A contemplação e a interatividade

O famoso quadro de René Magritte que traz a inscrição (“Isso não é um cachimbo”) não é a traição da imagem, mas a sua libertação. As imagens, como as palavras, não são as coisas. A arte, com seu dom de iludir, nos faz pensar, entretanto, que aquilo que está pintado ou escrito é a realidade em si. Por isso, o artista nos adverte para que não nos deixemos enganar.

Uma tela como esta, que remete ao jogo ilusório das imagens, coloca em questão o estatuto da representação e força o espectador a responder alguma coisa, ainda que para si mesmo. Afinal, é para isso que também serve a arte, para que reflitamos e sejamos capazes de formular respostas e questões ao que se coloca diante de nossos sentidos.

O Modernismo, mais do que qualquer outro período, trouxe o desconforto das ilusões rompidas, ao distanciar a linguagem da realidade, ou melhor, ao evidenciar que a realidade artística é fruto de um processo consciente de fabricação e não de uma espécie de aderência ou cópia. Neste sentido, foi o século XX, por estranho que pareça, o que mais intensificou a interação entre a obra e o público, já que obrigou este último a se deslocar de seu silêncio reflexivo em direção à obra.

Para que se insira num sistema comunicativo, a obra de arte deve promover a interação, ou seja, uma ação que se estabeleça entre duas ou mais coisas e que seja, portanto, recíproca. Tal rel(ação) não é necessariamente entre o artista e o público, mas entre a obra e o público.

Com os avanços da tecnologia, a ideia de interação vem sendo substituída por algo mais específico: a interatividade. Esta seria a relação tecno-social que criaria um diálogo entre o homem e a máquina, por meio de interfaces gráficas, em tempo real. Parece-me que a interatividade é apresentada como grande qualidade dos dias atuais. Mais do que isso: uma exigência ou forma de sobrevivência. Se não for interativo, não vale!

Foi mais ou menos essa a cena que presenciei durante o feriado da Páscoa. Enfim, fui ao MAR e pude mergulhar em suas profundezas. A concepção do Museu de Arte do Rio é exatamente esta: a de um mergulho. Sobe-se para depois descer e, de lá, do térreo, emergir com novos olhares sobre a cidade.

A visita se inicia pelo sexto andar, de onde se avista, em tempo real, a Baía de Guanabara. Quando entramos no museu propriamente, o hall traz um filme em preto e branco com cenas do zeppelin, do trem e da barca que chegavam ao Rio, trazendo muitos visitantes. Ao lado, uma sala com pinturas e desenhos do século XIX, representando, sobretudo, a geografia da cidade maravilhosa.

Foi nesta primeira sala, na qual entrei cerimoniosamente, que logo me desconcentrei com a exclamação (“Não tem nada interativo aqui!”) de um menino acompanhado da família e de uma dedicada mãe que, em voz igualmente alta, explicava cada tela ao seu rebento. Eu pensei, em silêncio, comigo mesma: maldita interatividade!

Interatividade é hoje uma palavra de ordem, uma profissão de fé, algo muito aborrecido que nos faz estar em estado de alerta 24h. Além de termos que permanecer online, temos que responder a tudo e a todos nem que seja com um entusiasmado “curtiu”, o sinal mais interativo do facebook. Curtir, compartilhar, comentar. Enfim, uma “verboimagia” infinita e chata.

Para que haja de fato interatividade, é necessário que os atores envolvidos sejam, a um só tempo, produtores e receptores de informação. A obra que observamos é produtora de significações quando somos capazes de reagir a ela, respondendo-lhe mesmo que em silêncio, com nossa imaginação, nossos sentimentos. O que nem todos conseguem perceber é que a simples reação a uma obra já é uma resposta atualizadora, segundo o filósofo Pierre Lévy. Responder é também produzir significações. Se assim é, a interatividade não é nenhuma novidade do século XXI. Pode até ser uma ditadura, mas novidade não é.

O que me parece muito desarrazoado é suprimir, da interatividade, a contemplação. Se algo não é observado atentamente, considerado com admiração, meditado e refletido, não suscita respostas. Logo, não se estabelece a interatividade.

Por isso, quando cheguei à última das salas do MAR, a que fica no térreo, lá estava refestelado, numa espécie de rede, o “enfant terrible” do sexto andar. Pois foi lá, em meio a luzes, cores, sons, objetos apalpáveis, ligáveis e desligáveis que renovei minha concentração contemplativa. Afinal, de que interessam respostas ao alcance de um clique e tão distantes de um “insight”?

 (Analice Martins)

Dentro da casa da imaginação

Estão em cartaz, nos cinemas do Rio de Janeiro, dois filmes imperdíveis, daqueles que vão além de suas histórias e seus modos de filmar, que constituem uma espécie de “lugar teórico”, forçando-nos à reflexão. Tramas distintas, concepções fílmicas e procedências também distintas, mas um tema em comum: a imaginação. O Aurélio apresenta várias acepções para a palavra. Vou me apoiar em três delas: faculdade de evocar imagens de objetos que já foram percebidos; faculdade de formar imagens de objetos que não foram percebidos; faculdade de realizar novas combinações de imagens.

“A caça” é uma produção dinamarquesa, de Thomas Vinterberg, um dos criadores do movimento Dogma 95, cujo maior expoente é Lars Von Tries, do premiado “Dogville”. Sem querer reerguer a bandeira do movimento, vale-se, no entanto, de alguns de seus princípios de arte engajada e naturalista, despindo-se de excessos de representação, utilizando poucas locações, às vezes, apenas uma, câmera na mão, pouco som externo, ou seja, um minimalismo funcional que não permite que a atenção do espectador se perca nos muitos recursos técnicos de que é capaz a “sétima arte”. 

“A caça” pode ser apresentado tão somente como um lúcido e belo filme sobre a falsa acusação de pedofilia contra um professor do Ensino Infantil e a consequente histeria social que se cria em torno desta possibilidade. Este não é, porém, o fio que o liga ao francês “Dentro da casa”, de François Ozon, uma interessante aula de teoria da literatura fora de manuais e tratados. Neste, não há outra intenção que não seja a de esgarçar as fronteiras entre realidade e ficção, fato e fabulação, veracidade e verossimilhança.

Na trama de Ozon, o professor de literatura se deixa enredar nas malhas da letra, como diria Silviano Santiago, e da imaginação do jovem aluno que, com sedução e ardil, captura-o, afrouxando as relações entre ambos. Germain leciona numa escola de Ensino Médio entediado com o pouco retorno de seus jovens alunos até o momento em que se depara com a redação de Claude, que narra o cotidiano da casa e da família supostamente perfeita de um amigo da escola.

Espantado com a ousadia do aluno, pensa, de início, em reprimi-lo, mas, aos poucos, torna-se o sultão de “As Mil e uma Noites”, seduzido pela senha folhetinesca “à suivre” (a seguir), maneira pela qual Claude encerra cada texto entregue a Germain. Convencido do talento literário de Claude e disposto a ajudá-lo a tornar-se o escritor que não foi, passa a dar aulas de composição narrativa ao aluno, discutindo seu processo de criação, foco de observação, estruturação de personagens e acontecimentos, estratégias de sedução do leitor ou descarte de soluções fáceis.

Qual Sherazade,  é Claude quem conduz a relação, fazendo com o que o professor e nós, espectadores e também seus sultões, fiquemos à mercê do fantástico poder da literatura, deslizando entre realidade e imaginação sem jamais sabermos quem vem primeiro, quem deflagra a criação da outra, onde uma falta e a outra complementa, porque como diz Germain: “De que vale a vida sem histórias para contar?”

Germain é a prova cabal de que é a imaginação que cria a realidade, ou, ao menos, produz um efeito de realidade potente sobre o leitor ou espectador. Por mais de uma vez, desespera-se ao crer que aquilo que Claude escreve, como, por exemplo, o suicído do amigo, seja um fato real da vida em que o sangue pulsa em nossas veias. Tropeça, cai no engodo, deixa-se arrastar pela fabulação do aluno. Neste momento, Claude liberta-se, emancipa-se, torna-se um criador, porque é capaz de “fazer crer”. Tudo que Platão temia ao expulsar os poetas de sua República.

É na capacidade de evocar imagens de objetos que já foram ou não percebidos e de realizar novas combinações entre elas que se estabelece a aproximação entre “Dentro da casa” e “A caça”, pois que é pela “virtude do muito imaginar”, como já nos ensinou Camões, que a pequena Klara, filha do melhor amigo de Lucas, o professor do Jardim de Infância no qual ela estuda, embaralha imagens de fatos ocorridos e sentimentos pulsantes e, julgando-se rejeitada pelo príncipe encantado e chegando até a beijá-lo ingenuamente para devolver-lhe a vida, acaba por empurrá-lo no precipício da marginalidade com a acusação de pedofilia.

Klara combina imagens da sexualidade iniciante do irmão, desejos e rejeições infantis com a beleza e a doçura do professor e produz, com isso, um falso fato de efeitos reais. É a partir da imaginação que se estabelece a injusta caça. Diferentemente de “Dentro da casa”, em que o espectador não consegue discernir o que é fato do que é imaginação, aqui, o espectador sabe quais são os fatos, mas fica impotente e refém diante da imaginação da personagem.

“Dentro da casa” termina com a situação que o originou: Claude, agora ao lado de Germain, diante de uma casa onde há muitas histórias que se passam e outras tantas que podem ser imaginadas. O filme termina com a máxima de qualquer manifestação artística: a imaginação pode ser mais potente do que a fiel observação da realidade.

(Analice Martins)

Nem de bolo nem de miojo

Na última semana, o jornal “O Globo” trouxe à tona a reflexão sobre os critérios de correção da redação do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), expondo tanto exemplos de “inserções totalmente indevidas”, como também as imensas dificuldades linguísticas dos jovens estudantes deste segmento. Candidatos quase todos a vagas nos bancos universitários do país, revelam pouca habilidade no manuseio da língua materna para fins comunicativos e acadêmicos.

Já escrevi sobre o ENEM em outra oportunidade, mas não vejo como me esquivar neste momento, não apenas porque a língua é um patrimônio cultural a ser preservado, mas sobretudo porque parece inviável que ela possa cumprir sua função precípua de  comunicação quando tão  maltratada. Não quero que este texto pareça uma caça às bruxas ou aos autores de desvios linguísticos que ficaram salvos de punições severas. Reproduzo aqui algumas indignações: Como o aluno responsável pela inclusão do hino do Palmeiras, numa redação cujo tema foi a imigração para o Brasil no século XXI, pôde ter alcançado 50% da nota máxima? Ainda que o tema de 2012 tenha sido espinhudo para os distantes observadores das dinâmicas sociais contemporâneas, nada justifica a postura provocativa e confessa dos estudantes que dela se valeram. Fernando Maioto afirmou que queria testar a banca e comprovar a tese de que os corretores de fato não leem a redação integralmente. Já aprovado em Medicina na Faculdade Faceres, de São José do Rio Preto, não teve medo nem pudor de jogar lenha na fogueira.

Parece-me que há vários lados nesta questão: estudantes desconhecedores do registro formal da língua portuguesa e com dificuldades de articulação de suas ideias; corretores premidos pelo tempo, pela baixíssima remuneração (R2,35 por redação corrigida) e por discordâncias na aplicação dos cinco critérios da avaliação; as prescrições da Gramática e as flexibilidades da Linguística. Ou seja, por trás dos exemplos de infrações ortográficas, sintáticas e semânticas, alardeadas pela mídia, há dimensões filosóficas que merecem ser consideradas.

Norma é, antes de tudo, um padrão que emerge dos usos linguísticos e que se legitima. Nas gramáticas das línguas, no entanto, é sobretudo um conjunto de prescrições do que está certo ou errado. Chama-se Norma Culta a que é prestigiada socialmente, quer dizer, a que se impõe por fatores político-econômicos que lhe são extrínsecos. Como parte da identidade das nações, sofre a ação de forças coercitivas que lhe controlam a dispersão, os desvios e o desmembramento, assegurando certa homogeneidade que permita o reconhecimento e a compreensão entre usuários.

O ensino de Língua Portuguesa deveria conduzir o aluno não só à percepção das variedades linguísticas (de região, de contexto, por exemplo) como também à adequação de seu emprego em situações mais ou menos formais, mais ou menos espontâneas, algo como as roupas que vestimos. Para que não sejamos “barrados no baile”, devemos obedecer às suas prescrições. Mas, em última instância, a escola deveria preparar o aluno para expressar suas ideias e seus pontos de vista críticos com clareza. De nada vale uma bela ideia na cabeça. Ela tem que funcionar quando vestida pela linguagem oral ou escrita. Aí reside o aspecto crucial para seu funcionamento: entender que a clareza e a lógica dependem do correto emprego de elementos coesivos, entre os quais, podem estar as conjunções, as preposições, os pronomes e mesmo aspectos sintáticos de concordância e regência. A ortografia seria o aspecto de mais fácil resolução, bastaria uma consulta sistemática aos dicionários, hoje, ao alcance dos dedos em celulares, tablets, notebooks. Ou então a memorização oriunda do hábito de leitura. Um usuário comum da língua deveria saber que as palavras “caju” e “Açu” não têm acento agudo no “u”, mas que “Itaú” tem. Nem seria necessário saber que, nas duas primeiras, não se acentua o “u” em palavras oxítonas. Já o “u” de “Itaú” forma, sozinho, sílaba tônica em hiato.

Vejamos de uma outra forma: De acordo com os critérios do ENEM, um  aluno pode incorrer em infrações ortográficas ou mesmo sintáticas que não comprometam a clareza de sua argumentação. Esta relativização parte do entendimento de que a Norma Culta é apenas uma das competências que o aluno deve demonstrar. Mas penso que, em qualquer caso de intencional quebra de coerência, como a inserção de assuntos não relacionados ao tema – receita de miojo ou o hino do Palmeiras – não deve haver nenhuma ponderação. A banca deve atribuir nota zero. Não cabem aqui as justificativas dos corretores de que as outras partes estavam ligadas ao tema, que não houve ofensas morais ou graves infrações linguísticas.  Uma redação é um todo coeso, não partes segmentadas, ora bolas!

O que urge discutir não são apenas os critérios empregados na correção das redações, sua aplicação mais intransigente ou não, mas que experiência linguística a Escola vem construindo na formação do aluno? Como pode prepará-los de forma eficiente para a expressão e a comunicação de seus pontos de vista? O ENEM surgiu como exame avaliativo do Ensino Médio. Como tal, deveria servir de diagnóstico para repensar seus impasses e falências.

(Analice Martins)

Os comunicadores

 

Todo sistema comunicativo mobiliza os seguintes elementos: remetente, mensagem, destinatário, código e canal. Quando as intenções da enunciação recaem sobre um desses elementos, em especial, observam-se funções distintas na linguagem empregada. Esta teoria foi apresentada pelo linguista russo Roman Jakobson, nos anos sessenta, e até hoje norteia estudos e pesquisas.

Na semana em que foi escolhido o novo Pontífice da Igreja Católica, após a renúncia inesperada de Bento XVI, as mídias multiplicaram imagens e discursos dos papas mais recentes da história. Como não sou católica nem observadora atenta de tais assuntos, não me sinto autorizada para maiores comentários, mas, ouvindo os breves pronunciamentos de Jorge Mario Bergoglio, o novo papa, inclusive o “Angelus” de domingo pela manhã, pude notar a sua condição notória de “comunicador”.

Aqueles que fazem uso da palavra oral, no exercício de suas funções (religiosos, advogados, professores, pesquisadores, jornalistas, políticos), podem fazê-lo de muitas formas, porque movidos por propósitos diversos. Contudo, para que se comuniquem de modo pleno, ou seja, estabeleçam com o público de ouvintes (destinatários) a empatia necessária para a veiculação de suas mensagens, devem observar o perfil deste público e a adequação da linguagem ao canal que a veicula. Ainda assim, nem todos têm êxito na empreitada, já que existem muitas variáveis neste processo.

Por exemplo, mesmo que se pressuponha um público homogêneo (nacionalidade, faixa etária, formação escolar, interesses comuns), ele nunca o será de fato, pois as subjetividades nos colocam em diferentes condições de escuta. Se tal público é sabidamente heterogêneo nas variantes destacadas, a tarefa é para poucos, ou melhor, para os genuínos comunicadores.

Numa sociedade espetacularizada e visual, fico com a impressão de que, para escutar e entender, os ouvintes querem mais do que palavras. Querem gestos, trejeitos, suor, slides e tecnologia. Tarefa bastante hercúlea para pobres mortais. Penso incondicionalmente que, para falar, no exercício de uma profissão ou ministério, a primeira e maior exigência seja a competência sobre a matéria a ser tratada. Se ela existe, talvez, outros fatores que arranhem a comunicação possam até ser relevados.

De quem fala tudo se exige: que seja simpático, que tenha uma voz agradável, que não tenha muitos cacoetes linguísticos, expressões de apoio (né, tá, entendeu?), que seja claro, didático e disposto à interlocução. Pobres de nós que vivemos do que falamos, temos que reunir habilidades e qualidades que vão além da competência. Ora, onde então se aproximam ou se distanciam oradores, pregadores, professores, conferencistas, jornalistas etc?

Entre eles, o que há de comum é a condição de enunciadores e, às vezes, o uso de um mesmo código (a língua em que se expressam). O que há de diferente pode ser a mensagem, o canal e o público destinatário. O quesito, no entanto, que faz a grande diferença, o “pulo do gato”, o plus, o canto da sereia (ainda que seja o papa), é algo menos tangível ou mensurável e excede teorias, isto é, a condição de comunicador, aquele que parece penetrar em todos os nossos sentidos. Aquele a quem ouviríamos por horas ininterruptas, aquele para quem acorremos quando sabemos que vai falar, aquele de quem guardamos expressões, palavras, frases inteiras ou algo mais etéreo. Aquele que nos faz pensar, que remexe nossos escaninhos e que nos toca com energia, despertando-nos da letargia de nossos pensamentos. Eu tenho minha listinha composta de pessoas públicas e anônimas. Imagino que também tenham as suas.

Jorge Mario Bergoglio, agora Francisco, tem dispensado protocolos de toda ordem, ouro e regalias. É um papa que sorri e cujos dentes, prova inconteste de sua dimensão física, já vi em várias imagens. Como todo nome é uma existência, um corpo simbólico, um ato de investidura, nomear é fazer algo ou alguém existir numa ordem simbólica. Por isso, não foi à toa que Bergoglio se rebatizou, em seu novo e desafiador apostolado, tomando de empréstimo a santidade do que foi o “irmão dos pobres e da natureza” e que rogou: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz!”.

Da janela do Vaticano, falou Francisco para os que se aglomeravam na praça São Pedro, na manhã deste último domingo. Saudou-os como “irmãos e irmãs”, despindo-se, em palavras, de hierarquias. Saudou o dia, o sol e a praça. E relembrou o quinto domingo da quaresma cristã, escolhendo como mensagem primeira as palavras de misericórdia de Jesus à mulher adúltera: “aquele que não tiver pecados que atire a primeira pedra”. E, como genuíno comunicador que é, falou de improviso, abandonando as páginas escritas que estavam em seu púlpito, enfatizou a misericórdia divina, registrando que somos nós quem nos esquecemos de pedir perdão pelos nossos pecados. Escolheu, portanto, em sua primeira comunicação direta com os fiéis, uma mensagem de tolerância, este embrião da misericórdia.

 (Analice Martins)

O que se eternizou

  

No ano em que completa 100 anos de pura eternidade, Vinicius de Moraes será ainda mais lembrado e homenageado. Vida longa à obra daquele que soube vivê-la em cada instante!

Para mim, a longevidade da obra do “poetinha”, ou seja, o fato de ela se prolongar na memória e nas leituras de muitos deve-se à sua natureza diversa: em gênero, estilo e temática. Vinicius, como sabem, foi diplomata, poeta, dramaturgo, compositor. Foi também um homem de muitos amigos, muitos amores, muitas mulheres, muitas festas, muitos shows.

Recomendo aos que ainda não assistiram ao documentário “Vinicius”, de Miguel Faria Jr, de 2005, que o façam correndo. As imagens de arquivo, os depoimentos, a leitura dramática de seus poemas e canções dão conta da intensidade de viver do artista. Há dois momentos neste filme que merecem ser relembrados aqui.

Coube ao nosso maior crítico literário as mais assertivas palavras sobre a obra do poeta. Nada de mais peso e autoridade do que as declarações de Antonio Candido: “Inserido na tradição literária da métrica e da rima, Vinicius se aproximou como poucos da vida cotidiana brasileira. Só um grande poeta poderia ter escrito ‘Balada do Mangue’”. Quem conhece o poema sabe que é também do inóspito e do amargo que Vinicius retira sua essência lírica. Enganam-se os que lhe desconhecem a percepção aguda da realidade: “Pobres flores gonocócicas/Que à noite despetalais/As vossas pétalas tóxicas!” (…)Ah, jovens putas da tarde/O que vos aconteceu/Para assim envenenardes/O pólen que Deus vos Deus?”. Só um grande poeta pôde ver na bomba atômica a “rosa com cirrose, estúpida e inválida, sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”.

Portanto, não foi apenas pelo amor que cantou e decantou que Vinícius de Moraes se eternizou. O “poetinha” se fez grande porque, profundo conhecedor da “alma brasileira”, não receou mulatizá-la, ele, “o branco mais preto do Brasil”. Conhecedor refinado da técnica do soneto, talvez senhor de alguns dos mais conhecidos da língua portuguesa, não se furtou a contaminar a nobre forma com o registro do prosaico e do coloquial, como em “Soneto da Intimidade”: “Nós todos, animais, sem comoção nenhuma/Mijamos em comum numa festa de espuma”.

Era de se esperar que os nós das gravatas do Itamaraty não contivessem seu espírito inquieto. Tivemos outros poetas, que também foram diplomatas, como João Cabral de Melo Neto por exemplo. Mas Vinicius não quis se privar da vida que urgia lá fora. Seu escritório também era o botequim, a rua, o candomblé. Na foi a janela que Vinícius elegeu como melhor ângulo de visão para seu processo de composição, mas a praça e as gentes.

Não que sua grandeza poética esteja na cassação da carreira diplomática. Isso apenas foi uma deriva da vida. Mas transitar camaleonicamente por gêneros diversos, como a crônica, a poesia, o teatro e a canção, não é para qualquer um. Ter-se saído bem em cada um deles menos ainda. Ter recorrido a registros linguísticos distintos, desamarrando-se da sisudez da normatividade da língua portuguesa, só lhe consolidou a modernidade. Ter tocado nas mazelas do mundo não lhe maculou a alegria do universo infantil de “A Arca de Noé”.

Por isso, em nada, são contraditórias, no documentário, as palavras de Caetano Veloso relembrando a “doce censura” de João Cabral à entrega visceral de Vinicius à música. Ao contrário, são palavras que só reafirmam o que Candido já dissera. Ao lamentar tal entrega, Cabral ratifica a estatura poética de Vinícius: “Com o talento dele e minha disciplina, o Brasil poderia ter realmente um grande poeta”. Acolhido pela crítica e pelo gosto popular, a eternidade na memória nacional já o espreitava. Não foi a morte que o consagrou, mas a própria vida.

Cabral não gostava de música. Mas Vinicius sim. E para quem gosta de ambas, sua obra pode ser percebida de forma mais homogênea do que a classificou a crítica literária. Mesmo que existam discussões bastante acaloradas sobre o fato de uma canção (a letra mais a música) poder ser entendida como um poema ou não, parece que ao artista nada disso é tão relevante assim. Refiro-me, por exemplo, ao “Poema dos olhos da amada”, a canção que diz: “Oh, minha amada/ Que olhos os teus/ São cais noturnos/ Cheios de adeus”. Composta para ser letra e música, não é também pura poesia? Ou seja: se a leio sem ouvi-la, não se sustenta por si mesma? Não nos arrepiamos da mesma maneira e guardamos suas palavras para sempre? Ainda que feito apenas para o papel, um poema nunca prescinde de ritmo e melodia. Se quiserem acrescentar-lhe outras sonoridades, além da natural às palavras, o que há de errado? Quem não canta “Rosa de Hiroshima” com Ney Matogrosso?

Quando vejo jovens repetindo, sem mesmo, às vezes, saberem dizer de quem são os versos (“Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure.”), como se fosse uma opinião consensual sobre a vida e o amor, só posso acreditar que é grande “o poetinha” que entendeu que “é melhor ser alegre que ser triste/(porque a) alegria é a melhor coisa que existe”.

 (Analice Martins)

 

O MAR e o olhar

Diz o poeta Antonio Cicero que “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la./ Em cofre não se guarda coisa alguma./ Em cofre perde-se a coisa à vista./ Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”. Os versos do poema “Guardar” que intitula seu livro, de 2006, me fazem pensar na função que os museus hoje desempenham na cultura de uma sociedade.

Como outros pelo mundo, o MAR (Museu de Arte do Rio) se prolonga na paisagem urbana carioca. Quer atravessar paredes e janelas. Como no movimento das ondas, avança para depois tragar. Inaugurado na última sexta-feira, este projeto é uma parceria entre a prefeitura do Rio e a Fundação Roberto Marinho, orçado em 79 milhões, mas que valerá cada centavo se cumprir uma das missões a que se propõe: educar o olhar.

As instalações do museu são dois prédios de arquiteturas distintas em estilo e épocas, mas unidos por uma espécie de onda que a eles se superpõe. Sua travessia é a dialética na qual se estrutura o poema de Cicero: “guardar uma coisa é iluminá-la ou ser por ela iluminado”. No prédio tombado, o Palacete Dom João VI, concentra-se o acervo, aquilo que deve ser olhado, fitado, admirado. No outro, um antigo hospital da Polícia Civil agora reformado, localiza-se o aprendizado do olhar: um espaço com biblioteca, auditório e salas de aula para a capacitação de professores. Esses que, de alguma forma, acendem a luz.

Ainda que pesem as delicadas relações entre arte e mercado, arte e cultura de massa, arte e consumo, “museumania”, discussões, em parte catalisadas por Andreas Huyssen, nada roubaria os horizontes do projeto, ou seja, ser um equipamento cultural que quer estar enraizado no seu entorno: na Gamboa, na Saúde e no Santo Cristo, as adjacências portuárias onde se instalou. Os operários que suaram seus esforços durante as obras de construção visitaram, com suas famílias, as exposições. Moradores destas adjacências estão sendo recrutados e capacitados para trabalharem como monitores. Algo bastante diferente da modernização excludente do início do século XX no governo do prefeito Pereira Passos.

O diferencial utópico deste MAR é tornar-se um espaço intimamente ligado à educação. A Escola do Olhar, que tem a intenção de receber e capacitar 2000 professores por ano, é a parte do museu que deve estar mais protegida, imune às traças, ao fogo e aos roubos. Lá se formarão as peças mais preciosas de seu acervo imaterial: o sujeito crítico que saberá conceber e entender a historicidade das manifestações artísticas.

Se o ânimo deste projeto vem insuflado pelas obras de revitalização da Zona Portuária carioca, pelo alardeado Museu do Amanhã, pelas Olimpíadas e pela Copa 2014, tratemos nós de nos apossarmos destas conquistas, apropriarmo-nos da cidade e de seus usos. Ergamos com os ventos que ora sopram a nosso favor uma nova forma de estar na cidade.

Quando o poeta nos alerta para o fato de que guardar uma coisa não é escondê-la, penso que também esta deva ser a preocupação precípua de um museu. Ao recolher, proteger e tornar pública uma obra aos olhos de todos, cumpre parte de sua responsabilidade cultural e social, qual seja: iluminar, jogar luz sobre os patrimônios culturais de uma cidade, de um país ou de muitas nações.

É, no entanto, quando permite que os indivíduos sejam iluminados por estes patrimônios, que sua função extrapola a dimensão meramente estética. Ao permitir que os indivíduos possam efetivamente fruir o que veem, pois serão capazes de também entender, um museu passa a ter uma dimensão transformadora.

A entrada inteira custará R$8,00. Isso é menos do que uma garrafa de cerveja na Lapa, as unhas num salão de beleza, um lanche nas redes do Bob’s, McDonald’s ou Habib’s. Não quero parecer ranzinza. Gosto de cerveja e até como um kibe, vez ou outra, no Habib’s, mas nós, professores, precisamos educar nossos sentidos, nossos olhares. Quando digo educar, refiro-me tão-somente ao seu sentido formativo, de “télos” (finalidade, fim).

Não foi sem polêmicas que o MAR se levantou. As solenidades da inauguração não abafaram os bastidores do projeto. Basta uma rápida conferida na entrevista de seu diretor cultural, Paulo Herkenhoff, concedida à Folha de São Paulo e postada no site www.artecapital.net, para que essas ilusões se desfaçam. Diz ele que não quer “um museu que seja uma vitrine, um museu dos grandes fetiches, dos recordes de aquisição, mas onde as coisas entram porque podem produzir algum sentido. É um museu de produção do pensamento”.

Esta afirmação não deixa de ser uma provocação, mas é sobretudo um divisor de águas. Sem abrir mão da atribuição de colecionar, característica distintiva entre museus e centros de cultura, por exemplo, Herkenhoff reafirma a intenção de ser um “espaço de reflexão”, daí a parceria com as universidades que têm interesse na pesquisa. Além disso, registra veemente que este museu é da cidade do Rio, para a população do Rio e pensado para rede pública municipal de ensino.

Ao priorizar a cidade e sua rede de ensino, Herkenhoff vê o turismo como o resultado de um processo e não como seu norte: “Se for bom para a rede pública, será bom para os cidadãos do Rio, e, se for bom para o cidadão do Rio, será bom para os turistas”.

Confesso que estou “mareada”. Como ainda não pude me deslocar fisicamente até o Rio, entrei apressada no site www.museumar.com, saí à cata das oficinas, dos cursos profissionalizantes, das residências de artistas no Morro da Conceição, mas está tudo em construção. Ainda há que esperar, mas que essa onda nos trague.

 (Analice Martins)

A praia e a imaginação

Não foi o registro memorialístico que me fez querer ler “A vida descalço”, de Alan Pauls. Recém traduzido no Brasil e publicado pela Cosac Naif, esse livro é antes de tudo um ensaio. O escritor argentino vasculhou suas experiências infantis e adultas atendendo, em 2006, ao convite da Editorial Sudamericana que publicava uma coleção temática sobre “lugares”.

Ao ficcionista e ex-professor de Teoria da Literatura coube a praia. Para ele, lugar por excelência da imaginação. As conceituações e reflexões sobre a relação de um intelectual com este lugar foram minha curiosidade maior. A própria ficha catalográfica classifica o livro como “ensaios argentinos”. Esta modalidade textual é bastante sedutora, pois, sem o tom tão assertivo dos artigos, dissertações e teses, permite não só a condução da escrita a partir de uma certa pessoalidade como também alguma provisoriedade do pensamento, algo que se testa e se esboça.

O tratamento estético da Cosac Naif é um atrativo a mais. Pauls abre o arquivo pessoal de fotos que inauguram cada seção do livro. Os quadros em preto e branco permitem que escolhamos as cores com que pintá-los na recepção de nossa leitura, já que é no leitor que as obras efetivamente se concretizam em seus horizontes de expectativa.

Alan Pauls é autor de uma trilogia sobre a ditadura argentina e de romances como “O passado”, filmado por Hector Babenco, além de contos, ensaios e roteiros de cinema. Neste ensaio autobiográfico, “A vida descalço”, é, sob o prisma do homem já “calçado” pelas formações culturais, citadinas e cosmopolitas, que se vislumbra e se desconstrói a “erótica da praia”. Os cenários de Villa Gesell, Cabo Polonio e mesmo do Rio de Janeiro dos anos 70 não são propriamente a festa do hedonismo, dos corpos nus, mas do encontro com a imaginação e a leitura.

A criança que sofria de “rubores terríveis” encontra na praia as telas necessárias para a projeção e para o exercício de sua imaginação. Este é o mote que permite a vasculhadela no baú de memórias que não se preocupam com cronologias nem com excessivas descrições. O que ativa a memória de Pauls é a lembrança e a procura da praia como superfície projetiva esvaziada, onde é possível imaginar e sonhar.

Talvez resida aí seu maior mérito: fugir do senso comum do lugar edênico, festivo e midiático, apto à prática de outros exercícios que não apenas os ligados ao corpo. Pauls segue na contramão das iconografias das praias midiatizadas, com uma “vulgaridade estéril”: “galãs e starlets do show business, modelos suando em discotecas de paredes acarpetadas, romances patrocinados por marcas de cerveja, esportes a vela, fofocagem televisiva, 4×4 blindados, óculos espelhados, pulseiras de ouro cintilando sobre peles que já chegavam bronzeadas das camas de bronzeamento artificial portenhas, assassinatos”.

A praia sobre a qual teoriza Pauls possui uma “castidade icônica” só compartilhada com os desertos e as ilhas. São praias perdidas, às vezes sem luz elétrica como Cabo Polonio, aquelas que podem produzir miragens como no deserto. A praia do escritor, a que se ficcionaliza em sua lembrança (por que não?), é uma “espaço-tela” ou um “espaço-escatológico” que é “ao mesmo tempo o que esteve antes e o que veio depois, o princípio e o fim, o ainda intacto e o já arrasado, a promessa e a nostalgia”.

No sentido de quem a apresenta como “espaço-tela”, não vejo, portanto, nenhuma contradição, como a criada pelo imaginário popular, sobre suas prováveis incompatibilidades com a vida intelectual. Toda ato de criação passa pela interrogação de uma tela em branco: seja a do escritor, diante da folha ou da tela branca, seja a do pintor diante de uma superfície ainda sem cores.

A imagem do intelectual infenso ao sol, branco e trancado num escritório não pode ter mais autoridade do que a daquele que procura a praia porque precisa do minimalismo e de uma espécie de virgindade expressos por Pauls. A praia seria um espaço menos saturado de imagens impositivas que nos roubam o desejo de pensar e de imaginar. Não quero dizer que a produção de imagens surja do nada. Nem para Platão as imagens nas cavernas eram tão autônomas assim. Eram também refletoras de outras realidades.

O que Alan Pauls advoga é uma espécie de “despojamento radical”, como no deserto, que nos ofereceria a possibilidade de dimensionar e reconstruir as histórias e informações que, civilizados por uma cultura acadêmica e livresca, carregamos quase como fardo às vezes. Por isso ele diz que os que vão à praia, vão sempre atrás mais ou menos da mesma coisa: “as marcas do que o mundo era antes que a mão do homem decidisse reescrevê-lo”.

Mar, costa e areia são os componentes físicos da praia, mas são também elementos propulsores da criação. Murmuram e falam. Saibamos escutá-los.

(Analice Martins)

“Agoniza, mas não morre”

Não gosto dos comentários proféticos de que o fim do livro impresso é iminente e irreversível e de que ele só sobreviverá como objeto de arte. Não acredito neles. Sou do time dos menos apocalípticos que creem na materialidade de sua permanência e de sua convivência com novos formatos. Faço coro com os que reconhecem que a televisão não assassinou o rádio nem o cinema, que o CD não destruiu o LP.

A imagem do palimpsesto, a escrita em camadas sobrepostas num pergaminho, parece-me ideal para o entendimento das dinâmicas culturais de nossa contemporaneidade. O pergaminho era reutilizado. Portanto, uma nova escrita nunca apagava por completo a anterior. Ler também era atravessar vestígios e reconstruir épocas. No pergaminho, enfrentavam-se muitas temporalidades.

Quando vejo, então, matérias como a da correspondente do jornal “O Globo”, Priscila Guilayn, sobre as mortes em série das livrarias na Espanha, fico a pensar no livro como o samba na canção de Nelson Sargento: “mudaram toda a sua estrutura, te impuseram outra cultura e você nem percebeu”. Com certeza, os fatos registrados na matéria de 19 de janeiro, pela jornalista, são duros. A histórica livraria Catalónia, em Barcelona, que foi capaz de sobreviver até à Guerra Civil Espanhola, fechou suas portas no mês passado. Esmoreceu diante de outras batalhas: uma Europa em crise, que lê menos e compra menos livros, embora publique bastante. O adversário maior, no entanto, foi a incontestável revolução promovida pelo computador e pela internet. A digitalização dos livros e sua oferta gratuita ou módica pela internet foi um golpe certeiro.

Os dados, se analisados friamente, não são tão aterrorizantes quanto saber que no lugar da Catalónia se erguerá – impávido colosso – um McDonald`s. Das 3,5 mil livrarias espanholas, a crise acabou com menos de 2%. Em Madri, para as 25 que foram fechadas, outras 27 foram abertas. Se olhados de forma apenas estatística, os números são até positivos, mas o que se esconde por trás disso é devastador. Uma livraria é um espaço com função social e não apenas comercial. Quando agarrada à história de uma cidade, de um país, é também uma instituição e, como tal, sua perda é retrocesso, é dano para a história cultural de uma região. No caso da Catalónia, segundo a referida matéria, a livraria criou uma editora para publicar autores catalães, engajou-se no movimento separatista, criou uma distribuidora para abastecer livrarias menores fora de Barcelona, financiou a compra de títulos sobre a história da Catalunha. Ou seja, não fez só negócios, mas articulações político-culturais.

A digitalização dos livros e sua disseminação só podem ser comemoradas. Afinal, o saldo dessa conta é, num certo sentido, a democratização da leitura. Aliás, não apenas isso. Produzir diretamente conteúdo para internet significa ter à disposição outras mídias: a sonora e a imagética, por exemplo. A cultura digital altera sim as estruturas da cultura impressa. No que diz respeito ao livro, seus modos de ler e de circular sobretudo. Assim como o livro impresso impôs à oralidade das narrativas outras formas de contar e de ler, a cultura digital oferece a aparente democratização do acesso, a libertação do suporte, a salvaguarda do risco de vê-los queimados ou perdidos, embora não determine obrigatoriamente mais leitores. Um usuário ou navegante não é necessariamente um leitor.

É nesse porém que vejo a importância das livrarias, do contato pessoal com o vendedor ou livreiro, da proximidade física em um lançamento, das rodas de leitura, da conversa ao pé do ouvido, de tudo que é também uma sala de bate-papo aconchegante.

Da Espanha, em Madri, vem a conquista de um novo espaço, dedicado à leitura, única razão de existência de um livro. A “Casa del lector” é um projeto afinado com tudo que a tecnologia pode nos oferecer de melhor. Há tanto acervo físico quanto digital de texto, som e imagem. Tudo ao alcance de um toque e de graça. Uma biblioteca entre o passado e o futuro. Um lugar de incentivo à formação do leitor. A casa se chama também Centro Internacional para Investigação, Desenvolvimento e Inovação da Leitura. Pesquisem e acessem www.casalector.fundacion.gsr.com.

Durante a Guerra Civil, a Catalónia teve que se chamar “La Casa del libro”, o que de fato toda livraria deveria ser: a casa do livro. Sem querer fazer trocadilhos baratos, ponho-me a pensar que, como a casa do livro é a casa da leitura, deveria ser uma porta de entrada e um convite amoroso a uma aventura verdadeiramente revolucionária. Por isso me dói ver uma cidade sem livrarias, como Campos, ou uma cidade a perder livrarias para redes de lanchonete, farmácias, supermercados, como o Rio de Janeiro. Por isso, não concordo que devamos assistir passivos à extinção das livrarias ou nos calarmos diante da sua ausência.

Está longe o futuro que se erga numa única temporalidade, na homogeneidade e na platitude de uma superfície de led carregável no bolso. Deixemos que a materialidade sobreviva! Afinal, o que faz alguém assistir a um filme em 3-D ou 4-D que não a sensação de uma dimensão física que extrapola o engodo da tela?

(Analice Martins)

A palavra e o horror

Já não bastasse o espanto diante do trágico incêndio em Santa Maria na madrugada de 27 de janeiro, espantei-me também com as páginas do primeiro caderno do jornal “O Globo” na segunda seguinte. Nenhuma seção. Um corpo só. Uma única notícia. A página inteira. O caderno inteiro em chamas. Encabeçando imagens e “leads”, um texto que logo me atropelou. Habituada à linguagem referencial, transparente e insípida do jornalismo, tropecei nas palavras que se erguiam diante dos meus olhos. O que lemos todos era muito mais do que um depoimento em primeira pessoa. A voz lírica do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar condensou os sentimentos de muitos: “Morri em Santa Maria hoje./ Quem não morreu?/ Morri na rua dos Andradas, 1925./ Numa ladeira encrespada de fumaça”.

O trauma, quase sempre, nos rouba a linguagem e estilhaça a comunicação, mas o poeta gaúcho conseguiu não emudecer diante do horror. Embora diga no verso final que “as palavras perderam o sentido”, sabe que só à literatura resta ainda a perpetuação de algum sentido. A literatura pode dizer o indizível, não “o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa”, como já nos alertou Guimarães Rosa.

As referências que aparecem no poema, tais como boate, fumaça, Santa Maria, Rua dos Andradas, 27 de janeiro de 2013, mais de duzentos e quarenta jovens compõem dados e circunstâncias. Não é, entretanto, nessa factualidade que o sentido se constrói, até porque nela só há desrazão e falta de nexo. Por que a morte chegou tão prematuramente para essas “crianças universitárias” como disse o poeta?

Fatos e fotos são pilares do jornalismo. A informação nua e crua repousa numa linguagem que, para não escapar à objetividade, deve ser o mais familiar possível, colada no cotidiano. Clareza é exigência nesse tipo de discurso. Fugir, portanto, às ambiguidades, aos sentidos figurados e à subjetividade é uma espécie de código para a linguagem jornalística. Tarefa bem difícil, pois, já que as palavras não são as coisas, elas comumente nos trapaceiam e surpreendem. Portanto, a camisa de força imposta ao discurso jornalístico quase sempre é uma falácia.

O que ocorre é o seguinte: na linguagem referencial ou denotativa, a empregada pelo jornalismo convencional, as palavras devem ficar a reboque dos fatos, já na linguagem poética ou conotativa, os fatos é que vêm puxados por ela. Nesse caso, a linguagem e a intenção de quem a emprega determinam, selecionam, ocultam e hierarquizam os fatos. Talvez, por isso, nos sintamos mais enredados diante da literatura. Ela nos envolve em sua teia, desorienta-nos num primeiro momento, para, depois, devolver-nos sentidos novos e impensados.

Assim, o uso da primeira pessoa na poesia é abrasador: “Morri sufocado de excesso de morte;/ como acordar de novo”? Por estranho que pareça, ao assumir essa primeira pessoa do discurso, o poeta transforma em próximo o que é distante, em coletivo o que é individual. Ou seja, particularizando a dor e o horror, o poeta consegue transcender os fatos, desmaterializá-los e transformá-los em linguagem a ser prolongada e compartilhada.

Walter Benjamim, um dos mais importantes pensadores da cultura da primeira metade do século XX, em seu conhecido ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, assegura que “a informação só tem valor no momento em que é nova”. Ora, se está condenada à obsolescência, não pode fazer os fatos em si sobreviverem ao tempo. Para serem parte da memória coletiva ou individual, os fatos devem estar organizados em algum tipo de linguagem plurissignificativa que nos afete.

É por isso que nem sempre o realismo documental, nas manifestações artísticas, é capaz de nos afetar verdadeiramente. Os muitos detalhes e pormenores, as longas descrições espaciais ou psicológicas, a obsessão pela precisão podem, ao contrário, nos embotar os sentidos. Para perceber, temos que estranhar, temos que desfamiliarizar olhos e sentidos, deslocá-los de suas percepções habituais. Às vezes, é no silêncio e na ausência que os sentidos se estruturam.

Quando comecei a ler o belo poema de Fabrício Carpinejar, naquela segunda-feira, fui estranhando as repetições do verbo “morrer”, do advérbio “nunca”, da conjunção “porque”. A linguagem jornalística finge não saber que as repetições intensificam sentidos e, portanto, são necessárias. Finge não entender que o azul não é azul, “o azul é cinza, porque a fumaça corrompeu o céu para sempre, e anoitecemos em 27 de janeiro de 2013”.

Não é à toa que o jornalismo literário toma emprestados à literatura vários de seus procedimentos narrativos para melhor dizer os sentidos da realidade. Controvérsias à parte, devemos reconhecer que é na arte que o “horror” deixa de ser apenas um fato para transcender o contexto que o produziu e se lançar como experiência de todos que não a viveram diretamente, mas que, ao lê-la, na pintura, no cinema, no teatro e muito especialmente, na literatura, possam também dizer “Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa”(…)/”Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram”.

 (Analice Martins)