Carta para Hernani Heffner

Caro Hernani,

Escrevo-lhe com algum atraso. Quis fazê-lo nos dias posteriores à sua vinda a Campos, mas, ainda remoendo as informações e emoções daqueles dois dias de sua permanência em nosso câmpus no IFF, deixei que minhas ideias se reordenassem. Por coincidência, encontrei a Renata no fim de semana seguinte e reforcei os meus agradecimentos por ter, não apenas intermediado sua estada entre nós, mas por ter desde sempre nos anunciado a extensão de seus conhecimentos e a simplicidade com os repartia.

Essa é uma carta-resposta, embora você não me tenha enviado nenhuma consulta, mas a escrevi assim mesmo, porque foram muitas as perguntas que nos trouxe e que, naquele tempo breve, não puderam ser respondidas. Talvez, mesmo que houvesse esse tempo, não deveriam ter sido respondidas. O bom mesmo é quando as coisas ficam ecoando, ruminando. Por isso, minhas respostas seguem morosas, inacabadas, sem pontos finais, pois acredito que a arte deva sempre nos sufocar ou, de supetão, tirar-nos o ar, como a mancha de lama no brim branco do sujeito que vai pela rua andando distraído quando o caminhão passa e lhe salpica o paletó: É a vida! A nódoa no brim branco leva-o ao desespero, faz o sujeito satisfeito de si perceber que não se basta. Eis aí a função da arte, como já apregoara Bandeira em sua “Nova Poética”.

Renata nos anunciou todos os seus predicados, seu conhecimento teórico na área do audiovisual, sua atuação na preservação do patrimônio cinematográfico, sua condição de professor da disciplina “cinema mundial” na PUC, mas isso é pouco. Tendo sido convidado para nos falar das relações entre literatura e cinema, imaginei que fosse deter-se mais na sétima arte. Qual não foi a minha surpresa e uma das motivações dessa cartinha, quando me dei conta de que seus conhecimentos sobre literatura e sobre teoria da literatura não apenas eram oriundos da condição de amador, mas de especialista, muito particularmente no que diz respeito às formas distintas de representação com que palavra e imagem se acercam da realidade. Em que pese a pujança da imagem em nossa cultura contemporânea, você bem sabe que ela muitas vezes é mais libertária quando tributária da palavra, inventada pela palavra, assinada pela palavra. Fosse o contrário, você não nos teria trazido aquele lindo filme do Carlos Nader sobre o Waly Salomão. Salve, Salomão! O rei da sabedoria! Salve, Waly! Salve a poesia a que Waly devotou sua vida, seus desejos e ambições. Viver da palavra e para a palavra, acreditando que ela tivesse a potência de erguer mundos. A canção, atividade de composição à qual também se dedicou, foi, como disse o próprio poeta, realizada para sua sobrevivência, para levar o leite para casa. Um pouco de desfaçatez nessa afirmação talvez. Ainda assim, agradecemos, pois nos legou coisas lindas.

Escrevo mesmo, Hernani, para lhe dizer que a “moldura” que envolve a realidade, essa invenção renascentista que nos reafirma a condição de representação não só da pintura, mas das artes em geral, deveria ser nossa forma máxima de conhecimento e percepção da vida, porque a reinventaria e a subordinaria aos caprichos e à genialidade do artista. A moldura que destaca do mundo a vida e que nos dá a conhecê-la e a fruí-la em uma ordem simbólica distinta da correnteza avassaladora do fluxo da realidade empírica, às vezes, não detém a “devorante mão da negra morte”. A arte dilata a vida, mas não inibe a morte. Pena, não é?

Hernani, essa carta segue para outros tantos destinatários que não o ouviram nos dias 25 e 26 no IFF. Publico-a para que se sintam motivados a pensar a partir do que você nos propôs: A palavra ainda daria conta da realidade? Que potência teria a palavra – fonte inauguradora do mundo, convenhamos -, diante da elasticidade e da plasticidade das imagens, fabricadas e multiplicadas por tecnologias quase autômatas? A imagem precederia a palavra ou a palavra nos daria à luz, fazendo-nos existir?

Engoli em seco no exato momento em que você, muito adequadamente, relembrava-nos Walter Benjamin e a questão que deixou para a posteridade ao sucumbir (e como não?) diante do horror: O que podemos ainda narrar depois do Holocausto? Que experiências a palavra ainda comportaria ou o que poderia ainda fabular? Experiência e pobreza nos calaram? Como dizer o indizível? Abrir mão da representação e deixar a vida, ela mesma, sem cortes, edições e transubstanciações, falar sem véus? Benjamin não poderia ter morrido.

Naquele exato momento em que você, Hernani, calava-nos com as indagações do filósofo alemão e nos levava a refletir sobre a arte e a vida, assassinaram friamente, a menos de 50 metros daquele auditório, um aluno de nosso instituto. A “moldura” se desmanchou. Cruelmente tiraram a vida de um rapaz de 18 anos na esquina de nossa instituição a que você chamara, dada a excelência de nossas estruturas, de Suíça. Nossa Suíça ainda não foi capaz de calar a barbárie e a violência em nossa cidade. Mas havemos de encontrar palavras que desarticulem a barbárie, que restituam a vida, que a reinventem e que a reconduzam à possibilidade de significar na arte.

Um grande abraço,

Analice Martins

O que pode esta língua?

 “O que é uma pátria? Uma pátria pode ser um cheiro. Um buquê de cheiros. Pitangas, terra molhada, o capim macerado. Ou um verso, acrescentou Alexandre Anhanguera, um simples verso. Há versos onde cabe inteira a minha pátria”. Este é o trecho de um diálogo do livro Milagrário pessoal, do escritor angolano José Eduardo Agualusa, que meu companheiro de espaço e de afinidades, Sérgio Arruda, com brilho resenhou na semana passada.

Sinto-me, portanto, completamente dispensada da apresentação do livro, pois que não conseguiria fazer melhor. No entanto já estava eu, desde a leitura que fiz do romance um pouco antes da palestra do escritor em nossa cidade, agarrada com as impressões que a provocação do poeta Alexandre Anhanguera, personagem do livro, havia-me suscitado. Tentei, talvez já imaginando a resposta torta que viria, perguntar ao próprio Agualusa em que versos caberiam Brasil, Portugal e Angola. Óbvio que ele não me respondeu de chofre. Disse, delicadamente, que havia perguntas cujas respostas vinham depois, pois lhe ficavam ecoando. Ora, ele não precisava mesmo ter-me respondido. Um escritor não tem que revelar todos os seus segredos diante de uma plateia, não tem que se desnudar para propagar a sua obra. Um escritor, diante do público, é um personagem de si mesmo. Não porque minta, invente, camufle, mas tão-somente porque se encena no ato da fala, desfila narrativas algo desnecessárias para saciar a sanha de interlocutores “devoradores da vida alheia”. As narrativas que interessam estão lá, nos livros aos quais devemos nos lançar vorazmente. Como ele próprio esclareceu de início, a literatura não é feita para oferecer respostas, mas para colocar perguntas e nos interpelar.

As referências que sua ficção faz a Guimarães Rosa, Manoel de Barros, por exemplo, já trazem o cheiro da terra molhada, do capim macerado da língua portuguesa recriada na obra desses escritores. Por paradoxal que seja, é possível falar da pátria, sem dela falar diretamente. Basta que a língua, domada pelo escritor, dobre-se plasticamente em pitangas e cheiros. “Flor do Lácio Sambódromo, Lusamérica, latim em pó. O que quer, o que pode esta língua?” Fala, Caetano!

Então, lendo Agualusa – que lê Guimarães, Manoel de Barros, Caetano e outros tantos patrícios -, fiquei a pensar, qual seu personagem filólogo, que a pátria é um “…mistério íntimo. Penteio seus cabelos longos e ásperos no frio crepúsculo do meu quarto. Abraço-me ao seu corpo magro e choro. A minha pátria é um rumor esparso (…) As nuvens nas quais vi desenhado o meu futuro, e que logo se esfumaram. A minha mãe costurando numa velha máquina Singer o fato que o meu pai nunca chegou a vestir. A minha pátria é uma dor fantasma, como a ferida latejando na perna do jovem soldado, muito depois de lhe cortarem a perna”.

Agualusa assim como Vinícius de Moraes inventou, na língua, sua pátria, como, no fundo, deveria sempre ser. Ambos acreditaram ser ela capaz de dizer do dentro e não do fora, da saudade de quem parte para não mais voltar o mesmo. Não é isso, afinal, o que canta Vinícius em “Pátria Minha”? “A íntima doçura e a vontade de chorar”, “Vontade de beijar os olhos de minha pátria, de niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos”. “Patriazinha que não rima com mãe gentil”. “Fonte de mel, bicho triste” (…) “tenho-te em tudo que não me sinto a jeito nesta sala estrangeira com lareira e sem pé direito”.

A real experiência que a literatura promove em relação às pátrias, às identidades nacionais ou às múltiplas identificações culturais não está propriamente na geografia, no espaço material, e sim na imaterialidade da memória que a língua consegue transportar e inventar. O cheiro, o gosto, o som, as imagens só nos são tangíveis porque o código das línguas os coloca de pé e os faz roçar em nossos sentidos. Caetano tem toda razão: A pátria é a língua. Não tão homogênea como a idealizamos, mas partida, esgarçada e apropriada por muitos falares.

Uma nação, uma comunidade, um povo sem literatura – ainda que oral -, sem narrativas ou versos, não existem de fato. Povoam um território, mas não ganham a existência simbólica criada pelas palavras. A falta desse corpo simbólico os condena à morte em vida. Uma nação sem literatura não tem futuro nem passado, apenas presente.

Por isso, José Eduardo Agualusa foi muito feliz quando reconvocou o mito da Torre de Babel para entendê-lo pelo avesso. As muitas línguas e falares não são razão de intolerância ou destruição. Ao contrário, são sinal de diversidade e vida. São diferentes formas de se chegar ao Conhecimento. Deixar morrer uma língua é perder uma forma a mais de conhecer o mundo.

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OBS.: Caros leitores, até o dia 4/11, escreverei quinzenalmente. Depois, os artigos voltarão a ser semanais.

Campos, educação e eleição

Foram divulgados na sexta-feira passada os resultados do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Se o secretário estadual de Educação do Rio de Janeiro, Wilson Risoli, está comemorando a passagem do Ensino Médio para a 4ª colocação no ranking nacional, o mesmo não pôde ser feito com relação aos anos iniciais do Ensino Fundamental, sob a guarda dos poderes municipais. Aí o que se constata é um quadro de estagnação.

Neste contexto, a situação de Campos dos Goytacazes é vexaminosa. Entre os 92 municípios do estado, ocupamos a 88ª colocação. Sabemos que há uma conjuntura de fatores para análise dessas estatísticas, que os números não podem ser olhados de forma absoluta. Mesmo favorecidos pelos royalties, permanecemos afundados em contratações de professores, cargos de confiança e gratificações, sem políticas públicas – e sérias – de educação.

Escrevi, em abril deste ano, um depoimento atendendo originalmente a um pedido de reflexão acerca do cenário da educação básica em nossa cidade, o que envolve as esferas municipal, estadual e federal. Cada uma tem suas particularidades e idiossincrasias, embora um grande objetivo comum: oferecer formação cidadã a crianças, adolescentes e adultos, capacitando-os seja para o ingresso na vida universitária, seja para o mercado de trabalho.

O professor atua na área educacional. De certa forma, é um profissional da educação, mesmo que tal área envolva competências mais amplas do que as exigidas apenas à docência. Meu olhar é, portanto, relativo e circunscrito a um local de enunciação definido. Creio que isso não o invalide, pois a realidade nunca se nos apresenta em sua totalidade, mas tão-somente a partir de ângulos e perspectivas.

O texto que segue não é uma análise técnica com dados estatísticos. Tampouco são achismos infundados. É, sobretudo, uma nota de lamento e pesar. Ei-lo:

A condição topográfica de planície não deveria nos aprisionar à platitude de horizontes. Nas últimas duas décadas, nossa cidade de fato se verticalizou, em especial no que diz respeito à construção civil. O que nossos olhos divisam quando nos aproximamos de sua entrada é um cenário bem distinto do de anos atrás. Muitos prédios e construções opulentas nos dão a impressão de que vivemos uma realidade de pujança. Mas, de perto, tudo se relativiza e desmorona. O crescimento esperado como consequência do favorecimento dos royalties, que nos coloca como o 13º maior PIB do Brasil, não alavancou nosso cenário cultural nem educacional. Quantas salas de teatro temos? Quantas de cinema? Quantas de música e exposição? Quais as políticas públicas de fomento à produção artística? Aliás, o que entendemos por arte? Quantas bibliotecas públicas temos por regiões ou bairros? Qual o piso salarial dos professores do município? Qual o repasse de verbas efetivo à educação? Qual o estado de nossas escolas? Como se davam as eleições para escolha de diretores das escolas municipais? Qual a real carência dos quadros de professores? Até quando ficaremos reféns de uma política de contratação e sucateamento? Onde estão as vagas dos professores concursados para a prefeitura? Qual o investimento em sua formação e capacitação?

De que nos ufanamos tanto afinal? Campos dos Goytacazes perdeu o bonde da história há muito. E ainda mais descarrilado estará esse bonde quanto menos fizermos por uma educação pública de qualidade. O ensino público, gratuito e laico, de qualidade, deveria ser um direito de todos e uma das principais diretrizes de qualquer gestão municipal. Às vezes, é preciso reafirmar o óbvio, sem medo de ser feliz.

O ensino público, se possível em horário integral, com condições reais de manutenção de alunos e professores nas escolas, poderia nos redimir da estagnação em que nos encontramos no plano educacional e cultural no município. Só a educação pública pode promover a convivência com o heterogêneo, o múltiplo e o díspar. É, então, o único caminho para nos verticalizar de fato. Deveria ser um norte a ser perseguido obstinadamente.

Atuo na esfera pública federal de ensino, acredito no heterogêneo, no diverso. Acredito nos embates. Luto para reproduzir a experiência feliz que tive enquanto aluna do ensino público em Campos durante o meu já distante ensino médio. Aquela experiência sacudiu o meu mundinho pequeno-burguês e afortunadamente letrado. Aquela experiência me fez ler o mundo com outros olhos. Esses que só uma educação pública de qualidade é capaz de nos oferecer e que desejo para todos.

Em tempos de eleições, atentemos para os candidatos que, de fato, entendam a educação para além de merendas e políticas assistencialistas. É preciso, sim, mitigar a fome, mas é igualmente urgente criar condições de verticalizar os horizontes.

(Analice Martins)

Literatura e letra de música na escola

Ainda que não pareça nada complexa, a relação entre literatura e letra de música na sala de aula é bastante delicada. Pela facilidade de incorporação de canções ao repertório literário a ser analisado, tal relação parece mais do que bem vinda. E o é. A exigência de uma perspectiva interdisciplinar no ensino promove os diálogos entre a literatura e as demais manifestações artísticas: música, pintura, cinema, teatro. Como fica, no entanto, o professor do Ensino Básico cuja formação docente se deu de forma estanque, sem os entrelaçamentos postulados pela LDB e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais? Aí é que se criam os impasses que podem fazer naufragar as melhores propostas.

A inclusão da canção popular na sala de aula requer um posicionamento teórico do professor. Relembro aqui a intempestividade do poeta Bruno Tolentino, falecido em 2007, quando do seu retorno ao Brasil, esbravejando pelos jornais, que, nas escolas brasileiras, não se estudava mais o cânone. Só compositores da MPB. Onde estavam os autores clássicos, pelo menos de uma tradição literária nacional? Brados e excentricidade à parte, o que o poeta identificou – como negatividade – foi a relação entre a literatura brasileira e a canção, a música popular, porque não teve tempo de acompanhar o rap, o hip-hop etc.

Retomo a constatação, oriunda de pesquisa sobre professores e livros didáticos, realizada por Eliana Yunes e a que me referi no artigo da semana passada: “Um exame desta abordagem nos livros didáticos revela que o tratamento se resume a uma análise quase estilística das canções populares da trindade da MPB, Chico, Gil, Caetano, passando de longe pelo fenômeno cultural do tropicalismo e sem qualquer alusão ao plano/pauta musical do movimento. Manifestações como o rap, o hip-hop, o funk, o rock estão longe de chegar aos bancos escolares, agravado o fato quando se pensa na origem social do discente da rede pública”.

Para além desta constatação que soa também como advertência sobre o que não se deveria fazer e do lamento pela carência de uma análise de fundo mais culturalista, ou seja, histórico-social, há outro impasse que poderia ser um catalisador de reflexões: Letra de música é poesia? Tal reflexão teórica deveria preceder, do ponto de vista docente, uma inclusão indiscriminada de canções como parte do repertório literário, em especial o poético, oferecido ao aluno para análise. Refiro-me ao ensino da literatura e não a uma prática interpretativa que não esteja atrelada às especificidades do literário, em que parodiando o compositor (ou seria o poeta?): “qualquer maneira de ler vale a pena”.

Recordo-me que, em 2003, quando foi publicada a antologia Veneno antimonotonia: os melhores poemas e canções contra o tédio, que reúne poetas “de ofício” e outros tomados como tais, mas compositores originalmente, Adriana Calcanhoto declarou ao Jornal do Brasil, seu espanto ao se encontrar lado a lado com João Cabral de Melo Neto. A surpresa (ou seria modéstia?) da compositora/cantora revela a (des)marcação dos lugares na cultura contemporânea, o borramento intencional de fronteiras, o que repercute, sem dúvida, no ensino e na sua bem vinda crise. Na antologia, organizada por Eucanaã Ferraz, lá estão, lado a lado, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Chico Buarque, Caetano Veloso, Cazuza (de quem rouba o título), Gilberto Gil, Vinícius de Moraes, Noel Rosa, Ana Cristina César, Antônio Cícero, Aldir Blanc, Armando Freitas Filho, Mário Quintana, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Wally Salomão.

Tal (des)marcação de território, do ponto de vista do organizador, obedece a critérios, comungados por outros críticos, que entendem que é possível sim, em alguns casos, ler a letra de canção como poesia, como texto literário. Como bem argumenta Francisco Bosco, escritor, letrista, ensaísta, doutor em Teoria da Literatura, no belo ensaio “Letra de música é poesia?” a letra é feita para a música, “pertence a uma totalidade estética na qual estão em jogo todos os elementos musicais, portanto, não-verbais”. Assim, é de caráter heterotélico, obedece a uma finalidade de existência fora de si mesma, destina-se a um outro meio. A canção é a letra da música, amalgamada ao fim a que se destina: a música. É feita para portanto. Vive dessa reciprocidade. Já o poema encerra-se em si mesmo, não se destina a outro meio, cumpre-se em si mesmo, é de caráter autotélico. A partir desta lógica, são considerados poemas aquelas letras que apresentam uma espécie de suplementaridade, “põem-se de pé” sozinhas, independentemente do resto da sua totalidade estética, são perpetuadas e lidas sem o amparo ou mesmo no abandono das músicas às quais se destinaram. É esta autonomia que atribui existência poética às letras de muitas canções.

Então, não se trata aqui de alta e baixa culturas ou de altas literaturas e cultura de massa, fronteiras já devidamente atravessadas pela contemporaneidade. Trata-se de um entendimento, necessariamente contextualizado, de um modo específico de usar a linguagem, construído em cada época, historicamente variável. Sem tal balizamento, tudo é pretexto, escapatória, deslocamento criminoso, assassinato literário e falsidade pedagógica.

(Analice Martins)

A escola e o cinema nacional

Desde o dia 27 de junho é obrigatória, nas escolas, a exibição, por ao menos 2 horas mensais, de filmes e audiovisuais de produção nacional. A lei 13.006, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, altera o artigo 26 da lei 9.394, que dispõe sobre as diretrizes e bases curriculares da Educação Básica. A lei acolheu o projeto de autoria do senador Cristovam Buarque, que diz ser o cinema a arte mais fácil de ser levada à escola, sendo este o espaço propício à formação de uma massa crítica de cinéfilos, capazes de retroalimentar a indústria cinematográfica brasileira.

A lei acrescenta um parágrafo ao artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases, tornando a exibição de filmes de produção nacional componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola. Este mesmo artigo dispõe sobre o ensino de artes, observando matrizes regionais, o ensino da música como componente obrigatório, mas não exclusivo, e o ensino da história do Brasil a partir de nossa formação étnica e cultural híbrida, ou seja, apoiada também nas matrizes indígena e africana.

Toda lei obriga ao cumprimento de princípios e concepções. Os parágrafos mencionados do artigo 26 da lei 9.394 são bem intencionados, sem dúvida. Toda lei deveria também assegurar seu cumprimento, mas isso depende de políticas públicas muito mais do que de canetadas. E talvez seja aí que as melhores intenções vão-se pelos ralos. Ou seja, alterar, sob a forma de lei, propostas curriculares para as escolas do Ensino Básico deveria ser um movimento casado com as propostas de formação de professores no Brasil. Os projetos pedagógicos e as matrizes curriculares das licenciaturas de Artes, Letras e História em especial deveriam igualmente ser revistos, talvez, antes mesmo da sanção de leis que interfiram na Educação Básica.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1999 são também orientações que pressupõem uma formação docente muito mais oxigenada do que a que os cursos de licenciatura do país vêm oferecendo, com poucas exceções. A necessidade de integrar à sala de aula propostas interdisciplinares é desafio ainda maior do que integrar o uso das novas tecnologias ao processo de ensino e aprendizagem. Isso porque é de forma compartimentada, estanque, emparedada e autocentrada que as licenciaturas do país continuam operando.

Em artigo intitulado “Literatura e Cultura: lugares desmarcados e ensino em crise”, a professora e pesquisadora Eliana Yunes já advertia para a precária realidade da formação do magistério no Brasil: “Além de não-leitores, com pequeno repertório literário de baixa atualidade, os professores premidos entre os parcos salários e a desvalorização social que os lança na roda-viva das inumeráveis aulas sem pesquisa, não acompanham os movimentos da cultura a seu redor e, por isso, pouco podem mobilizar das produções mais próximas ao alunado, em favor de uma inserção mais consciente destas linguagens e seus usos, o que criaria outro tipo de participação menos retórica e alienada, quando não absolutamente includente”. Não é com R$50 de vale-cultura que se resolverá questão tão estruturalmente delicada. Ou se corrige o problema na base ou de pouco valerão remendos e medidas paliativas.

A nova lei sancionada pela presidente diz apenas da obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais, já a ementa do projeto de Cristovam Buarque fala também em análise dessas produções audiovisuais, o que é proposta bem mais ambiciosa e exigente, pois requer profissionais habilitados para tratarem não apenas questões temáticas e conteudísticas (tarefa comum em debates), mas questões específicas da linguagem cinematográfica, de sua produção enquanto imagem em movimento, de suas opções estéticas e de funcionamento, além de outras dialógicas e interdisciplinares, que possam ajudar a construir uma “massa crítica”, como deseja o autor do projeto e todos nós.

Mas faço coro novamente com a professora Eliana Yunes quando indaga: “Como tratar filmes, diretores, estilos, linguagens se a familiaridade e o aparato reflexivo (dos docentes) são rarefeitos? Sabe-se lá pensar a relação de Nelson Pereira dos Santos com Vidas secas, de Graciliano Ramos, já que ‘é mais fácil e rápido ver o filme do que ler’? Mas uma coisa não é a outra, e tratar o cinema em classe com os mesmos impasses do trato da literatura não faz avançar o debate. De que modo se vê/lê filmes autorais como Central do Brasil e ou O baile perfumado, para não falar da obra de Fernando Carvalho sobre a narrativa de Raduan Nassar, pensando em quem não leu o livro, Lavoura arcaica?”

Pelo que entendi, a lei não diz a quem caberá a condução dessas exibições. À escola, sem dúvida. Mas quais serão os agentes envolvidos? Os professores? Especialistas convidados? Para que a intenção não se perca na poeira e se torne mais um imbróglio para as escolas, deve-se procurar integrá-la à formação docente capacitada. Se de todo isso não acontecer, que, pelo menos, a iniciativa figure como um grito contra os enlatados americanos.

(Analice Martins)

Soterrados pela informação

A informação nos liberta. Sua sonegação nos coloca antolhos. Sociedades democráticas e de livre expressão lutam por ela. Sociedades cerceadas pelo estado e pelo militarismo padecem de sua ausência.

No século XXI, ela continua sendo um valioso capital, mas, por andar na velocidade da luz e na palma de nossas mãos, perdeu sua primazia entre nossas urgências e, sobretudo, espetacularizou-se. Como quase todo o resto, é consumida entre fofocas, coca-cola e pipoca. Perdeu a gravidade e a circunspecção. É muitas vezes acompanhada com a distração do entretenimento. Ainda que trágicas, são mais imagem do que realidade.

Tais afirmações podem parecer estranhas, espantando entusiastas da tecnologia “up to date” e jornalistas e emissoras de plantão, mais ávidos pelo furo do que pelo fato em si. Poucas, insisto, são as informações – entre as que nos chegam em cascata – capazes de congelar nossa hiperatividade de sentidos e nossas múltiplas demandas. Estamos sempre zapeando canais e redes, surfando sobre elas.

Replicá-las, compartilhá-las ou curti-las são mais atitudes instintivas do que reflexivas. Quase sempre não merecem uma linha sequer de nossos comentários, muito menos de nosso empenho crítico. Transformam-se, em nossas redes e perfis, apenas em números de postagens, não têm volume algum, vão-se sucedendo entre caras e bocas, não obedecem a nenhuma seleção ou hierarquia de critérios. Tanto faz a Faixa de Gaza ou o Ebola ou Anitta ou Fábio Porchat. Tudo passa pelos sites de notícias e pelas redes sociais. As informações acabam por ter uma dimensão horizontalizada e sintagmática. Não apresentam cortes, seções, enquadramentos. Falta-lhes um corte brechtiano, algo que as tire dessa platitude asséptica e amorfa, onde são apenas postagens e não matérias. Não nos paralisam os sentidos, não nos tiram da cadeira, não nos colocam de pé, não nos fazem gritar. Minto: fazem sim. Quantas vezes já interrompi o que estava fazendo para acolher um grito de urgência que me apontava na tela um macaco comendo banana. E daí?

A sociedade da informação em rede, como dizem os especialistas, é revolucionária, obra milagres, remove montanhas, encurta distâncias etc etc etc. É um fenômeno irreversível e contagiante. Esconder-se dela deve ser sintoma de alguma doença dos séculos passados para a qual não se encontrou ainda a cura e que deveria estar em estado de remissão. Temos, ao contrário, que estar cada vez mais imersos nela, sob pena de nos tornarmos alienígenas inclassificáveis.

Sei lá. Como alienígena que sou, usando essa primeira pessoal do plural e cinicamente me incluindo nesse diagnóstico, não sei se temos (agora o nós é de verdade!) conseguido de fato fazer aproveitar as benesses informacionais de que dispomos nos dias atuais. Pois vejamos:

No plano da pesquisa, 20 anos representaram a entrada em um universo digital e interligado de proporções jamais pensadas pelos “imigrantes digitais”, como eu. Se quisesse ter acesso a uma dissertação ou tese, tinha que me deslocar até as bibliotecas físicas onde se encontrassem. Isso era uma verdadeira travessia entre geografias. Havia também o correio e a boa vontade do bibliotecário, além dos custos disso. Até a arquivos microfilmados cheguei a recorrer. Para um estudante do final dos anos 90 no Brasil, isso é uma cena de ficção científica. Sequer dimensionam tais montanhas e fronteiras. Tudo está ao alcance dos olhos e dos dedos. A angústia não dura nem alguns minutos. Tudo está lá, ou melhor, aqui: notícias, entrevistas, ensaios, artigos, teses, livros. O que não está pode vir a estar sem muito esforço.

Esse encurtamento de distâncias me parece provocar uma reação adversa especialmente em jovens estudantes ou naqueles que, adultos, saltaram do analfabetismo para a cultura digital sem processar os abismos que os separam.

Não discuto a revolução dessa alteração paradigmática de aquisição de um capital informacional. Sou dele usuária e beneficiária. Mas me preocupo com o alarido estéril de que o acesso à informação seja acesso ao conhecimento. Enquanto opiniões, livros, teorias e resultados de pesquisas forem consumidos sem reflexão, sem debate, sem criticidade, não serão, para quem os lê, conhecimento propriamente. Serão ilustrações, tabelas, citações justapostas ou copiadas e coladas sem nenhuma construção cognoscente e, portanto, autoral. Localizar dados e textos é etapa obrigatória de estudos e pesquisas, mas o tropeço ingênuo é crer que a satisfação e o encantamento provocados por tais “achados” conduzam ao conhecimento.

Para que sejamos também uma sociedade do conhecimento, precisamos ensinar a ler, decifrar signos e símbolos, abstrair, selecionar, correlacionar, contextualizar e hierarquizar sim. Hierarquizar informações, saber quem produziu o que, quando, por que e em relação a que significa conhecer genealogias do pensamento, filiações e originalidade. Fora disso, tudo é réplica, blá-blá-blá, vozerio estéril.

Penso sempre que cabe prioritariamente à escola e a iniciativas educacionais promover o desejado pulo do gato. Sem tal discernimento crítico estaremos sempre soterrados pelas informações. Asfixiados e imobilizados.

(Analice Martins)

Funções da leitura

É consenso entre vários setores da sociedade a absoluta necessidade da leitura para a formação psíquica e intelectual de sujeitos pensantes. Difícil é remar contra a maré em um país como o nosso. Embora sejam alardeados índices de aumento do universo de leitores, sobretudo se consideramos a leitura “deslizante” proporcionada por novas mídias e suportes, nossos resultados de ensino e aprendizagem, em nível mundial, são desastrosos. Não saímos sequer do fosso do analfabetismo funcional.

Índices não são capazes de atestar, com segurança, se um leitor consegue decodificar o sistema simbólico da língua escrita e dar-lhe significações, muito menos se consegue ampliar  tal sistema, sendo capaz de “ler o mundo”, ambição máxima da atividade da leitura. Um sujeito- leitor não pode ser meramente um decodificador de signos, deve ser sobretudo alguém apto a associá-los, derivá-los, ampliá-los, verticalizá-los paradigmaticamente.

Em entrevista recente ao jornal “O Globo”, Pedro Saffi, professor do Departamento de Finanças da “Cambridge Judge Bussiness School” ressalvou que, apesar de o Brasil ter subido de posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), desde o Plano Real, a educação foi um indicador que permaneceu estagnado, constituindo uma das mazelas do crescimento econômico responsável pela perpetuação da concentração de renda no país: “É essencial a melhoria da qualidade na educação para que o Brasil possa competir com outras nações. Nossa mão de obra é, na média, pessimamente qualificada em todos os níveis e, infelizmente, sem grandes perspectivas de melhora. A expansão no acesso à educação não foi acompanhada por qualquer melhora significativa de qualidade”.

O diagnóstico de Saffi põe o dedo em nossa ferida e faz cessar um cenário promissor a médio prazo. Sua constatação de nosso quadro econômico e consequentemente de Desenvolvimento Humano aponta a estagnação na educação como nosso calcanhar de Aquiles. Para mim, tal estagnação tem um nome específico: ineficiência na leitura. Eu poderia citar aqui muitas matérias, artigos e entrevistas que apontam esse quadro desolador e desigual como a razão de nossa histórica defasagem. Nem é preciso recorrer a especialistas na área de ensino de língua portuguesa e literatura para reconhecer que a incapacidade de ler com eficiência impede qualquer compreensão de conhecimentos matemáticos, físicos e químicos e, consequentemente, a resolução de suas questões.

Existem, é claro, experiências exitosas, mas isoladas, que não constituem uma política pública nem um esforço governamental que passaria inicialmente pela formação e valorização do professor, sem o qual o acesso ao universo da leitura ficaria a reboque da sorte e de casuísmos. Ler com competência e ser capaz de interpretar a realidade para, diante dela, ter uma postura reflexiva e de interferência não pode ser uma benção, um dom, um privilégio. Tem que ser (e é) um direito, que nos tem sido constantemente negado.

É lindo ver eventos como as Festas Literárias e as Bienais, mas nelas o acesso ao universo da leitura já está consolidado. Trata-se apenas de um aprofundamento de laços e afinidades. O osso duro de roer está na sala de aula. Dos problemas estruturais aos mais filosóficos, continuamos a dar cabeçadas às escuras.

A professora e crítica literária Nelly Novaes Coelho enumera as seguintes funções para a leitura, em especial do texto literário: lúdica, evasionista, catártica, cognitiva, pragmática e sinfrônica ou sintonizadora. Deveríamos, ainda antes de alfabetizados, ter o direito assegurado pela escola de nos beneficiarmos de todas essas funções, em ordem ou fora dela, separada ou simultaneamente. Nenhuma delas deveria se apartar de nós na vida adulta.

Uma vez introduzido competentemente no universo sígnico da leitura, o sujeito-leitor (criança ou adulto) poderá entreter-se, divertir-se; escapar da realidade contingente e projetar-se em uma realidade paralela, sonhar, viajar; dar vazão aos seus sentimentos, purgá-los, purificar-se deles, experimentar sensações novas, nunca vivenciadas; aprender, adquirir informações, conhecimentos; transformar a si mesmo ou a realidade a partir deles, mas sobretudo poder reconhecer nos textos a capacidade de perpetuação da vida, da memória, de identificação de sentimentos para além de fronteiras geográficas, linguístico-temporais, culturais e etárias.

Enfim, entender que, pela leitura, a realidade se descortina e se reinventa e que ter esse direito negado por ineficientes políticas públicas de formação do professor ou de escolarização de alunos nos fará perder o bonde da história.

(Analice Martins) 

Tecnologia e crítica literária

A editora francesa “Short Édition” anunciou, no site “Actualité”, que está desenvolvendo um algoritmo capaz de avaliar, em alguns segundos, a qualidade literária de obras que lhe sejam submetidas. Essa invenção tem provocado suores frios em críticos literários. Segundo Quentin Pleplé, cofundador da editora, sua empresa está trabalhando no momento com agências especializadas, como a LIRIS (Laboratório de Informática em Imagem e Sistemas de Informação), para desenvolver uma fórmula matemática que combine “Data Mining” (mineração de dados) e “Big Data” (dados volumosos).

O processo por trás desses complexos cálculos se explica com facilidade. A inteligência artificial da máquina se desenvolverá inicialmente a partir de um painel de 25.000 trabalhos publicados pela editora “Short”, obras que já foram avaliadas previamente por um mínimo de cinco leitores humanos. Com base nos resultados dos primeiros testes, a editora “vai começar a informar e alimentar a máquina: a inteligência artificial vai processar os dados e fazer ligações entre a qualidade e as exigências”.

O computador deverá, posteriormente, ser capaz de avaliar por si mesmo um livro, a partir de vários critérios. O algoritmo poderá identificar, separadamente, a ortografia a e pontuação, a repetição de padrões semânticos (repetições), o campo lexical (vocabulário, registro de linguagem) e a extensão de frases e parágrafos. De forma mais sofisticada, ele poderá avaliar o estilo do autor, qualificado pelo número de advérbios, adjetivos, pronomes, verbos, os substantivos empregados e a legibilidade do texto, que pode ser desde uma obra infantil até um tratado de economia.

Essa descoberta não poderia parar por aí. O fundador da “Short Édition” imagina já poder vender sua pequena maravilha tecnológica a outros atores do mundo dos livros, das mídias às bibliotecas: “Ela poderá, por exemplo, servir para as bibliotecas na classificação de livros digitalizados, mas também para a imprensa. Para as editoras, ela poderá fornecer uma primeira visão sobre as obras recebidas”, assegura Quentin Pleplé.

Uma tal novidade levanta, de imediato, muitas questões de ordem moral. Substituir o homem pela máquina não acarretará inevitavelmente uma padronização da paisagem literária? E sobre a especificidade de um autor? Pensemos em Louis-Ferdinand Céline, por exemplo, cujas qualidades não são de modo algum redutíveis à soma de todos esses critérios estilísticos.

A editora pretende apaziguar essas dúvidas legítimas. Aos que já veem nesta invenção o fim do mundo adverte: “Não se trata de substituir o nosso conselho editorial por uma máquina, mas permitir que ela sirva como um assistente de filtro, na detecção menos das qualidades literárias do que da ausência delas: “Na verdade, a máquina servirá simplesmente para fazer uma pré-seleção a fim de poupar o tempo precioso dos editores que poderão, então, realizar seu trabalho, insubstituível, de forma mais eficiente. Os matemáticos de mãos dadas com a literatura, a tecnologia a serviço do ser humano, não o contrário”.

ESCLARECIMENTOS:

Esta notícia, traduzida por mim, foi publicada no jornal francês Le Figaro e pode ser consultada no seguinte endereço eletrônico: http://www.lefigaro.fr/livres/2014/07/25/03005-20140725ARTFIG00142-un-algorithme-pour-juger-de-la-qualite-d-un-livre.php. Em outro artigo, comentarei algo igualmente capaz de provocar suores frios: a informação de que a “Robot Associate” já escreveu seus primeiros artigos.

Antes, quero fazer algumas considerações até certo ponto banais, mas sem as quais todo esse alarde tecnológico pode gerar a crença equivocada e disseminada de que uma máquina pode pensar por si mesma e ser capaz de fazer juízos reflexivos e estéticos que, na realidade, dependem não apenas de gostos e de preferências, mas de leitura acumulada, comparada, discriminada, ou seja, da intervenção de leitores e de críticos especializados.

Entendo a mineração de dados tão-somente como uma ferramenta surda e muda, que sem a condução da inteligência humana nenhum milagre opera. Os corretores ortográficos são sempre bem-vindos, desde que atualizados. No entanto sempre nos cercearão a liberdade de um uso mais plástico ou neológico da língua. Aqueles que proclamam correções sintáticas são engessados, pois não entendem nossos usos criativos da língua, não entendem nossas inversões, nossas elipses, a performatividade que podemos imputar ao sistema linguístico e que, sem sombra de dúvidas, é o elemento, aliado ao contexto que a enuncia, caracterizador da linguagem literária.

Identificar repetições como critério para ausência de qualidade literária é um assassinato conceitual. A repetição de palavras ou padrões semânticos pode ser o nó do texto literário, a cereja do bolo. Já as repetições em textos de natureza não-literária de fato podem revelar um empobrecimento da linguagem, um defeito da argumentação etc.

Já leram André Sant’Anna? Acho que, se avaliado previamente por tal artifício tecnológico, ficaria nos porões digitais das editoras. E Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luiz Ruffato? Seriam recusados de saída. Graciliano Ramos e seu estilo econômico e cortante talvez fosse barrado no quesito adjetivação. Mas Paulo Coelho certamente sobreviveria com seu estilo amorfo, insípido e insosso.

(Analice Martins)

João do Leblon

Não, João Ubaldo Ribeiro era de Itaparica na Bahia. Mas emprestava seu nome ao café da livraria Argumento na rua Dias Ferreira no Leblon. Agora, talvez, também vire nome de rua ou receba uma homenagem do Tio Sam, o boteco de sua preferência, que guardará vazia sua cadeira cativa, de onde observava e sentia a vida que lhe entrava com brisas marinhas: a maresia do Leblon, a maresia da ilha de Itaparica.

As cidades e os lugares são os do nosso nascimento, mas sobretudo os de nossa eleição. Às vezes, disputam preferência e nos dão uma espécie de duplo pertencimento, fazendo-nos múltiplos em vez de cindidos. Quando há um destino escolhido, não há dores nas lembranças, como parecia ser o caso de Ubaldo. Itaparica não era apenas a memória de uma cidade cuja fotografia na parede doía. Itaparica era também a cidade de sua memória criativa, seu espaço de retorno e de invenção, território fértil de sua criação. Itaparica não era uma cidade fantasma que assombrava o escritor com seus espectros. Não, Itaparica continuava solar em suas visitas, como me parece ser Santo Amaro da Purificação para Caetano Veloso e Maria Bethânia, conterrâneos de baianidade.

O escritor que percorre ruas a pé e se apropria do bairro e da cidade com sua presença funda um discurso, como diria Michel de Certeau, na sua “fala dos passos perdidos”. Andar, percorrer, atravessar, sentar-se e frequentar são formas de apropriação dos espaços. Talvez, esse tenha sido o caso de Ubaldo com o Leblon e suas gentes.

Quando eu o vi dois anos atrás sentado lá no Tio Sam, em sua janela para rua, fazendo ecoar, entre amigos, sua inconfundível voz de trovão, sua gargalhada, e desfrutando da simpatia de todos – conhecidos ou não –, não me pareceu uma figura folclórica. Ao contrário, pareceu-me uma figura bem real, um homem à frente de seus livros e não escondido atrás deles, um homem além de sua ficção, um homem não apenas de palavras, como muitos escritores nos parecem, mas um homem de verdade, agarrado à vida, um homem que não era etéreo nem eterno, um homem cuja imagem não fora apenas inventada pelo que nossas idealizações de leitores aficionados gostam de mirabolar. Digo isso sem juízos de valores, pois não me importo com o contrário, quando a ficção é boa, ou seja, com escritores impalpáveis, que vivem em nossas memórias na dimensão exclusiva da potência de suas palavras literárias.

João gostava da rua. Não sei se isso chega a ser um mérito, mas cria genealogias e filiações entre escritores. Os que gostam da rua, que extraem dela o máximo que podem, tornam suas partidas mais sentidas. Talvez porque se ausentem em dois sentidos: da vida e da obra. Por outro lado, sabemos que é a obra que os torna imortais e não o fardão. A obra prolonga a vida, posterga a morte. A obra, num certo sentido, atenua a morte para os leitores.

Os cronistas, ainda quando deem a esse gênero matizes mais literários, são homens ligados ao cotidiano de suas cidades, de seus países e de seus territórios. Este é um outro traço da escrita de Ubaldo que o tornou bem “terráqueo”  e não uma figura evanescente por trás do véu da ficção. A crônica põe em movimento a dinâmica da vida em seu sentido político-social e também existencial. Por isso, dizemos que é um texto ao rés-do-chão, que parte quase sempre do factual para uma reflexão mais abrangente, ao sabor de um senso crítico mais ácido ou de um lirismo mais pungente.

Embora tenha lido Viva o povo brasileiro, aos dezessete anos, por solicitação de uma professora de Teoria Literária e, portanto, me deparado com as várias encarnações da “alminha brasileira” ainda adolescente, só fui perceber a importância do escritor no cenário da literatura brasileira um pouco mais tarde. Ainda naquela época, uma amiga mestranda, cuja pesquisa girava em torno das relações entre literatura e história em Viva o povo, partiu para Itaparica a fim de entrevistá-lo e voltou de lá enredada nas histórias de Ubaldo e seus personagens, cujas inspirações ele apontava na praça e dizia: “Tá vendo lá fulano? Ele é o personagem tal”.

Nesses dois anos em que escrevo para a Folha da Manhã, já mencionei algumas vezes suas crônicas dominicais no jornal O Globo. Eu adorava suas desconfianças tecnológicas, suas rabugices com as falsas promessas desses aparatos e sua consequente fetichização. Concordava inteiramente com suas colocações e ainda as reproduzia em sala de aula, como, por exemplo, a linda crônica (“No tempo do livro”) em que João falava da insubstituível liberdade que a leitura, a partir do suporte impresso, sem necessidade de mídias de imagem e som, pode promover para a imaginação do leitor, conferindo-lhe a oportunidade de criar suas próprias imagens sem se tornarem reféns das que já lhe seriam oferecidas em links, hiperlinks, hipermídias, e-books etc. Era uma doce advertência à glamourização às vezes burrinha que a tecnologia pode prometer. Lembro também da crítica feroz à adaptação do conto machadiano “O Alienista”, feita por Patrícia Engel Secco.

Com a sua partida na sexta última (18/07), as ruas do Leblon certamente ficarão saudosas de sua alma brasileira. Assim como Drummond, em Copacabana, e Otto Lara Resende, no Jardim Botânico, acho que ele merece uma estátua no Leblon.

(Analice Martins)

Liberdades artísticas

Em sociedades em que Estado e Religião são esferas independentes, ou seja, em que não há uma fusão fundamentalista, os cerceamentos às manifestações artísticas e aos credos deveriam inexistir ou, ao menos, serem entendidos sem a pecha da blasfêmia ou do vilipêndio.  Portanto, não é de estranhar que um escritor como o paulista Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica (1975), romance cultuado pela crítica literária, goze de notoriedade, reverência e prestígio, ao contrário do anglo-indiano Salman Rushdie, que foi perseguido, ameaçado de morte e impedido de voltar à terra natal depois da publicação de Versos satânicos (1989). Em Portugal, traduzido como Versículos satânicos

Em ambas as obras há releituras das tradições religiosas, uma forma outra de interpretá-las, de pensá-las associadas a outros signos da cultura e da condição humana. Para as artes, símbolos e signos religiosos são matéria de representação tanto quanto a vida mesma. Podem ser reapropriados e deslocados em seus significados primeiros sem que isso constitua ofensa, mas, pelo contrário, seja sinal de uma reflexão crítica autônoma, despida de (pre)conceitos e juízos moralizantes.

No romance de Raduan Nassar, André é o filho pródigo que abandona a casa paterna, sem nunca deixar de amá-la, para poder viver a liberdade que não encontra nas palavras imutáveis da tradição judaico-crístã, representadas pelo pai. Mais do que isso, André deixa a casa paterna porque não pode viver a paixão incestuosa e correspondida pela irmã Ana. Foge da casa e de si. Retorna, no entanto, pelas mãos do irmão mais velho Pedro, a quem revela o seu segredo e a quem pede silêncio e cumplicidade. Mal disfarçando suas intenções, André retorna para viver a paixão que acha lícita, que manteria os laços indissolúveis da família, como desejava o pai, que daria continuidade aos brinquedos infantis, que cumpriria a sentença paterna de que não haveria felicidade possível para além dos limites da família. André interpreta ao seu modo a ciência paterna e ousa “mudar o lugar das palavras” inscritas na tradição. Essa é uma das leituras possíveis de Lavoura Arcaica. Apenas uma e feita em tom de paráfrase e que nem de longe consegue dar conta da potência narrativa da obra. Serve, no entanto, ao propósito de minha análise: mostrar que, em culturas em que o Estado não é a chancela de tudo, há liberdade para a criação artística sem censuras prévias. Deveria caber à sociedade, aos indivíduos, o juízo ético e estético das obras.

Destino diferente teve Rushdie que ousou reler o Alcorão e se aproximar do intangível, o que não pode ser tocado, sob pena de se pagar com a vida a liberdade do pensamento. Radicado atualmente nos Estados Unidos, Rushdie foi condenado a uma espécie de desterro ao se colocar como um intérprete da cultura mulçumana. Culturas fundamentalistas não admitem interpretações. Bastam a si mesmas. Possuem uma espécie de cegueira e de autoritarismo. São detentoras de uma verdade que não pode ser relativizada jamais. Manipulam signos e símbolos segundo sua conveniência. Ai daqueles que ousarem pensá-los por si mesmos, arderão no fogo do inferno.

Por isso, o mais recente episódio, no Brasil, envolvendo um veto à liberdade de criação artística, não deveria ficar sem discussão por parte da sociedade civil. Um dos episódios da produção cinematográfica “Rio, eu te amo”, com previsão de estreia em setembro, foi censurado pela Igreja Católica, representada pela Arquidiocese do Rio, detentora dos direitos de imagem da estátua do Cristo Redentor, patrimônio também da cidade e uma das sete maravilhas do mundo.

No curta dirigido por José Padilha, o personagem interpretado por Wagner Moura, sobrevoa de asa delta a estátua do Cristo Redentor e, em tom de desabafo e indignação, interpela-o sobre o abandono afetivo que sente e sobre a situação da cidade: “Lá embaixo, você não vai, né? Lá embaixo, não tem amor, né?” Como bem disse Arnaldo Bloch, não se trata de um discurso sobre o Cristo, mas sim sobre a cidade. Esse, um direito de todos, não?

A estátua do Cristo Redentor é uma representação em pedra da ideia de Cristo. Não é o Cristo. Fico pensando, a partir dos exemplos que dei na literatura, que a imagem criada por palavras é igualmente imagem, pois, como já disse Foucault e antes Saussure, as palavras não são as coisas. Afinal de que a Arquidiocese é proprietária? Não é do Cristo.

Não faz sentido nenhum, se pensarmos que não há censura às charges, cartoons, grafites – que são imagens – e que se valem da estátua do Cristo, como imagem, para discursos sobre a cidade. É só abrir os jornais cariocas com regularidade. Ora, a estátua pode ser iluminada por cores da seleção vencedora da Copa, mas não pode ser por um discurso artístico? Definitivamente não entendo.

Em 1989, a Cúria Metropolitana proibiu que uma reprodução da estátua fizesse parte do desfile da escola de samba Beija-Flor, gerando polêmica semelhante a essa de agora, em que tanto Joãozinho Trinta quanto Padilha estavam discutindo a cidade e não o Cristo.  Felizmente tais grilhões não se aproximam da literatura brasileira. Aproveitemos essa liberdade não tão vigiada e leiamos para sermos intérpretes autônomos.

Para uma cultura eminentemente audiovisual, uma imagem vale por mil palavras, mas ninguém há de negar que as palavras podem ser até bem mais explosivas e transgressivas. André, depois de consumar sua paixão pela irmã, diz: “Deitado na palha, nu como vim ao mundo, eu conheci a paz”.

(Analice Martins)