de mobilizar todos os elementos que citei, deve fazê-lo de forma mais breve e concisa, sem gorduras, sem, às vezes, a salvação do próximo capítulo ou dos seguintes, que podem ampliar e contextualizar as situações inicialmente postas em ação. Já li e ouvi muitos comentários de romancistas experientes temerosos de se lançarem na seara do conto.

A metáfora de Cortázar traz para a semântica das interpretações literárias a imagem da luta, do corpo a corpo entre a obra e o leitor a quem ela se destina. Algo como um processo de captura ou abate. O leitor deve ser abatido, aprisionado, rendido e dar-se por vencido. O leitor deve ser desarmado com os golpes certeiros do texto literário. Não imaginemos, no entanto, que o mérito está apenas na luta vencida por nocaute, com o leitor na lona, tonto ou sem sentidos. O mérito está na vitória, seja ela por pontos ou por nocaute, afinal trata-se de uma luta.

Mas o que seria este golpe certeiro, de retirar o fôlego e os sentidos do leitor, tumultuando-o, perturbando-o, deslocando-o de seu centro de equilíbrio, arrebatando-o de uma só vez? Que golpe veloz é este que nos faria tremer as pernas e rodopiar a cabeça? Onde estaria este gatilho? No plano do conteúdo? No da forma? Em ambos? O nocaute seria a revelação de um mistério, de uma intriga ou a criação de seu suspense? A composição de um personagem, suas nuanças, seus matizes ou sua firme condução? Lembremos sempre que, na literatura, personagens, cenário e tempo são todos criações da arte da palavra, tudo depende da orquestração delas, sejam muitas ou bem poucas. O conteúdo na literatura, desculpem-me, é quase nada, não requer nenhuma originalidade nem exclusividade.

Lembremos também que não valem os golpes baixos, abaixo da linha da cintura, por exemplo, e outros tantos. A luta deve ser vencida no limite das regras estipuladas. Aliás, quaisquer luta ou jogo determinam suas regras. A literatura não é um “vale tudo”, não deveria sê-lo. Nela, tudo pode fazer valer. Isso é outra coisa bem diferente. Nela, tudo pode adquirir valor estético, o mais ordinário, o mais trivial dos fatos ou sentimentos em palavras.

Para mim, a formulação de Cortázar deveria constar de qualquer livro didático de ensino médio em vez das muitas baboseiras que nada dizem. Há dois contos que parecem ótimos exemplos de nocautes. São de dois ótimos pugilistas: Rubem Fonseca e Dalton Trevisan! São eles “Passeio Noturno – parte I” e “Apelo”.

O primeiro é desconcertante não apenas porque o narrador atropela e mata, com seu potente carro e sem explicação aparente, vítimas escolhidas aleatoriamente nos subúrbios cariocas. Um golpe seco, rápido, certeiro. As descrições iniciais do ritual de uma família pequeno-burguesa sugeririam, no máximo, o tédio nosso de cada dia, jamais a frieza assassina estampada em pouquíssimas palavras. “Homem ou mulher?” Esta oração que poderia dar alguma ambiguidade e orientação para o desfecho das ações se desmonta imediatamente na seguinte. Não se trata de sexo, mas de morte. O carro acelera o motor e atropela a vítima em segundos. Mal refeito do golpe, o leitor vai à lona por nocaute, quando o personagem chega a casa, sem sobressalto, cumprimenta a mulher e vai se deitar com placidez. “Touché”!

O de Dalton Trevisan, que não tem mais que vinte linhas, retrata a passagem de um mês da partida de uma mulher, cuja ausência é relatada na desarticulação do espaço físico da casa onde até o “canário ficou mudo” e “bocas raivosas mastigam” sem conversar. Cada imagem desta falta doída é como um golpe. Para mim, o nocaute vem quando o narrador constata: “O leite primeira vez coalhou”.

(Analice Martins)

Às voltas com o tempo

Durante esta última semana, reli, não por acaso, o ensaio “Se pudesses, deverias frequentar um outro mundo”, do livro “Banalogias”, de Francisco Bosco. É um texto sobre a passagem do tempo no luto, ou melhor, sobre sua imensidão, sua ausência de margens, sua bocarra. Quando o li, pela primeira vez, em 2006, esta imagem devoradora foi a que mais me prendeu, ao lado das referências a um conto de Caio Fernando Abreu de que gosto demais: “Sem Ana, blues”.

A tese de Bosco é de que, na vigência do amor, ou melhor, na presença do ser amado, o tempo é um animal doméstico. O afeto permanente cria uma espécie de rede protetora contra o tempo. Algo como dizer que o amor nos protege do tempo, porque o coloca em ordem, escalonando-o. O amor nos protege da queda, do precipício e do abismo. O amor nos suspende em seus braços e nos embala.

Já no luto, quando o ser amado se desfaz de sua materialidade e presença, o tempo é como um animal selvagem e voraz, interrompe qualquer fluxo contínuo, retira das prateleiras tudo que parecia docemente em ordem e nos lança em mar revolto, como discorre Bosco numa linda sequência de imagens: “No luto, o tempo faz eco, é oco, retorna, perde o rumo, some na distância ou morre a nossos pés. Sala enorme, deserto, mar oceano, qualquer cenário sem margens. No luto, o tempo é sem margens. Balança como um barco. E a gente se move sem ter onde segurar. Não tem corrimão. Nem cadeiras. Fica-se de pé o tempo todo. O tempo é todo, todo o tempo. O tempo enorme, impercorrível”. O tempo, no luto, é um transatlântico à deriva.

Se o ser amado pudesse voltar, as águas revoltas se acalmariam, e retornaríamos ao centro e à gravidade necessária para o restabelecimento de tudo que é vital. No amor desfeito, o luto nos exige uma realocação de nossos impulsos libidinais. É preciso que eles tenham uma nova direção e que preencham o vazio cavado em nossas vidas. Bosco explica, a partir de Freud, a nova economia temporal que se impõe no luto e a necessidade de ressignificar o mundo.

Na morte, o luto é igualmente o oco e o eco daquele que se foi. Mas a subtração é mais abrupta, a bocarra é mais assustadora. Por isso, na morte, a recordação é um alento, não é uma alfinetada. Na morte, a lembrança é apaziguadora, porque ela preenche de vida a matéria que se desfez. No amor desfeito, a recordação pode ser mais torturante, porque ela nos lembra o que poderia ter sido e não foi.

Na morte, então, a recordação faz parte da lógica temporal que nos reestrutura e nos redireciona as vontades. Recordar, etimologicamente, significa trazer de voltar ao coração, presentificar o passado, digamos assim. Recordar é interromper a cronologia, é embaralhar ponteiros, é descarrilar as horas, é pedir para descer numa outra estação. Recordar é enganar o império de Cronos. Recordar também faz viver, por que não?

O luto existe porque o amor não acaba com as partidas. O luto só existe porque o amor não acaba, necessariamente, quando o ser amado se vai. Por isso, a recordação é uma espécie de amortização do tempo. A recordação é a essência do gênero lírico, é o elemento que permite a fusão das temporalidades e o doce engodo de sua passagem.

São conhecidos os versos de Drummond, do poema “Memória”, que dizem que “as coisas findas,/ muito mais que lindas,/essas ficarão”. O poema se inicia com o desnorteamento da partida do ser amado: “Amar o perdido/deixa confundido/este coração”. E avança para o que me parece ser a função reguladora da memória: “Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não”.

A memória e a recordação revertem, de alguma forma, o que é finito. Esse prolongamento da vida na memória e nos corações é uma insurreição, uma rebeldia contra o que se diz finito e breve. No romance “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, há um momento em que o personagem André diz: “ o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje  e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? Que instante terrível é esse que marca o salto? que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite? Limite em que as coisas já desprovidas de vibração deixam de ser simplesmente vida na corrente do dia-a-dia para ser vida nos subterrâneos da memória”.

É lá nos subterrâneos da memória que a vida se reinventa em pujança, é lá que as coisas permanecem “muito mais que lindas”, enganando o aviso das horas.

(Analice Martins)

Para sempre

“Por que Deus permite/ que as mães vão-se embora?/ Mãe não tem limite,/ é tempo sem hora,/luz que não apaga/ quando sopra o vento/ e chuva desaba,/ veludo escondido/ na pele enrugada,/ água pura, ar puro,/ puro pensamento./ Morrer acontece/ com o que é breve e passa/ sem deixar vestígio./ Mãe, na sua graça,/ é eternidade./ Por que Deus se lembra/ – mistério profundo-/ de tirá-la um dia?/ Fosse eu Rei do Mundo,/ baixava uma lei:/ Mãe não morre nunca,/mãe ficará para sempre/junto de seu filho/ e ele, velho embora,/será pequenino/ feito grão de milho.”

A primeira vez que ouvi os versos do poema “Para sempre”, de Drummond, foi dos lábios de minha mãe, Ruth Maria Chaves Martins. Não li com meus olhos, fui guiada pela voz dela. Voz que se calou na quinta passada. Minha mãe sempre fez da palavra uma semente fecundante. Aqueles que a conheceram ou dela ouviram falar não hão de me desmentir, bem sei.

Aprendi, muito cedo, que minha mãe não era só minha e de meus irmãos. Ela era também de muitos. Nunca me enciumei dessa partilha quase que compulsória. Pelo contrário, percebia que ela se multiplicava nos corações alheios, por meio de suas palavras que eram carne, fato, exemplo. Sim, nela, de alguma forma, o verbo se fazia carne, se me permitem a apropriação.

Como professora que foi, ergueu muitos mundos a partir do “reino das palavras”. Aproximava, com extrema naturalidade, palavras literárias tão distantes, de outros séculos ou mesmo milênios, como num passe de mágica. Era espantoso não só nos depararmos com o mundo de informações que carregava na memória, mas, sobretudo, sentir que tudo nos chegava sem nenhuma opressão do conhecimento. Éramos tocados doce e profundamente por suas lições que faziam as palavras dialogarem, corresponderem-se, duelarem, amasiarem-se. Minha mãe foi uma tecelã de textos. Sabia, com destreza, fio por fio, bordá-los diante de nossos olhos.

Em 2007, tive a oportunidade de lhe fazer uma homenagem pública num evento de letras e artes – o ENLETRARTE. Disse à época e reafirmo agora: Muitos a ouviram, deslumbrados e emudecidos, como se diante do narrador que compartilha com seus ouvintes o acúmulo das experiências e das leituras ou como se diante da sagacidade de Sherazade sempre a nos seduzir para a história do dia seguinte ou como se enfeitiçados pelo canto da sereia a nos levar às mais belas profundezas do mar. Foram e são muitos os mundos descortinados pela literatura com que nos presenteou. Foram muitas as veredas trilhadas com o auxílio de suas palavras.

Ouvi, certa vez, de uma colega um comentário feito por um jovem aluno de minha mãe a respeito de seu peculiar jeito de ensinar em meio a tantos apelos e artifícios tecnológicos: “Ah, dona Ruth, ela não precisa de nada não. Ela só precisa de uma caneta e de um leque!”. Somos profundamente gratos ao desenho desta caneta e ao en(canto) de suas histórias.

Poucos, talvez, tenham tido a oportunidade de conhecer a poeta que foi. Modestamente, por acreditar não ter dado a sequência necessária aos seus projetos literários, sequer comentava sobre esse assunto. Fui conhecer minha mãe-poeta já quase adulta, por intermédio dos que a leram e que admiravam sua verve poética. Só tarde fui ler seu “Roda, pião!”, livro publicado, em 1956, pelas edições “Jornal de Letras”, quando tinha apenas 22 anos. Este livro, ilustrado pelo meu pai, Oswaldo Martins, à época seu noivo, ganhou o importante prêmio Nestlé e os aplausos da crítica especializada: “Não se trata apenas de uma estilização de temas folclóricos, mas de uma aproximação à alma de nossa gente, um acordar de sua sensibilidade pela elevação da própria voz (…) Manejando com habilidade o metro popular da redondilha, dando preferência à popular quadra rimada, o verso dessa jovem poetisa revela um fino lavor artístico, pela expressão a um tempo simples e profunda, diáfana e musical. Não nos engane, porém, sua aparente facilidade, que fruto é não de uma despreocupação técnica, mas de uma luta com a palavra, de onde só saem vitoriosos os verdadeiros poetas”. Sentença que também lhe foi conferida por Manuel Bandeira, em crônica intitulada “Roda, pião!”: “Ruth é paraense, mas seria poeta até em Paris”.

Concordo com Bandeira e lhes ofereço alguns versos: “O pião entrou na roda/ entrou em mim, no meu dano,/ e rodando e bambeando/desenganou meu engano./ O pião rodou no tempo,/zuniu tão alto que ouvi;/ calou o aviso das horas/ que avisavam que perdi.” Seu pião suspendeu o tempo e as horas, seu pião zuniu alto em nossos corações, seu pião nos enredou, seu pião nos transportou.

Drummond tinha razão: morrer só acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígio. Mãe, em sua graça, é eternidade.

 (Analice Martins)

(Des)limites da educação

De fato, a educação sozinha não pode, nunca pôde, resolver desigualdades socioeconômicas. Há exceções, claro! Vez ou outra, ouvimos, lemos ou presenciamos alguns casos. Nós, professores, sabemos que a escola não consegue nem tem que sanar a fome ou prover a saúde. É, entretanto, no espaço escolar, que todas essas demandas reprimidas ou explícitas gritam urgentemente.

Tampouco a educação restringe-se ao espaço da escola. A educação é um conceito, um conjunto de operações, a articulação de várias dimensões da vida. Já a escola é o espaço onde saberes e vivências devem articular-se para erguer conhecimentos e construir uma formação cidadã.

Qual seria a lógica e a expectativa, portanto, deste funcionamento? Entender que a escola, sendo o espaço promotor, por excelência, da formação integral do cidadão, seja também o laboratório que nos tornaria indivíduos com iguais condições de pensar, trabalhar e sonhar. É isso que se afirma quando se diz que a educação pode resolver nossas desigualdades socioeconômicas. Ou seja, a escola torna-se o espaço metonímico da educação.

Ouvi, na segunda-feira, do jornalista Alexandre Garcia, em suas crônicas matinais no “Bom dia”, uma defesa inconteste da educação pública e laica neste sentido da potência de resolução de desigualdades. Em seu relato, citou a própria experiência no “antigo primário”, em que estudou na mesma sala tanto com o filho de um carroceiro quanto com o filho do maior banqueiro da cidade, para concluir que, embora tivessem entrado em posições desiguais socialmente, saíram “nivelados” pela educação. Não é a primeira vez que o ouço defender enfaticamente a educação escolar pública e laica como o trampolim e o pulo do gato para uma vida digna.

Não é por outra razão que já o vi vociferar contra a indignidade dos salários dos professores, contra a falta de investimento e de qualidade nos cursos de formação para o magistério, contra cotas etc. Não penso que o faça por demagogia ou utopia, penso que creia, por experiência própria, que tais condições sejam uma espécie de divisor de águas entre o que pode ou não uma sociedade, um país. Afinal que país é este que ignora um caminho tão lógico para o desejado progresso mensurado em índices (IDEB, IDH)?

Sua posição de ressalva com relação às cotas fundamenta-se na crença de que uma educação de qualidade e para todos resolveria as enormes e incontestáveis discrepâncias criadas por um passado colonial e, sobretudo, escravocrata. Para ele, as cotas procuram equacionar as distorções fundadoras de nossa sociedade. Essa é uma questão realmente muito delicada. Vejamos: o ministro Joaquim Barbosa, baluarte da dignidade nacional, estudou em escola e universidade públicas sem cotas, mas as defende assim como o ator Lázaro Ramos. Para o cineasta Cacá Diegues, o conceito de raça, no Brasil, é um equívoco. Portanto, todas as políticas daí derivadas incorrem na mesma falácia. Apesar disso, não se coloca contra os sistemas de reserva de cotas na educação e nos editais de cultura.

A partir do momento que se perde de vista a expectativa de uma educação de qualidade para todos, é necessário até mesmo reservar vagas para alunos de escolas públicas, já que elas não têm, grosso modo, cumprido sua função. Penso que tal reserva anula o pressuposto que deveria nortear as organizações sociais. Mas como nos colocarmos contra se não vemos outras iniciativas que possam debelar, na raiz, tais diferenças de oportunidades?

Sou filha de uma escola e de uma universidade públicas ainda de excelência. Acredito ainda hoje nesta excelência. Luto por ela, diariamente, como professora e cidadã. Gostaria que todos tivessem esta experiência radical de convivência com as diferenças, tão-somente a partir das quais podemos construir nossas singularidades.

No meu curso de Letras na UFRJ, havia tanto a filha do diplomata que chegava em carro oficial todos os dias quanto os colegas que vinham de trem, barca, ônibus. Devia haver grupos e guetos. Para mim, só importava o trânsito. Poder estar com todos, escolher com quem estar, ouvir diferentes sotaques e aperceber-me de que o meu não era o mesmo dos meus colegas cariocas da gema. Existe mesmo essa “gema”?

A dimensão escolar pública, quando com igualdades de acesso, leva ao heterogêneo, ao diverso, a uma babel de referências. Não há nada mais salutar do que isso! Nenhum aprendizado democrático se faz sem a alteridade. Então, as conclusões são mais ou menos as seguintes: a escola, para cumprir sua função instrutiva e educadora, deveria ser um polo de investimentos e investigações, um caldeirão, um laboratório, uma escada, um conjunto de janelas, um trampolim para a vida! Nela, a educação deveria levar além e fazer atravessar limites.

(Analice Martins)

Significados possíveis

A aula inaugural da Licenciatura em Letras (Português-Literaturas) do Instituto Federal Fluminense foi ministrada, na última quinta, pelo professor e poeta Antonio Carlos Secchin. Aqueles que conhecem seu longo e feliz casamento com a poesia apenas se deliciaram, mais uma vez, com esta profícua parceria. Mas aqueles que nunca o leram, como crítico ou poeta, e nunca o ouviram falar tiveram uma extraordinária oportunidade de se deixarem seduzir pelos (en)cantos do gênero lírico.

Não vou aqui fazer um resumo de sua aula, intitulada “Professando a poesia”. Não correria este risco, até porque defendo a tese de que parafrasear poesia seja algo impossível, tarefa vã. Neste sentido, concordo com outro poeta, o Antonio Cicero, que diz que, embora queiramos aproximar, muitas vezes, filosofia e poesia, há algo que as distingue radicalmente. A primeira é passível de ser parafraseada. Por mais delicado que seja, podemos parafrasear o que Platão, Kant, Heidegger, Merleau-Ponty disseram. Conseguimos transportar, quando bem sucedidos, as ideias alheias para as nossas palavras, mantendo-lhes o sentido original. Já a segunda não se rende a este procedimento dialógico. A poesia não é redutível à paráfrase. Não podemos, ainda que ousemos, dizer o que o poeta disse, senão repetindo-lhe as palavras. Ou seja, na poesia, os sentidos e significados estão indissociavelmente ligados à estrutura dos versos e ao léxico em que se enunciam. Trocar palavras, alterar sua ordem, quebrar-lhes o ritmo, tudo isso fatalmente conduzirá a outros significados e imagens.

Mas, feita esta justificativa, autorizo-me a derivar algo do que foi professado (confessado, abraçado, ensinado, executado) na aula do professor. A irredutibilidade da palavra na sua forma poética foi um dos aspectos abordados por Secchin, na intenção de mostrar que os significados dos textos poéticos não estão em um espaço “além”, fora do texto, nem em um “aquém” precursor, isto é, naqueles referentes da realidade que podem ter motivado o poema. Seus significados possíveis são resultados das escolhas linguístico-estruturais que o poeta fez para dar forma a determinados tema, experiência ou sensação colhidos ao rés-do-chão. Tais escolhas permitem interpretações que podem se alargar ou se estreitar de acordo com as circunstâncias pessoais e contextuais da leitura, mas nunca extrapolar os seus domínios contextuais de produção e/ou leitura. Melhor dizendo: seja pela estetização das condições biográficas do poeta, seja por aquela do leitor empírico, os significados de um texto transitam entre estes polos, sem precisar ultrapassá-los.

Secchin recorreu a um exemplo claríssimo: A “Canção do exílio”, poema romântico da primeira metade do século XIX, autorizaria interpretações, ainda que forçosas, como a ultrapassagem da figura paterna (Portugal) na afirmação da autonomia filial (as terras brasileiras), a representação de uma “falta”, tônica constante da poesia romântica, mas nunca a leitura de que “marcianos visitaram a terra etc.”, uma vez que, neste último e exagerado exemplo, não haveria um significante que fosse que a respaldaria. Se os exemplos não foram exatamente esses, corrijam-me!

A questão interpretativa, como o professor bem assinalou, é sobretudo da ordem do ponto de vista que se elege para “olhar” o poema. A leitura produtora de significados requer um ponto de onde se avista e que deve ser sustentado com coerência. De antemão, todas as interpretações se sustentariam, desde que o leitor declarasse seus ângulos de visão e os conduzisse com lógica e clareza. Assim, as teorias críticas formalistas, estruturalistas, hermenêuticas, psicanalíticas ou sociológicas têm a sua contribuição a dar aos significados possíveis.

Na verdade, as considerações feitas até agora, grosso modo, valeriam para o quadro interpretativo de qualquer linguagem artística que não apenas a literatura. Mas lembremos: só a literatura é capaz de produzir outros signos além da palavra. O som e a imagem são também atributos da potência da palavra.

Um dos motes da aula que uso, à guisa de conclusão deste meu artigo, foi o amedrontamento que  a poesia pode causar num primeiro momento, já que, diante dela, o leitor não tem onde se amparar. Na poesia, não há personagens cristalizados, não há um enredo que se desenrole numa linha temporal, não há espaços delimitados, não há a condução de um narrador, mas tão-somente uma voz lírica que apresenta uma realidade transfigurada pela subjetividade deste “eu” que produz o canto. É por esta razão que Secchin assevera que, na sua longa experiência docente, sempre viu os alunos se bandeando para o lado da prosa – da narrativa de ficção – como se, ao identificarem as categorias que descrevi, tivessem dado um significado ao texto, o que de fato não ocorre. Esta leitura primeira, parafrástica, é apenas uma espécie de mapeamento das categorias narrativas, não é um significado possível.

Para lá chegar, é preciso que aprendamos com a lição professada por Carlos Durummond de Andrade em “Procura da poesia”: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxeste a chave?”

(Analice Martins)

Identidade e Multiculturalismo

Edgar Morin et Patrick Singaïny - La France une et multiculturelle - Lettres aux citoyens de France.

Caminhar pelas ruas, frequentar mercados e espaços públicos é a forma mais interessante para se dimensionar a dinâmica de um lugar, entender os espaços de trocas sociais, simbólicas e linguísticas. Do alto de um ônibus, num city tour, vê-se tudo à distância, por mediações dos guias turísticos e através de um trajeto previamente selecionado. Lá de cima ou de dentro desses veículos, não se sente o cheiro nem o paladar de nada. Não há rumores nem ruídos.

Quando viajo, evito-os ao máximo ou os deixo para o final, depois de tudo percorrido e visitado pelo meu próprio arbítrio, segundo as minhas escolhas ou minhas errâncias. Sei, por outro lado, que, para otimizar o tempo, evitar desvios ou chegar a lugares inalcançáveis por meios próprios, um city tour e visitas programadas são de grande utilidade. Por isso, podemos afirmar que nem todo viajante é um turista típico – aquele que quer permanecer na sua condição ex(ótica) -, assim como nem todo turista tem o desgarramento imprescindível aos verdadeiros viajantes. Há também muitos matizes entre essas duas categorias que não chegam a se excluir de todo.

Não se trata de esconder ou camuflar os pertencimentos originários: de onde somos, de onde viemos, por e para que estamos em determinado lugar. Trata-se de querer ver o outro em seus ambientes de alteridade e não apenas a nós mesmos em ambiente estrangeiro. Por mais que nossa perfomance na língua ou dialetos dos lugares visitados seja convincente e nossos comportamentos revelem a assimilação ao lugar, a condição estrangeira não tem razão para ser disfarçada. Ela é, antes de tudo, um potente ponto de vista sobre as culturas. Todo pensador da própria cultura deveria também se colocar em condição de estranhamento.

No artigo anterior, comentei minhas impressões sobre Marseille, no sul da França, que se repetiram em outras cidades visitadas da Provence. Em especial, em Avignon. Com os movimentos da globalização e do “cosmopolitismo do pobre” (conceito do crítico Silviano Santiago), a noção de uma origem ou pertencimento únicos cada vez mais se esfacela em proveito de identidades multiculturais.

Vi fisionomias chinesas, japonesas, sauditas, libanesas, marroquinas, tunisianas, argelinas, indianas falando francês, algumas (a maioria) com os acentos regionais de seus lugares de origem ou de seus pais, outras sem acento algum. Nessas horas, lembro sempre de Caetano Veloso proclamando: “Minha pátria, minha língua”! Por esta equação, ser de um lugar implica apossar-se do corpo de uma língua, por onde se dão as experiências sociais da comunicação e das trocas. Conforme eu ia mudando de cidade, com meu “francês parisiense colonizado”, eu ia acostumando meus ouvidos às diferenças regionais para poder entender. Experiência estranha e meio esquizofrênica: não ser do país e usar a língua oficial do colonizador diante de outros que são ou estão no lugar, mas que não escondem seus múltiplos pertencimentos.

Longe dos cities tours, fui entrando em livrarias, sebos, lojas e me deparei com dois livros que saciaram um pouco minhas inquietudes. Creio que nenhum dos dois esteja ainda traduzido no Brasil, mas imagino que não tardem. Foram publicados em 2012 e 2013.

Um deles apenas folheei por mais de uma vez. O outro comprei. O primeiro é a narrativa de cunho biográfico chamada “Je suis Tzigane et je le reste” (Eu sou cigana e permaneço). É o relato de uma jovem romena refugiada, Anina Ciuciu, sua trajetória de inserção na cultura francesa e sua chegada à Sorbonne. O segundo é organizado por Edgar Morin e Patrik Singaïny e se chama “La France une et multiculturelle” (A França una e multicultural).

Este livro se organiza a partir de um artigo de Morin de 1991, revisitado e ampliado, sobre a identidade francesa em suas “possíveis origens”, suas mutações por força da imigração e do artigo de Singaïny, que afirma que “ser cidadão, na França, não significa ser necessariamente francês”. Além dessas propostas centrais dos organizadores, há 11 cartas de intelectuais que participam dessa identidade cultural híbrida, de duplos pertencimentos. Seus nomes dão conta do que falo: Sabah Abouessalam, Marc Cheb Sun, Misako Nemoto, Yu Shuo- Bossière, Nelson Vallejo-Gomes, Manuel Valls, Nacira Guénif, entre outros.

É desta última, socióloga da universidade Paris-Nord-XIII, que traduzo, livremente, algumas linhas que resumem as ideias expressas no título deste meu artigo: “ ‘Ser’ de uma nacionalidade exprime não um estado (civil), mas um processo que conjuga, sem nunca reconciliá-las , as provas mantidas em tensão pelo tempo que passa e pelo contexto em que elas se desenvolvem: tornar-se de um país, identificar-se aos seus discursos, adotar suas narrações, habitar seus lugares, instalar-se em seus hábitos(…), distanciar-se das fronteiras, cruzá-las, se possível, relevar as memórias, atravessar os períodos, viver momentos que se agregam e fazem sentido. Nenhuma versão destas provas conjugadas equivale à outra nem pode se assemelhar a ela.”

(Analice Martins)

Impressionismos

Crianças em museus não são fato incomum. Acompanhadas pelos pais ou professores, contam, às vezes, com estratégias direcionadas especificamente a elas, além de monitores treinados. A espetacularização das exposições que correm o mundo contribui ainda mais para esta etapa formativa da educação humanística.

A internet pode nos introduzir em qualquer museu, transportar-nos para salões às vezes inacessíveis ao nosso contato direto. Mídias portáteis (cds, dvds) também podem cumprir tal função. Mas insisto, ainda que démodée: a experiência do aqui e do agora, aurática, para usar o capital conceito de Walter Benjamin, é única. Poder olhar uma escultura, por exemplo, querer tocá-la sorrateiramente, sentir seu volume na experiência do próprio corpo, ver as tintas que não esmaeceram com os séculos, tapetes rijos e imponentes em suas dimensões, mobiliza todos os nossos sentidos e cognição.

Reafirmo essas impressões, porque estou na Provence. Como Marseille em 2013 é a capital europeia da cultura, há uma programação intensa e diversificadíssima para todo o ano e também para as adjacências, como Aix en Provence, Avignon, Les Baux etc. Investimento de milhões de euros, mas que está valendo cada cent. Há o que será temporário e o que permanecerá como espaço construído para a cidade, como, por exemplo, o MUCEM (Musée de Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée) e a Villa Méditerranée, em Marseille.

Nesta cidade, a segunda maior depois de Paris na França, com quase um milhão de habitantes, há uma grande e legítima preocupação com a identidade mediterrânea, mote de boa parte dos eventos. Marseille é cosmopolita, diversa étnica e religiosamente, ensolarada, aberta para o mar e suas viagens. É porta e porto de entrada e de partida. É, portanto, uma cidade que tem que exercitar o diálogo e a tolerância já que a diversidade a atravessa como o próprio mar.

Há algum tempo, ouvi um parisiense, de ascendência argelina, dizer que, quando andava pelos Champs Élysées, uma das avenidas mais nobres de Paris, sentia-se invisível, todos fingiam não vê-lo. Mas como? Era um jovem de quase dois metros de altura. Segregados nos banlieues, os bairros da periferia parisiense, sua travessia pela cidade parecia custosa. Mas Paris é também negra, árabe, mulçumana. Quem ainda insiste em não ver isso?

Percebi (mas posso estar equivocada, por isso digo que são apenas impressionismos) um movimento contrário em Marseille, pelo menos um discurso preocupado em marcar toda a diversidade que o mediterrâneo reuniu lá. Já estou em outra cidade, Aix, mas deixei Marseille com a imagem das crianças de uma escola pública, andando de mãos dadas, dois a dois, depois que saíram da exposição Les Mediterranées, acompanhados por seus professores. Meu percurso se cruzou com o deles. Confesso que, por alguns momentos, segui-os tanto no extraordinário espaço construído para a exposição, ouvindo todas as explicações, comentários e perguntas que a gentil monitora lhes fazia, como, por coincidência, no retorno do cais, onde estava instalada a exposição, ao interessante bairro Le Panier. Elas caminhavam de mãos dadas. Sem semblantes contrafeitos. Eram louras, negras, árabes, até japonesas. Tout simplement!

Como a cidade está em festa e em ebulição e as programações têm períodos determinados, a movimentação é intensa. A exposição Les mediterranées é um projeto ousado, em espaço todo montado por containeres, vazado para o mar, organizado a partir do mote de um Ulisses, incendiário de mares e fronteiras, tanto o mítico quanto os de todos os dias, desencantados e perdidos. Múltiplos eram os materiais: objetos, filmes, animações. Tróia, Cartágena, Atenas, Alexandria, Roma, Veneza, Gênova, Istambul, Argélia,Tunísia, Marselha..

Havia grupos pequenos e maiores de adolescentes, alguns ouvindo explicações, outros com pranchetas onde respondiam às perguntas de uma espécie de questionário ou formulário. Tentei ler, mas fiquei com vergonha de lhes pedir. Afinal, adolescente é adolescente!

Mais encantada ainda fiquei no Museu Cantini, também em Marseille, onde ocorria uma grande exposição da obra surrealista do pintor chileno Roberto Matta. Havia telas monumentais e nada figurativas. Matta foi um pintor extremamente engajado do ponto de vista social e sua obra é expressão desta postura. Ora, o surrealismo bem como o impressionismo, o expressionismo e os outros “ismos” vanguardistas desconstroem os referentes e os inserem numa existência artística nem sempre decodificável num primeiro momento. Fiquei olhando aquelas crianças de 5, 6 anos no máximo, de mãos dadas, contemplando telas de 20 metros de largura por 15 de altura algumas. Fiquei imaginando que no ludismo da imaginação infantil, talvez, o surrealismo não lhes fosse um espanto, nem precisasse de tantas decodificações.

O fato é que não devemos deixar as crianças apenas reféns da tecnologia – que é também material criativo inegável -, devemos também ensiná-las a ver a partir de outras telas que não apenas aquelas que podem se apagar com um simples clique.

 (Analice Martins)

Os segredos de Leminski

Não tenho nenhum pudor em dizer de que matéria é feita esta minha prosa semanal. Um pouco do que li há muito, um pouco do que leio no momento e muito do que me provoca na leitura deste ontem e deste hoje. Mais ou menos isso: escrevo estas “palavras tortas” para responder coisas para mim mesma ou coisas para outros que provavelmente não me lerão.

Então, não me constranjo em criar diálogos hipotéticos como, por exemplo, este de agora em que sinto vontade de responder ao mistério que ronda as livrarias há algumas semanas e que foi comentado durante a última tanto por José Miguel Wisnik quanto por Caetano Veloso: a vendagem surpreendente da poesia reunida de Paulo Leminski.

Como se sabe ou como alardeiam editores, poesia não vende, sobretudo, no Brasil. Quanto a isso, não há muito o que discutir. Os números são categóricos. Mas que poesia agrega, arrasta multidão e nos faz penetrar surdamente no reino das palavras, como diria Drummond, lá isto é verdade sim! Lembro-me de ter visto a mineira Adélia Prado permanecer por umas quatro horas autografando na Festa Literária de Paraty em 2006. Lembro-me ainda mais vividamente de tê-la ouvido falar de poesia, ler poesia, declamá-la, respirá-la, sem sequer se levantar da cadeira, sem nenhuma performance que não a do “verbo que se fez carne”. A plateia silenciava. Vez ou outra a interrompia com aplausos. E chorava também naquela manhã ensolarada.

Estranho que tal poder magnético não encontre tantos compradores. Será mesmo? Todo comprador é um leitor? Todo leitor, em tempos de internet, precisa comprar? Entender fenômenos de venda nas ondas do capitalismo tardio é uma multitarefa, requer a análise de aspectos como estratégias editoriais, mídia, sociologia da leitura etc. Será que um livro bem vendido se faz permanecer na memória de nossos sentidos como, às vezes, alguns versos que se colam em nossa pele como tatuagem?

A capacidade de fusão e de síntese da linguagem poética me parece uma das razões para que, queiramos ou não, sejamos atravessados pela poesia nossa de cada dia. Pense aí! Que versos ou imagens criadas por eles você carrega consigo e que lhe invadem a vida? Quando esses versos são ainda mais comprimidos, apertados em poucas estrofes ou numa só, em poucas sílabas, o potencial incendiário das palavras poéticas é enorme. Acredito ser este um dos segredos do poeta curitibano Paulo Leminski, morto em 1989, e cuja poesia foi reunida e lançada pela Companhia das Letras.

É desse delicioso espanto que falaram Wisnik e Caetano: mais de 20 mil exemplares vendidos em um mês e meio. Para eles e para muitos outros apreciadores do estilo haicai do poeta, é um fato a se comemorar. Num país de forte tradição poética, como o Brasil, mas de poucos leitores, o que explicaria o fenômeno definido por Wisnik como “um catatau cor de laranja em meio aos não sei quantos tons de cinza”, numa referência ao título de um dos livros de Leminski e à cor da edição de “Toda poesia”? O resto da metáfora cromática dispensa explicações.

Como pesquiso e arquivo definições de poesia por força do ofício, apoio-me, para tentar responder aos segredos de Leminski, numa colhida recentemente numa entrevista do jovem poeta árabe Tamin Al-Barghouti: “A poesia é uma forma mais eficiente de falar, intensificar e aprofundar o significado das palavras”. Concordo com o poeta, concordo com esta eficiência da linguagem poética. Vejo esta eficiência na poesia de Leminski.

Meu primeiro contato com sua poesia foi na Faculdade. O marido de uma amiga, ambos estudantes de Letras, ia defender uma dissertação de Mestrado sobre o poeta curitibano, e “Catatau” era seu foco central. Amizades e influências são almas gêmeas. Minha atenção primeiro se deparou com os mistérios de “Catatau”. Seus olhos já o apalparam?

Muitos anos depois, já na condição de professora, deparei-me de novo e sistematicamente com sua poesia por conta da pesquisa de uma orientanda, a jornalista Patrícia Daldegan, cujo trabalho recomendo como leitura: “Sacro lavoro: o fazer poético nos versos de Paulo Leminski”.

Confesso, então, alguns dos versos que, embora lidos na juventude, ainda carrego do meu lado esquerdo. São dois poemas de um livro que se chama “La vie em close”. Relendo-os agora, acho que se completam de certa forma: “A quem me queima/ e, queimando, reina,/ valha esta teima./ Um dia melhor me queira”. O outro é desenhado, qual haicai, na página em branco, perde um pouco a força quando transcrito assim: “haja/hoje/p//tanto/hontem”.

Como disse de início, são coisas que escrevo para responder a mim mesma. Vou, então, me dispensar de explicações maiores. Verso que é de valor vale por si mesmo. Para que roubar-lhe o segredo?

 (Analice Martins)

O fato e a foto

A caça aos irmãos Tamerlan e Dzhokhar Tsarnaev foi também prova inconteste do poderio tecnológico americano. As primeiras pistas sobre os suspeitos não foram oriundas de relatos, mas de imagens que – capturadas por câmeras em vigília constante – não deixaram que as circunstâncias e os fatos se esfumaçassem sem deixar rastros.

Depois da denúncia de que havia um homem ferido escondido num barco no quintal de uma casa em Watertown, a prisão do irmão mais novo, Dzhokhar, contou com um robô e com uma câmera térmica, instalada num helicóptero da polícia, para identificar e monitorar as reações do suspeito.

Para além das reflexões sobre as possíveis motivações do atentado em Boston, fiquei pensando na evolução das técnicas de captura do real por meio de imagens e no que este advento representa em nossas vivências pessoais e coletivas. Ter um instante de nossas vidas imobilizado por um clique significa o quê? Que dimensões existenciais ou históricas a imagem carrega consigo?

Antes da imagem em movimento, fabricada pelo cinema e captada por câmeras de vídeo, conhecíamos o desenho, a pintura, o retrato, a fotografia. Desses procedimentos, artísticos ou não, a fotografia, no século XIX, consolidou-se como a técnica mais eficiente para reprodução do real. Digo eficiente porque a serviço de intenções documentais pressupostamente baseadas na fidelidade ao acontecido. Neste sentido, as manifestações artísticas sempre foram e devem permanecer traiçoeiras, já que capazes de colocar o real sob suspeita. Talvez, por isso mesmo, sejam mais eficientes. Mas deixemos esta provocação para outro artigo.

Diante de todas as alterações por que a fotografia passou, sobretudo no século XXI, nada foi capaz de lhe roubar o poder evocativo e imobilizador do instante. Em outras palavras: Diante de uma foto, seja lá em que suporte for, teremos sempre a sensação de que algo do passado remoto ou recente virá ao nosso encontro ou de que nos transportaremos até aquele instante representado pela imagem diante de nossos olhos. Teremos também a impressão de que o tempo estancou naquele instante, emoldurado e congelado. Impressão que tanto pode nos agradar quanto nos incomodar.

Por este raciocínio, a definição conceitual que mais me agrada e me parece inabalada é a de Roland Barthes, em seu “A câmera clara”: “O que a fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento jamais se sobrepassa para outra coisa (…) ela é o Particular absoluto, a Contingência soberana”. É por este aspecto contingencial, paradoxalmente eternizado na reprodução, que a fotografia se torna um objeto documental, testemunhal. Como afirma Susan Sontag, em “Sobre a Fotografia”, “filmes e programas de televisão iluminam paredes, reluzem e se apagam; mas, com fotos, a imagem é também um objeto, leve, de produção barata, fácil de transportar, de acumular, de armazenar”.

Interessante pensar que a fotografia consiga transformar em objeto (hoje em dia não necessariamente palpável) a existência irreprodutível das contingências. Assim, podemos carregá-las mesmo que a memória não consiga guardá-las na autenticidade do aqui e agora. A memória como as artes em geral também é traiçoeira e traidora, digna de pouca confiança, capaz de inventar o não acontecido, reorganizá-lo e reinaugurá-lo. Não é à toa que é a ela que os artistas recorrem com frequência, não pelo seu potencial de veracidade, mas, pelo contrário, por seu potente dispositivo de (re)criação.

Como aliada da notícia, a foto é indicial, ou seja, denota a existência do fato, confirma-lhe a ocorrência, é, portanto, elemento comprobatório. Quando a imagem é realizada em surdina, sem a ciência do fotografado, ela atinge sua, por vezes, enganosa naturalidade. É quando fotografar, como diz Sontag, significa “apropriar-se da coisa fotografada”, sem que esta coisa possa reagir, posicionar-se, inventar-se. O que se espera do fotojornalismo é que possa penetrar o real, devassá-lo e trazê-lo intacto em suas evidências.

Por outro lado, não é nenhuma novidade das tecnologias digitais a fabricação do real, de que, aliás, a fotografia também é capaz. Os cenários, as poses, a indumentária, tudo pode criar uma falsa realidade, sugestiva de prestígio e nobreza, presentes nos retratos desde o século XIX, por exemplo. Uma vez objeto, a imagem representada na foto escreve uma história pessoal, do clã, da coletividade.

Em tempos de fotoshop, não há mais real, tudo é invenção e brincadeira. Isso, no entanto, é muito diferente, parece-me, daquilo que representa a subjetividade do fotógrafo erguida no ângulo e na perspectiva escolhida para apreender o instante. Esse recorte, quando existe, é lícito e pode ser até o trampolim para o artístico. Mas, em tempos de tecnologia robusta, tudo que é sólido se desmancha num clique. Ou melhor: em cliques velozes como os tiros de uma metralhadora. Muitos por segundo. Uma feroz recomposição da realidade, uma prática hiperrealista, que, como tal, sempre se confunde com a ficção. 

 (Analice Martins)

Tais-toi, Feliciano!

Enquanto o Senado francês, em nome da igualdade, faz avançar a tramitação e a regulamentação dos direitos civis dos homossexuais, legalizando a união entre pessoas do mesmo sexo e concedendo-lhes o direito à adoção de filhos, assistimos, no Brasil, por meio da presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, às barbáries da ignorância do deputado Marco Feliciano.

François Hollande, presidente da França, tem sofrido sérias restrições à condução de seu governo, incluindo as contundentes manifestações contrárias ao projeto de lei que outorgará aos casais homossexuais o direito à constituição da família. Centenas de milhares de manifestantes foram e ainda voltarão às ruas para protestar contra o que consideram ilegítimo. Em estados democráticos, a rua e a praça são de todos. Todos têm direito à voz e ao voto. Mas é também, em nome da democracia, que os eleitos, para representar o povo francês na Assembleia Nacional e no Senado, podem levar à frente aquilo que julgam, por maioria, ser o justo: o casamento para todos.

A ministra da Justiça da França, Christiane Taubira, procedente da Guiana Francesa, tem conduzido, com respeito ao incensado princípio “d’égalité”, apregoado desde a Revolução Francesa, e com a destreza típica dos que sabem usar a palavra para esclarecer, assunto tão espinhudo quanto este, o qual, no entanto, resolveu-se com menos contendas em países de tradição também fortemente católica e conservadora, como a Espanha.

Confesso que me espanto em ver, num país, matriz de nosso pensamento ocidental, a marcha de protesto de tantos milhares pelas avenidas de Paris. Mas me espanto mais ainda que o Brasil, onde o mito da cordialidade é fundador, possa ter permitido que chegasse ao poder de uma Comissão tão importante, como a dos Direitos Humanos, alguém tão pouco esclarecido, a quem o debate não compraz. A ignorância, razão de todas as trevas, não pode nem deve nos impingir o silêncio.

Christiane Taubira lembrou, segundo matéria do jornal “O Globo” de 13 de abril, que a “evolução da instituição do casamento é forte portadora da marca de laicidade, igualdade e liberdade do Estado Francês”. Ainda, nesta matéria, havia o depoimento do parlamentar da oposição Philippe Gosselin, um dos mais ferrenhos combatentes do casamento gay, a respeito da capacidade da ministra de debater com lucidez e clareza, estimulando até mesmo a oposição: “Com ela, o debate é mais viril. Enxerga a oposição, afronta a adversidade, aprecia a disputa. Ela gosta de seduzir e convencer. Para ganhar”.

Ora, desde que haja clareza e coerência de ideias, qualquer debate pode ser bem “viril”, roubando a metáfora da força, empregada por Gosselin.  Como pensar, no entanto, em debater com quem não se dispõe a ouvir, muito menos a pensar com o outro, a partir da diferença, condição antropológica para o entendimento de nossas identidades? Quem não vê o OUTRO não pode falar em Direitos Humanos, porque já rouba deles o princípio da igualdade.

O cenário francês ainda enfrentará muitas barricadas até o dia 23 deste mês, prazo para votação definitiva pela Assembleia Nacional do referido projeto de lei. A oposição faz um discurso ameaçador, sugerindo que, com tal aprovação, François Hollande partirá para um confronto violento com os franceses.

Em terras tupiniquins, Feliciano desconhece os princípios da argumentação, pois é capaz das mais incompetentes afirmações, beira a leviandade e espanta, dessa forma, qualquer vislumbre de luz que um debate saudável possa acender. Foi assim que, na semana passada, disparou mais um petardo, ofendendo credos e inteligências. Afinal, por que ele parece tão acuado com a possibilidade de reconhecimento dos direitos cidadãos das minorias de gênero? Como perguntou a ministra francesa: “O que o casamento homossexual vai tirar do casamento heterossexual? Nada!”

Acionou, num outro contexto, sua metralhadora cheia de mágoa contra um dos totens da inteligência nacional: Caetano Veloso. Em vídeo no Youtube, afirma que Caetano teria pedido bênção à Mãe Meninha do Gantois para que sua regravação da música “Sozinho”, de Peninha, fizesse o sucesso que de fato fez. Fosse isso, incorreria o deputado em calúnia, já que o próprio Caetano o desmentiu categoricamente, aliás nem precisaria, além de ter atestado sua desinformação, uma vez que a referida ialorixá morreu há mais de 10 anos. Mas ter que ouvi-lo dizer Mãe Meninha do “Patuá” é de doer. “Tais-toi, Feliciano!” Diante de tanta incoerência e ignorância, veio-me à cabeça a imagem da juíza Christiane Taubira, do alto de toda a sua negritude, proferindo esta sentença.

Tenho que confessar que, ainda no plano dos sonhos, fui acometida pela imagem de Caco Antibes gritando “Cala a boca, Magda!”. E, ao fundo, a risadaria em off do plenário. Pena que quem não vê o OUTRO, tampouco possa se ver e menos ainda se importe com essa nossa vingancinha intelectual.

 (Analice Martins)