A palavra e o horror

Já não bastasse o espanto diante do trágico incêndio em Santa Maria na madrugada de 27 de janeiro, espantei-me também com as páginas do primeiro caderno do jornal “O Globo” na segunda seguinte. Nenhuma seção. Um corpo só. Uma única notícia. A página inteira. O caderno inteiro em chamas. Encabeçando imagens e “leads”, um texto que logo me atropelou. Habituada à linguagem referencial, transparente e insípida do jornalismo, tropecei nas palavras que se erguiam diante dos meus olhos. O que lemos todos era muito mais do que um depoimento em primeira pessoa. A voz lírica do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar condensou os sentimentos de muitos: “Morri em Santa Maria hoje./ Quem não morreu?/ Morri na rua dos Andradas, 1925./ Numa ladeira encrespada de fumaça”.

O trauma, quase sempre, nos rouba a linguagem e estilhaça a comunicação, mas o poeta gaúcho conseguiu não emudecer diante do horror. Embora diga no verso final que “as palavras perderam o sentido”, sabe que só à literatura resta ainda a perpetuação de algum sentido. A literatura pode dizer o indizível, não “o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra coisa”, como já nos alertou Guimarães Rosa.

As referências que aparecem no poema, tais como boate, fumaça, Santa Maria, Rua dos Andradas, 27 de janeiro de 2013, mais de duzentos e quarenta jovens compõem dados e circunstâncias. Não é, entretanto, nessa factualidade que o sentido se constrói, até porque nela só há desrazão e falta de nexo. Por que a morte chegou tão prematuramente para essas “crianças universitárias” como disse o poeta?

Fatos e fotos são pilares do jornalismo. A informação nua e crua repousa numa linguagem que, para não escapar à objetividade, deve ser o mais familiar possível, colada no cotidiano. Clareza é exigência nesse tipo de discurso. Fugir, portanto, às ambiguidades, aos sentidos figurados e à subjetividade é uma espécie de código para a linguagem jornalística. Tarefa bem difícil, pois, já que as palavras não são as coisas, elas comumente nos trapaceiam e surpreendem. Portanto, a camisa de força imposta ao discurso jornalístico quase sempre é uma falácia.

O que ocorre é o seguinte: na linguagem referencial ou denotativa, a empregada pelo jornalismo convencional, as palavras devem ficar a reboque dos fatos, já na linguagem poética ou conotativa, os fatos é que vêm puxados por ela. Nesse caso, a linguagem e a intenção de quem a emprega determinam, selecionam, ocultam e hierarquizam os fatos. Talvez, por isso, nos sintamos mais enredados diante da literatura. Ela nos envolve em sua teia, desorienta-nos num primeiro momento, para, depois, devolver-nos sentidos novos e impensados.

Assim, o uso da primeira pessoa na poesia é abrasador: “Morri sufocado de excesso de morte;/ como acordar de novo”? Por estranho que pareça, ao assumir essa primeira pessoa do discurso, o poeta transforma em próximo o que é distante, em coletivo o que é individual. Ou seja, particularizando a dor e o horror, o poeta consegue transcender os fatos, desmaterializá-los e transformá-los em linguagem a ser prolongada e compartilhada.

Walter Benjamim, um dos mais importantes pensadores da cultura da primeira metade do século XX, em seu conhecido ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov”, assegura que “a informação só tem valor no momento em que é nova”. Ora, se está condenada à obsolescência, não pode fazer os fatos em si sobreviverem ao tempo. Para serem parte da memória coletiva ou individual, os fatos devem estar organizados em algum tipo de linguagem plurissignificativa que nos afete.

É por isso que nem sempre o realismo documental, nas manifestações artísticas, é capaz de nos afetar verdadeiramente. Os muitos detalhes e pormenores, as longas descrições espaciais ou psicológicas, a obsessão pela precisão podem, ao contrário, nos embotar os sentidos. Para perceber, temos que estranhar, temos que desfamiliarizar olhos e sentidos, deslocá-los de suas percepções habituais. Às vezes, é no silêncio e na ausência que os sentidos se estruturam.

Quando comecei a ler o belo poema de Fabrício Carpinejar, naquela segunda-feira, fui estranhando as repetições do verbo “morrer”, do advérbio “nunca”, da conjunção “porque”. A linguagem jornalística finge não saber que as repetições intensificam sentidos e, portanto, são necessárias. Finge não entender que o azul não é azul, “o azul é cinza, porque a fumaça corrompeu o céu para sempre, e anoitecemos em 27 de janeiro de 2013”.

Não é à toa que o jornalismo literário toma emprestados à literatura vários de seus procedimentos narrativos para melhor dizer os sentidos da realidade. Controvérsias à parte, devemos reconhecer que é na arte que o “horror” deixa de ser apenas um fato para transcender o contexto que o produziu e se lançar como experiência de todos que não a viveram diretamente, mas que, ao lê-la, na pintura, no cinema, no teatro e muito especialmente, na literatura, possam também dizer “Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa”(…)/”Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram”.

 (Analice Martins)

As cores da Casa Branca

“My face, your face, millions of faces in the morning’s mirrors”

(Richard Blanco)

Não há como negar que a escolha de Richard Blanco como poeta oficial para cerimônia de posse do segundo mandato de Barack Obama foi a reiteração do discurso de uma real identidade cultural para a América. Filho de exilados cubanos, Blanco nasceu na Espanha, mas foi criado nos EUA, em Miami.

Sua biografia é marcada por múltiplos pertencimentos, traço que sua poesia não esconde. Pelo contrário, essas condições plurais são vertentes fecundas para sua produção literária. Engenheiro civil por formação acadêmica, o escritor de 44 anos também fez o Mestrado em Escrita Criativa na Universidade Internacional da Flórida. Portanto, não é poeta apenas por vocação ou diletantismo. Aproveitou aquilo que os americanos, nesse sentido, têm de melhor e que nós, brasileiros, ignoramos ou preterimos: a profissionalização do escritor. Mas isso é matéria para outro artigo.

Publicou “City of a hundred fires”, “Directions to the beach of the dead” e, por último, “Looking for the Golf Motel”, sempre tematizando, seja pela recordação, seja pela experiência transfigurada em palavras, sua história pessoal escrita por fronteiras e atravessamentos da língua, dos cheiros, do paladar, da sexualidade. Frequentemente constrangido a negociar distintos pertencimentos, Richard Blanco transformou em matéria literária os muitos lugares de sua identidade cultural. Fez dela efetivamente uma “celebração móvel” na feliz definição do “papa negro” dos Estudos Culturais, Stuart Hall, um dos mais expressivos teóricos da diáspora na contemporaneidade.

Os estranhamentos do trânsito entre duas culturas ficam evidentes em alguns versos do poema “América”, de “City of a hundred fires”, que aqui traduzo livremente: “Eu falava inglês,/meus pais não./ Nós não vivíamos numa casa de dois andares/ com uma emprega doméstica;/nenhuma das meninas tinha cabelos de ouro;/ nenhum dos meus irmãos ou primos chamava-se Greg, Peter ou Marsha;/nenhum dos personagens negros ou brancos no Donna Reed/ tinha o nome de Guadalupe, Lázaro ou Mercedes;/ eles não comiam carne de porco no dia de Ação de Graças,/ eles comiam peru com molho cranberry”.

Diferentemente dos pais, cuja história de exílio é também de segregação, a criança que, com dois meses, vai para Miami é americana sem nunca deixar de ser também cubana. A relação com o sofrimento da mãe, que havia deixado em Cuba, em 1968, toda a família (pais, cada irmão, cada irmã, cada tio e cada tia), sem saber se voltaria a vê-los um dia, é a sombra, o cinza e a fenda que marcam toda e qualquer história de exílio e imigração. Ninguém lhes é incólume. O exílio sangra por gerações.

Escrever também pode ser um exorcismo de nossas lembranças, uma catarse de nossas feridas e a construção da história que se quer para si. Ainda que pelo viés intencional da ficção, o poeta consegue “fingir sentir que é dor/ a dor que deveras sente”. A homossexualidade assumida é mais um dos deslocamentos que sua poesia carrega. Ter-se criado em meio à comunidade cubana em Miami, pouco porosa à sua orientação sexual não o impediu de vivê-la de forma afirmativa, ainda que no Maine rural, onde reside atualmente com seu companheiro.

Tais condições de pertencimento não obstruem a universalidade de temas como a família, a relação frágil com o pai ou o amor que lhe são recorrentes e imperativos. São contudo variantes que matizam, como no arco-íris, o céu de sua obra. Em entrevista ao “La Bloga”, Blanco afirma seu encontro com as palavras (“eu me apaixonei” por palavras), que nunca prescindiram do rigor da lógica do engenheiro.

Se a corte democrata americana, com a interferência do próprio presidente, quis oficializar sua posse com a participação de um poeta que também representasse, pela latinidade, a explícita multiculturalidade americana e seu desejo de convivência plural nas questões de gênero e etnia, qual o problema? Obama foi eleito por essas “minorias” que somaram a maioria. Nada mais razoável que contemplá-las na cerimônia e nas ações políticas.

Na mesma entrevista, em maio de 2012, Blanco reflete sobre sua condição de escritor para além dos rótulos classificatórios da crítica especializada: “Sou um escritor americano que escreve sobre suas experiências de vida: as coisas que me movem e me obcecam como a qualquer outro poeta. No meu caso, essas questões são o lugar, a casa e a identidade cultural que surge da minha ‘participação’ na comunidade de exilados cubanos e que me faz também um escritor de Cuba, mas me reservo o direito de escrever sobre qualquer coisa. Estética e politicamente, não pertenço com exclusividade a nenhum grupo – latino, cubano, gay ou branco -, mas abraço todos. Boa escrita é boa escrita”.

No poema preparado para a posse, “Um hoje”, ousou sonhar e dizer na engenharia dos versos que “a esperança” é uma “nova constelação” e que deve ser “mapeada e nomeada por todos juntos”: “hope – a new constellation/ waiting for us to map it/ waiting four us to name it – together”.

(Analice Martins)

Letras no IFF

Nunca pensei em ser professora. Quando decidi fazer Letras, minha única pretensão era me dedicar ao estudo e à pesquisa do “fantástico mundo das palavras”: a literatura. Naquele momento, ainda não tinha a dimensão que a mágica da invenção de realidades era resultado exclusivo da forma e da intenção com que as palavras eram organizadas em prosa ou verso. Essa, talvez, tenha sido a descoberta mais significativa dos anos de faculdade.

Filha de professores, jamais desconheci a rotina e também as agruras do magistério no Brasil. Mas pude observar, desde cedo, o poder transformador que o ensino pode operar. E convivi com intensas manifestações de gratidão por parte daqueles cujas vidas tomaram novos rumos em contato com o professor. No dia do “mestre”, em especial, minha casa ficava repleta de flores, doces, telefonemas. Confesso que sempre corri para ler os cartões ou bilhetinhos que acompanhavam esses mimos. Era tão visceral tudo que estava ali, tão comovente e longe de bajulações.

Apesar de ter atravessado a infância e a adolescência com essa certeza de que o professor pudesse de fato ser, o que depois aprendi com Roland Barthes, “um guru, um iniciador de asceses”, comecei a fazer o curso de Letras sem pensar muito que este era, também, uma licenciatura e que eu sairia dali com o diploma de professora. Não tardou muito para que minha ficha caísse e, dois anos depois, eu já fazia estágio no Colégio de Aplicação da UFRJ, onde fui também professora substituta de Francês em todas as séries do Ensino Fundamental e do Médio, uma das experiências mais radicais de minha vida de professora. Começar a dar aulas ensinando uma outra língua, falando o tempo todo em outra língua e vendo isso funcionar!

Por sorte, minhas experiências no magistério foram, inicialmente, bastante díspares e, talvez por isso, fecundas. Trabalhei numa “escola pública modelo” à época, o referido CAP da UFRJ. Mas meu primeiro concurso público, para cargo efetivo, foi para o magistério estadual. Aprovada, dei aulas, meses depois de formada, no Colégio Alcebíades Schwartz, em Conselheiro Josino, uma escola na beira da estrada, com bastantes dificuldades na década de 90. Lembro-me de tudo vividamente: das goteiras, do chão de terra batida, da pouca iluminação e do estranhamento de, já lecionando a disciplina de Língua Portuguesa, sentir-me falando uma língua estrangeira. Tive que encontrar o tom, a medida, o canal de comunicação, poder, convivendo com os registros totalmente afastados da norma culta escrita e da linguagem formal falada, construir as pontes necessárias para, sem nunca marginalizar ou afastar os alunos das salas, oferecer-lhes um trampolim, uma via de inclusão social. Ensinar-lhes a ser poliglotas na própria língua e, com isso, introduzi-los no universo da leitura. Sim, porque não há leitura prazerosa sem a devida apropriação dos mecanismos de funcionamento linguísticos. Deixei a escola seis meses depois por não conseguir compatibilizar minha vida profissional e acadêmica entre Rio e Campos. Comecei o Mestrado naquele mesmo ano. Carrego, entretanto, na memória, aquela experiência, tão comum a muitos que podem estar me lendo neste momento, mas tão extraordinária para a moça que vinha de ares tão distantes. Conselheiro Josino foi meu batismo de fogo, meu ritual iniciático e a consciência da profissão que havia escolhido. Recebi uns meses depois um bilhetinho de um ex-aluno, que selou em definitivo meu compromisso com o magistério.

Minha experiência como professora dos cursos de Letras de instituições privadas da cidade, na FAFIC, hoje UNIFLU, e na Estácio de Sá, foi a história que escrevi para mim, a causa que abracei sem “medo de ser feliz”. Não é à toa que, participando da construção da primeira licenciatura em Letras em instituição pública fora das cidades do Rio e de Niterói, em nosso estado, meu coração esteja aos pulos. Constatar a reestruturação dos paradigmas por que passou o Instituto Federal Fluminense, ex-CEFET, ex-Escola Técnica, que lhe redimensionaram as funções, incluindo entre elas a formação de professores em cursos de Licenciatura, é a cereja do bolo. Há dezoito anos na instituição, tendo passado por todas essas situações organizacionais, sinto-me grávida de um filho de muitas mães. Daquela que primeiro sonhou uma Licenciatura em Letras no IFF, a professora Rita Maria de Abreu Maia, das professoras Vania Bernardo, Renata Ribeiro Gomes de Queiroz Soares, Edinalda Almeida e de seus padrinhos e madrinhas: diretores e reitor.

Puxando todas as brasas para a minha sardinha (o magistério), acho uma Licenciatura em Letras, habilitação Português-Literaturas, crucial nos dias de hoje. Precisamos formar professores competentes no ensino da língua materna, no seu manejo, nas suas diversas funções, aptos a formar leitores hábeis em códigos diversos. IDEB, ENEM ou mesmo  o exame da OAB, todos apontam um mesmo abismo do qual precisamos sair: ineficiência de leitura e incapacidade interpretativa.

Avisem, comuniquem, publiquem e venham saber por que, como disse o poeta Carlos Drummond de Andrade, “sob a pele das palavras há cifras e códigos”.

(Analice Martins)

Educação e sustentabilidade

O combate à pobreza é, sem dúvida, a primeira iniciativa para sustentar o direito a uma vida digna. Portanto é preocupação central de qualquer governo que se veja às voltas com os limites da miséria. No Brasil, em âmbito municipal ou mesmo federal, programas se multiplicam para minimizar as sequelas sociais desta questão.

O jornal O GLOBO publicou, no domingo passado, avaliações feitas por consultores do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e da UNESCO, num balanço dos dez anos do PT à frente de nossa política nacional no que disse respeito aos programas de justiça e bem estar social.

Os dados são assertivos. Com o programa Bolsa Família, que deu sequência ao Fome Zero, “o Brasil tem menos pobres e está menos desigual”. A emergência das classes C, D e E é um fato perceptível em todos os setores do consumo. Os programas de transferência de renda cumprem uma função emergencial, porém paliativa. A insuficiência de renda não dá conta do conceito de pobreza. Tal constatação aponta para outros desafios e demandas, entre os quais se situa a educação, como afirma Flávio Comim, consultor da UNESCO no Brasil: “O Bolsa Família é como remédio que baixa a febre, mas não cura. O antibiótico contra a pobreza não é a transferência de renda, mas a educação”.

Por mais que possa parecer clicherizada, essa afirmação toca no nosso calcanhar de Aquiles. Mesmo com a elevação da renda familiar e a consequente redução dos contingentes de pobreza, o Brasil não goza de nenhum status emergente em termos de performance educacional, o que obviamente compromete qualquer índice de desenvolvimento e sustentabilidade.

É claro que a educação, por si só, não obraria milagres. Ou seja, se a sociedade não dispuser de alimentação, moradia, saúde e transporte, não teremos estudantes com potencial de mobilidade nem efetiva redução das desigualdades sociais. Ter um mercado de trabalho absorvente traduz uma economia em movimento, mas não necessariamente mão de obra empregável, qual seja, apta ao desempenho das demandas requeridas.

Não há como, em pleno século XXI, falar em desenvolvimento sem relacioná-lo à ideia de sustentabilidade. Todo desenvolvimento deveria ser pensado de forma sustentável. Nossa inserção numa economia globalizada assim nos exige. Os pilares tradicionais da sustentabilidade são três: o econômico, o social e o ambiental. No entanto há frutíferas discussões sobre um quarto pilar que, no fundo, seria o responsável pela dinamização dos demais e, de certa forma, o precederia: o cultural.

Em 2001, o pesquisador e ativista australiano John Hawkes publicou o estudo “O quarto pilar da sustentabilidade: o papel essencial da cultura no planejamento público”. Há também importantes estudos do economista indiano Amartya Sen sobre a definição do conceito de desenvolvimento atrelado à liberdade de escolhas. Ora, não há escolhas nem condições de refletir sobre elas para aqueles que são reféns não apenas da fome, como também da opinião pública e midiática. Se os dados que replicamos são fidedignos, a fome não é o maior dos nossos gargalos. A falta de acesso à educação e as dificuldades (ou a pouca vontade) em torná-la uma questão de ordem são empecilhos ainda maiores.

O entendimento da cultura, do ponto de vista antropológico, como o conjunto de práticas e valores que expressa o modo de vida de um grupo ou mesmo de uma comunidade, permite-nos endossar a precedência da cultura sobre os demais pilares do desenvolvimento sustentável. Para que os aspectos econômico, social e ambiental sejam mobilizados em favor do desenvolvimento de uma região, sobretudo se esse desenvolvimento implicar a reorganização de algumas das práticas constituintes da cultura local, é fundamental que a comunidade envolvida esteja apta a refletir sobre tais práticas e possa escolher, sem imposições, alterá-las, reordená-las, dinamizá-las.

Ora, é nesse sentido que a educação pode ser um agente transformador do indivíduo e da própria sociedade, uma vez que atuará como fator de desenvolvimento. Saber preservar hábitos e práticas locais significa compreendê-los como patrimônio, ainda que imaterial. Percebê-los nas tensões entre o local e o global constitui um passo além para sua sobrevivência. Conseguir melhor aproveitar a língua, a plantação, a colheita, a pesca, o artesanato, o barro, a cerâmica ou até mesmo a tecnologia é estratégia de desenvolvimento sustentável que depende da educação, a única via capaz de retirar os antolhos a que a escuridão da ignorância nos condena.

“Pai patrão”, filme dirigido pelos irmãos Taviani e baseado no romance homônimo de Gavino Ledda, ilustra de forma dramática as relações entre a natureza e a civilização, a aldeia e o mundo, o dialeto e a língua, na opressão de um pai que condena o filho ao trabalho na lavoura, negando-lhe a oportunidade do estudo, ou seja, do alargamento dos horizontes, única mágica possível para não tornar excludentes nem incompatibilizar a cultura local e a universal.

(Analice Martins)

Novas propostas para antigos desafios

As águas de janeiro mais uma vez deixaram às claras e aos escombros problemas graves que carecem de projetos consequentes e imediatos. As construções em áreas de risco, a falta de saneamento, como o lixo não recolhido regularmente há três meses, transformaram chuva em tragédia. Desabamentos em Petrópolis e Angra dos Reis foram reincidentes e parecem fazer o ano não começar. Onde “o novo em cada amanhecer”?

Embora Zeca Pagodinho cante “deixa a vida me levar”, suas ações como Quixote solitário, na lama e no lixo de Xerém, nos trazem um alerta muito mais realista: a vida, individual ou social, é fruto de escolhas. Somos nós que devemos conduzi-la. Para tanto, elegemos representantes municipais, estaduais e federais para que não deixem a vida em “seu estado natural e de reação” nos tragar e carregar como nas correntezas dos rios que se formam depois de horas contínuas de chuva. Mas com frequência esses políticos só nos oferecem botes salva-vidas.

A tristeza desses fatos convertidos em imagens catastróficas nublam nossos desejos e minam nossas crenças em projetos quaisquer. Eduardo Paes assumiu seu segundo mandato como prefeito do Rio de Janeiro anunciando o projeto “Fábrica de Escolas” cuja intenção é construir 277 escolas em quatro anos, associando tal ampliação do espaço físico à do turno integral de sete horas. Essa iniciativa, segundo pronunciamento do próprio prefeito, é parte da meta para alçar o estado à primeira colocação no IDEB (Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico).

Alcançar um lugar de mais destaque no cenário nacional deve ser a consequência de uma meta desenvolvimentista cujo pilar é a educação. Se o entendimento for esse, os meios podem ser até legítimos, desde que não esqueçam experiências pregressas e igualmente nobres, como a dos CIEPs, nem ignorem que “o buraco seja mais embaixo”. Multiplicar espaços físicos e estender turnos não serão ações exequíveis se não forem acompanhadas da contratação professores por concurso e de sua dignificação salarial, incluindo aí plano de cargos e salários.

Enquanto a carreira de magistério, ou seja, a de formação de professores, não for entendida como prioridade nacional por sua função estratégica na melhoria de qualquer índice de desenvolvimento, de pouco adiantará erguer escolas. Professores bem formados e com perspectivas salariais dignas podem colocar de pé construções mais sólidas, podem fazer a fábrica efetivamente funcionar.

O vale-cultura, no valor de cinquenta reais, também prometido para 2013, pela ministra da Cultura Marta Suplicy, para trabalhadores regidos pela CLT e que recebam até cinco salários mínimos, entre os quais deve estar significativa parcela dos professores do país, é parte da certeza de que “o buraco é, realmente, mais embaixo” pelo fato de que o acesso a bens simbólicos e, muitas vezes imateriais, forma o mais valioso dos capitais: o cultural.

Em artigo intitulado “Literatura e cultura: lugares desmarcados e ensino em crise”, a professora da PUC-Rio Eliana Yunes coloca o dedo na ferida ao mostrar, apoiada em pesquisas, que as propostas pedagógicas mais oxigenadas trazidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (1999) precisam de professores com uma formação interdisciplinar e dialógica que inclua o consumo de experiências de leituras literária, teatral, cinematográfica, que, infelizmente, em nosso país, não são oferecidas a preços acessíveis ou mesmo de forma gratuita. Faz muita diferença pagar quase cem reais para assistir a um espetáculo teatral ou módicos seis. Instituições do Terceiro Setor, que conjugam traços da iniciativa privada e pública como SESC e SESI, ou mesmo o Centro Cultural Banco do Brasil mostram que cultura não é luxo. Ao contrário, é pedra inaugural lançada em terreno não tão movediço.

O gigantesco complexo cultural municipal, na zona oeste do Rio de Janeiro, agora batizado de Cidade das Artes, foi reinaugurado na sexta passada com o espetáculo “Rock in Rio – o musical”. As obras levaram mais de dez anos para sua conclusão e ainda há o que fazer. Mais de 560 milhões de reais saíram dos cofres públicos para a construção de uma área com cerca de 90 mil metros quadrados. Para que possa se manter, a Cidade das Artes precisa arrecadar, por ano, mais de 24 milhões de reais. Por isso, ingressos custarão inevitavelmente, como nessa estreia, entre 40 e 160 reais. Quantias que consumiriam integralmente o vale-cultura e que nos fazem pensar que iniciativas menos suntuosas possam trazer soluções mais eficazes para os nossos antigos desafios.

A educação não pode ser um luxo. Nem a vida cidadã pode ser refém de promessas de campanha.

(Analice Martins)

Salvador Dalí lido por Cecília Meireles

                                  

“És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa:
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
Porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo despovoado e profundo persiste”.

A lanterna do meu Natal

As luzes de neon que envolvem as ruas nessa época sempre me foram um convívio duro. Ofuscam minha visão e não iluminam nada. Passo por elas apressada desejando que logo se apaguem e devolvam aos lugares públicos e privados seus contornos reais. São muitas lâmpadas de luz contínua ou intermitente, coloridas em sua maioria: um cenário carnavalesco.

A árvore de Natal que se instala na Lagoa Rodrigo de Freitas, a cada ano mais alta e mais luminosa, é esquisita, qualquer que seja a sua decoração temática. Ninguém mais consegue olhar a sinuosidade das curvas da lagoa. Todos olham vidrados para a torre flutuante, contemplam-na como um espantalho às avessas capaz de atrair multidões e parar o trânsito. Pequenas embarcações se aproximam dela para que os ávidos possam admirar esse totem de luz. Meus olhos se cansam.

Na minha memória infantil, o cenário é tão outro… Os preparativos para o Natal sempre reuniram e ainda reúnem na casa de minha mãe mãos céleres que empacotam alimentos e os dispõem em cestas que serão entregues nesta data. Confesso também que a austeridade e o rigor daquela rotina me deixavam sem pouso. Na sala, uma pequena e mesma árvore prateada com poucos enfeites vermelhos era colocada sobre uma mesa de canto. Lá permanecia sem despertar muita atenção, sem interromper o ritmo da casa, recolhendo os presentes que, quase sempre, sem nenhuma cerimônia, eram abertos antes e, depois, devolvidos ao seu lugar forjado.

Atualmente observo essa rotina das cestas de longe. Embora haja lâmpadas na árvore que fica sobre a mesma mesa, ela é outra. Há luzes piscando. Tudo trazido pela iniciativa de minha sobrinha que, sozinha, se encarrega de comprar e instalar árvore, enfeites e iluminação. Ela não admite recusas. Mal dezembro começa, já vai nos encurralando: “Titia, pode comprar enfeites novos? Preciso de dinheiro para as lâmpadas!”. Sem ajuda, monta toda a engenhoca com requintes de tomadas e adaptadores. Mas ela não fica de fora do “ritual” da casa de minha mãe, onde mora. Corre para ajudar a avó a cumprir uma rotina de mais de quarenta anos.

Lembro-me de duas comunidades que eram assistidas com os alimentos das cestas de Natal. Uma ficava embaixo da ponte de Lapa. Quando chovia no dia 24 ou o rio Paraíba enchia, as construções de madeira, papelão e zinco pareciam que iam se desfazer naquela mesma noite. Mas o pequeno exército que minha mãe arregimentava tinha braços fortes e descia até lá onde, impreterivelmente, as famílias nos esperavam. Eu olhava assustada, queria descer, mas não me lembro se chegava até lá. Meu irmão era mais valente e não desgrudava de minha mãe que seguia sempre à frente segurando uma lanterna e uma lista em que estavam relacionadas as famílias que receberiam os alimentos.

O nosso trajeto mais árduo – e para mim chocante – ainda estava por vir. Atravessávamos de volta a ponte da Lapa e seguíamos para o Inferno Verde, comunidade que fica às margens do rio Paraíba. Todos se reuniam na entrada de um beco que me parecia um túnel infinito. Um cheiro acre de suor e álcool se misturava à realidade fétida da falta de infraestrutura sanitária. Seguia no meio dos amigos de minha mãe ajudando a carregar as cestas ou latas de leite Ninho que eram passadas de mão em mão até chegarem a seu destino. Quando minha mãe anunciava um nome da lista, jogando o foco de luz de sua lanterna sobre o papel e depois sobre as paredes das casas, meus olhos viam rostos tristes. Uma tristeza diferente de tudo que eu conhecia até então, que nunca tinha visto ao meu redor ou na televisão. Quando aquele foco de luz se projetava sobre o cômodo, com frequência dividido por mais de uma família, meus olhos se cegavam naquelas sombras. Minhas retinas retiveram para sempre aquele flashes tão distantes do neon das ruas, pois a única luz que se acendia de fato era a da lanterna que ela empunhava com mãos firmes.

A luz pálida que emanava da lanterna fazia nascer o que, depois, fui reencontrar, já de forma estetizada, nas telas de Portinari. Não a cena em si, como a da série “Os Retirantes”, mas a dor das figuras distorcidas e tão imensamente críveis na sua desproporção. A lágrima gigante que escorre do rosto da menina numa dessas é a síntese do que a minha memória guardou. Mas minha experiência estética foi posterior ao Inferno Verde e suas ruelas, seus tetos baixos que pareciam não permitir a entrada de uma pessoa mais alta. Tetos que pareciam comprimir aquelas vidas e sufocá-las mais do que abrigá-las do sol e da chuva.

Hoje tudo me parece ainda tão próximo, embora eu já não faça esse percurso ajudando o pequeno exército de minha mãe. Sua lembrança, no entanto, não me deixa relaxada diante de tantas lâmpadas e do neon. Um incômodo me faz correr da artificialidade dessa luz e esperar que, tendo cumprido sua tarefa anual de entrega das cestas, o semblante de minha mãe se refaça aliviado e iluminado. É essa a única luz que me acende a cada Natal.

(Analice Martins)

Um elefante na sala de estar

De nossa perspectiva ainda periférica e terceiro-mundista, tentamos, embora inconsoláveis, explicar crimes bárbaros e hediondos pela chave da miséria e dos processos de exclusão social. Assim, afastamos a banalização do mal e sua gratuidade com a procura de razões de natureza socioeconômica.

Quando uma criança negra, pobre, sem escolaridade e sem identidade civil rouba e mata, pensamos ser, ou queremos pensar ser, uma reação ao sistema que a marginaliza. Quando uma jovem de classe média alta, como Suzane Von Richthofen, planeja o assassinato cruel dos pais para tornar-se, apressadamente, herdeira de um império, queremos o apoio de justificativas psicológicas que deem conta da barbárie. Se não as encontrarmos, não nos importaremos tanto em ver a pele alva de Suzane castigada pelo sol das obrigações de sua pena e de seu cárcere. No mínimo, acreditamos ser uma paga justa: ter sua beleza destruída.

Mas, na sociedade brasileira, talvez imaginemos, ignorantes ou não, que esses são casos isolados, que não correspondem a uma espécie de sociopatia como em solo americano ou primeiro-mundista. Barbárie é o que escapa a qualquer explicação, infringindo severamente códigos de conduta compartilhados. Barbárie deveria ser um conceito relativizado como o de cultura. Por esse prisma, um índio canibal não é um bárbaro. É bem difícil, no entanto, exercitar nosso intelecto para entender esses fatos da cultura. Para nossos olhos cegos, barbárie é barbárie.

O sociopata é um bárbaro? Ignora códigos e convenções sociais? Ou é alguém adoecido pela sociedade e não propriamente alguém que se volta contra a sociedade? Os recorrentes episódios sanguinários dos EUA nos últimos quinze anos nos deixam, além de perplexos, indignados. Por que inocentes crianças e adolescentes em escolas têm que pagar com a vida a sanha doentia de jovens aparentemente não marginalizados pela miséria, pela família ou pela cultura?

A chacina em Newtown, no estado de Connecticut, foi mais uma da lista trágica da sociedade americana. Um jovem de 20 anos, Adam Lanza, entrou, com armas legalmente compradas por sua mãe, na escola de ensino fundamental Sandy Hook, e matou 6 adultos, 20 crianças com idades entre 5 e 7 anos, além da própria mãe, antes de sair de casa. O massacre reacendeu a memória de outra chacina ocorrida em 1999, na escola de Columbine, no Colorado.

“Tiros em Columbine”, polêmico documentário de Michael Moore, quis expor uma faceta do problema que tem encurralado a sociedade americana: a falta de controle na venda de armas de fogo. Em 2003, assisti ao filme “Elefante”, de Gus Van Sant, título homônimo ao do documentário de 1989, do inglês Alan Clarke, que lhe serviu de inspiração. O filme retrata o cotidiano de adolescentes numa escola de Portland, no estado de Oregon, o convívio entre amigos, casos de bullying disfarçados e uma certa tediosa rotina até que, sem indícios ou avisos, dois adolescentes recebem em casa, pelo correio, uma metralhadora semiautomática comprada, sem entraves, pela internet. A ausência de qualquer razão plausível para aquela compra mais do que um equívoco ou lacuna do roteiro traduz o grande elefante “ignorado” que o diretor do documentário diz estar na sala de estar das casas americanas, inclusive na da Casa Branca, e nos faz pensar: “Como passar indiferente por um elefante em plena sala de estar”? Esse comentário do documentarista é a explicação para escolha do seu título. Já Van Sant disse desconhecer tal explicação e afirmou ter pensando numa parábola budista quando escolheu o mesmo título para seu filme. Na parábola, o elefante ia sendo percebido por cegos a partir do tato e da apalpação de suas partes.

O fato é que as lágrimas de Barack Obama, se, por um lado, mostram que não há indiferença pessoal ao “elefante”, por outro, não conseguem removê-lo de sua sala de estar. As “ações significativas” que ele convocou em pronunciamento urgem há muito. Além de significativas devem ser plurais, pois o elefante deve ser apalpado por muitas partes. Duas delas me parecem estratégicas para sua remoção: rever a venda indiscriminada de armas de fogo, pois uma sociedade que precisa se armar a tal ponto padece de alguma doença grave, e discutir a formação de um imaginário glorioso e bélico porque vingado por heróis. Muitos heróis.

O herói, para épica clássica, era o representante das virtudes de um povo. O protagonismo do herói há muito já foi subvertido em nossas narrativas literárias e audiovisuais, mas parece que, numa cultura aprisionada em sua própria imagem glorificada, essa figura subsiste como “phatós” (doença) no lixo cinematográfico de parte do cinema americano, em séries, games.

Essa sociedade adoecida por sua autoimagem é um irremovível elefante. Como ignorá-lo? Crianças da escola de Newtown pediam à professora que não as deixasse morrerem, porque queriam passar o Natal. Infelizmente, seu Papai Noel não pôde entrar na sala de estar.

(Analice Martins)

Por que e como formar leitores?

     

O título deste artigo encerra uma das inquietações que a recém terminada bienal do livro em Campos me trouxe, aliás, que todo evento em torno da leitura me traz. Fico observando, enquanto também percorro os estandes das livrarias, os cafés literários, os espaços destinados a crianças e adolescentes, se toda aquela movimentação traz o saldo feliz da leitura ou o convite a ela.

Há eventos com propostas diferentes, alguns com leitores já consolidados ou especializados. Mas há aqueles que me parecem se perder na espetacularização midiática sem introjetar o desejo e a crença de que a leitura possa, de fato, contribuir para formação de sujeitos críticos mais aptos à reflexão sobre a realidade pessoal e social que os circunda.

Esse tom um tanto quanto cético talvez venha da constatação óbvia da falta de articulação necessária entre organizadores e público-alvo. Se este for de jovens leitores potenciais, as estratégias que envolvem a preparação de evento tão alardeado e ansiado pela sociedade não deveriam ser apenas de âmbito logístico, mas sobretudo pedagógico: por que e como formar leitores?

Se a primeira questão parece ter uma resposta consensual, levando em consideração toda uma tradição humanística, a segunda tem sido um desafio. Ora, nesse sentido, qualquer evento em torno da leitura, já que a existência real de um livro só se concretiza no ato da leitura, deveria somar esforços e pensar projetos que a façam chegar à sala de aula efetivamente.

Agendar visitações, facilitar o transporte escolar, fornecer vales-compra para professores e alunos são iniciativas louváveis, mas que fatalmente naufragarão se não tivermos professores-leitores, bibliotecas dignas e, em especial, uma sincronização das atividades agendadas para as bienais do livro, quaisquer que sejam elas.

Sendo mais sincera ainda, há muito não participava de uma, sequer como mera espectadora. Não mais acreditei nelas na maioria das cidades. Passei a frequentar eventos menores, como a Primavera dos Livros no Rio e em São Paulo, pois me eram mais satisfatórios. Eu conseguia andar, manusear livros com calma, conversar com livreiros, com amigos, assistir com atenção às participações dos convidados.

Sei que esse depoimento pode soar estranho para uma professora de literatura como eu, cuja essência do que leciona depende de leitura sistemática e renovada. Mas saía desses eventos com um enorme cansaço e com a sensação de que para ler é preciso também de silêncio e contemplação. Rabugices à parte, jamais deixei de levar as programações para minhas turmas, divulgá-las, comentá-las, dizer da importância de oportunidades como essas, convidar amigos, aliciar colegas de trabalho. Algumas vezes, tive a sorte de estar lendo com meus alunos livros cujos autores estariam na programação.

Sei que uma bienal do livro não pode resolver problemas estruturais da educação como a triste estatística do baixo índice de leitura inclusive entre professores. Um professor que não é leitor jamais formará alunos leitores, apenas os afastará cada vez mais dessa prática. Uma escola desprovida de biblioteca é com uma casa sem paredes. Não se sustenta. Ora, como, então aproveitarmos eventos como esses que mobilizam milhões de reais e que colocam à disposição, durante o período de sua realização, uma fantástica fábrica de sonhos?

Se as programações são decididas com antecedência, homenageados escolhidos, nomes agendados, por que não investir no diálogo com as escolas? Por que não formar projetos de leitura específicos, orientar professores para escolha dos livros, também convidá-los à leitura antecipada? Por que não seduzir alunos para os encontros que se darão depois? Por que as escolas não podem receber, antecipadamente, exemplares dos livros cujos autores estarão na programação? É dessa falta de articulação que falo, dessa lamentosa lacuna.

A leitura não é “um bem” de consumo imediato. O livro até pode ser. A leitura é um processo. Há protocolos, rituais. A leitura é uma construção, às vezes lenta, exige preparação, alguma teimosia e sobretudo defensores, divulgadores, disseminadores. Recentemente, ouvi um especialista falando num telejornal da Rede Globo que não deveríamos recusar leitura alguma a uma criança. Leiamos o que ela nos pede. Fiquei intrigada. Ler mesmo aqueles livros que julgamos inadequados, pouco construtivos? Depois pensei que só lendo abundantemente é que uma criança pode discernir por conta própria “o que ler e para quê”.

Essas ideias me ocorreram porque, num dos dias em que fiz a mediação de uma mesa na 7ª Bienal de Campos, fiquei assustada, como há muito já não frequentava uma, com o número de crianças e adolescentes que transitavam conduzidos por algum professor ou a esmo como se num parque de diversões. Entendo que, para muitos, a estrutura de um evento desse porte pode se assemelhar a tal entretenimento. Mas entenderia melhor se percebesse, de fato, que lá estavam porque ler pode ser, além da mais eficiente estratégia de aprendizado, a “maior diversão”!

(Analice Martins)